
Somos seres simbólicos...essencialmente. Ou melhor, nunca somos, estamos sempre sendo. O devir constante e inevitável é nosso signo, nossa maldição e nossa redenção. Visto que somos seres simbólicos, nossa relação com o mundo que nos cerca nunca é direta, imediata, mas mediatizada por nossos símbolos e interpretações desse mesmo mundo. Um bom exemplo é a linha reta. Na geometria a linha é um ponto contínuo, mas na natureza nem ponto nem linha realmente existem, nós a colocamos ali, nós, os construtores de sentido. Mas e quando os sentidos se tornam nossa prisão, e quando ficamos engaiolados em verdades prontas, que existem antes de nós e que muitas vezes nos sufocam e nos tornam infelizes? Posso soltar um ahistórico e conformado "sempre foi assim" ou tentar entender o porquê desses sentidos. Tudo bem, nem sempre é uma saída pra fugirmos deles, mas pelo menos conhecemos melhor o que nos prende. A língua por exemplo, é um sentido que herdamos quase que no exato momento que nascemos. Mas sem ela o mundo todo seria um mistério imenso, incompreensível e você não estaria gastando momentos preciosos lendo isso. Imagine a frase "há um gato no muro". Agora imagine que eu tenha que explicar para você todos os elementos linguísticos da frase. O que é gato, o que é muro, o haver no presente, o artigo indefinido um, etc. Aproveitando esse momento eu teria que explicar o que é verbo, artigo, o que são os tijolos que compõem o muro, e teria que dispor de outras palavras pra explicar as palavras que usei para explicar essas. Agora, retorne ao início do texto e faça esse exercício com tudo o que foi dito até agora. Difícil, não é? Precisamos de um mínimo de consenso e sentido para viver nesse mundo. Mas a construção desse sentido é sempre complicada. Por trás de cada sentido, cada forma de vida, um histórico de violência e morte se esconde. E vivemos sob ele com uma ideia de normalidade que chega a ser estupidificante. Caim, o assassino primordial, foi o primeiro a se revoltar contra uma série de sentidos e imposições simbólicas. Muitas das quais nos acompanham até hoje. Ao contrário do que se pensa a pretensão inicial de Caim não era assassinar seu irmão Abel. Caim quer matar deus, é o primeiro deicida, mas mais do que matar deus, Caim quer matar o Tu Deves, a obrigação moral que decorre de toda construção religiosa. Simbolicamente Caim é atrasado. Ele vive da coleta e de uma agricultura rudimentar, negada pela divindade que prefere a natureza dominada e domesticada dos sacrifícios animais de Abel. Abel representa um controle sobre a natureza que acompanharia o homem na formação da sua ideia de progresso até a modernidade, de tal forma que o próprio deus é substituído pela ideia de progresso. Representa também o início do fim do estatuto moral dos animais, que passam a significar coisas que podemos sacrificar e utilizar a nosso bel prazer. Abel agrada à autoridade, Caim não. Expulsos do paraíso a família de Adão se resigna com o fatal destino de ter de trabalhar duro diariamente para viver. Caim não. Essa imposição é penosa e vergonhosa demais pra ele. O porquê do pecado e da punição não são claros pra ele (seria para algum de nós?). Byron escreveu uma peça baseada na revolta de Caim. No texto byroniano a ira de Caim faz surgir Lúcifer, o anjo caído, o portador da Luz (é esse o significado de Lúcifer). Seduzindo Caim inflando sua revolta de sentido. Mas Caim não é um adorador de Lúcifer, reduzí-lo à condição de primeiro satanista é um erro gravíssimo. Ele não trocaria a autoridade de deus pela de Lúcifer. Ele é um seguidor da Luz que Lúcifer traz, do conhecimento que ele propõe, e, principalmente, da moral que o Anjo da Luz demonstra. O deus do antigo testamento não é uma divindade de piedade e amor como viria a se tornar com a moral cristã, era um deus arbitrário e punitivo. A moral de Lúcifer não era assim. Convencer Caim a praticar o fatricídio não foi muito penoso. Mas Caim não mata o irmão, Caim mata o que Abel simboliza, a obediência servil, o submeter-se, o aceitar a dor e a arbitrariedade de um deus distante e muitas vezes cruel. O que deveria tombar sob a clava de Caim é o Tu Deves, não só o pastor. Mas tudo muda quando a atitude de Caim passa a ser vista como um crime. Não é libertador, não é emancipador, é assassínio. Puro e simples homicídio, um pecado contra aquele que dá a vida. A oposição de Caim acaba reforçando a ordem comumente aceita. O castigo reintegra o criminoso à ordem que ele viola. A palavra grega crima, que deu origem ao latim cisma, significa separação. Quando o criminoso comete o seu ato ele se separa da ordem instituída. E através da pena ele é reinserido nessa ordem. Ao ser punido Caim volta pra autoridade e para o significado que ele quis destruir. Antes de ser um personagem maldito, Caim é um personagem inadequado, que não se adegua à ordem constituída. O contrário de Caim é Robson Crusoé, de Daniel Defoe. Perdido na ilha ele simplesmente reconstrói a ordem "civilizada" a que estava acostumado. Até Sexta-Feira é o escravo feliz pela escravidão. Como os trabalhadores modernos nas linhas de produção. Robson é talvez o personagem mais indecente de toda literatura. Apegado demais à sua fé na superioridade do branco ocidental ele não se questiona um minuto sobre sua condição na ilha. Sua preocupação é criar uma cópia miniatura do mundo burguês que conheceu, da autoridade burguesa que ele representa. Incrível que ainda deixem as crianças lerem isso com se fosse algo inocente. Como se Robson e Sexta-Feira fossem amigos. Enfim, ele é o prisioneiro de uma prisão sem muros. Prisão essa que nos cerca também. E assim como Robson a chave também está conosco. Tomara que ao contrário dele tentemos ao menos tatear as paredes em busca da fechadura.