sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Fundamentalismos

Os Estados Nacionais se formaram para evitar que as guerras confessionais consumissem a Europa. Reclamando o monopólio do político e da jurisdição, impuseram ordem a conflitos religiosos que ecoam até os dias de hoje. Contudo, o Estado não nasce laico. Todo o pensamento hobbesiano sobre a soberania, por exemplo, só tem sentido se considerarmos sua afirmação essencial e diversas vezes repetida: Jesus is the Christ! Hobbes defendia uma separação política entre fé e confissão. Fé é na religião oficial do Estado (que Hobbes via como indispensável), confissão é minha fé particular. Com o advento do individualismo liberal o segundo conceito acabou por se impor ao primeiro, e a confissão religiosa privada ganhou sua dimensão intocável e sagrada, mas,ainda, privada. Assim como as regras de piedade grega começaram a abarcar estrangeiros para facilitar o comércio, o respeito à confissão do outro se tornou necessário para possibilitar a expansão econômica dos Estados modernos, crentes confessos do binômio trabalho/riqueza. Sua laicização acompanhou sua transformação em garante supremo do mercado. Marx já dizia que tudo o que era sagrado e nobre acabou sendo substituído pelo pagamento à vista, e religiões oficiais impediam isso.

Em verdade, somente nessa dimensão podemos enxergar uma secularização real dos Estados.Herdeiros da racionalidade jurídica católica, todos seus ritos e procedimentos estão imersos na necessidade de reafirmação (re-ligare) própria das religiões. E é isso que atraiu as massas nos Estados. Baudrillard já dizia que nunca as massas foram realmente religiosas, elas gostam mesmo é do espetáculo religioso, do ritual, maravilhoso e incompreensível que se desfralda em sua frente. De certa forma, permaneceram pagãs, substituindo sua miríade de deuses e deusas por santos, heróis da fé, penitentes. A religião? Essa continuou sendo uma dimensão teórica, distante, abstrata.

O crescimento desvairado do número de igrejas evangélicas no Brasil nada mais é que fruto dessa realidade mais antiga. A apropriação por seus membros de boa parte do nosso legislativo é consequência dos próprios mecanismos "democráticos" que privilegiam a soma de vontades privadas em detrimento da construção de uma vontade pública, e da incapacidade do Estado laico em responder aos anseios de boa parcela do população, que busca essas respostas nas palavras do pastor. A igreja diz que vou ficar rico, o Estado me oferece salário mínimo, pense bem...

A questão é: estabelecer a religião como inimiga do Estado de Direito é um tremendo equívoco. Defender a laicidade com o mesmo empenho que os religiosos defendem sua fé, também. Há sempre uma parcela indelével de insanidade que nos marca quando apontamos a irracionalidade de alguém. Escrevo essa linhas apressadas após ler esse texto que praticamente sugere uma Jihad pelo Estado laico, com a oposição de uma bancada secular à bancada teocrática (péssimo uso do termo teocrático) e cria uma impossibilidade entre monoteísmo e democracia (???). Seguindo esse último raciocínio democrática era a Índia dos milhões de deuses e das mil castas.

Eu entendo a posição do autor. Acho ofensivo ver crucifixos em repartições públicas, sentenças baseadas em cartas psicografadas, dinheiro público custeando todo tipo de obra e propaganda religiosa. Mas, aonde fica minha laicidade, se eu a transformo em minha religião, querendo imputá-la como credo, baseado no "sagrado" texto constitucional como se fosse tirada da Bíblia. Meu arrepio diante do que me ofende, me autoriza a agir como quem me ofende? Seria isso cristão? Budista? Islâmico? Seria isso, em última instância, constitucional?

Não deveríamos pensar em fortalecer os mecanismos e formas obsoletas do Estado Nacional, mas superá-los, transcendê-los. Mais do que uma bancada teocrática, o que impede a realização do Estado Democrático de Direito é sua conversão em um dogma vazio, formal, natimorto, eivado pela obsolescência da própria forma democrática dentro de um sistema econômico e social excludente, que só autoriza a democracia formal. E então chegamos à essa condição, em que o Estado laico é defendido através das estratégias de seu "inimigo", lançando mão de suas formas autoritárias e dogmáticas. Fundamentalismo trasvestido de democracia. Palavra da salvação (Constituição da República Federativa do Brasil, atigo 5, VIII), nós, representantes do povo brasileiro...sob a proteção de Deus...