quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Vinde a mim os Cainitas


Somos seres simbólicos...essencialmente. Ou melhor, nunca somos, estamos sempre sendo. O devir constante e inevitável é nosso signo, nossa maldição e nossa redenção. Visto que somos seres simbólicos, nossa relação com o mundo que nos cerca nunca é direta, imediata, mas mediatizada por nossos símbolos e interpretações desse mesmo mundo. Um bom exemplo é a linha reta. Na geometria a linha é um ponto contínuo, mas na natureza nem ponto nem linha realmente existem, nós a colocamos ali, nós, os construtores de sentido. Mas e quando os sentidos se tornam nossa prisão, e quando ficamos engaiolados em verdades prontas, que existem antes de nós e que muitas vezes nos sufocam e nos tornam infelizes? Posso soltar um ahistórico e conformado "sempre foi assim" ou tentar entender o porquê desses sentidos. Tudo bem, nem sempre é uma saída pra fugirmos deles, mas pelo menos conhecemos melhor o que nos prende. A língua por exemplo, é um sentido que herdamos quase que no exato momento que nascemos. Mas sem ela o mundo todo seria um mistério imenso, incompreensível e você não estaria gastando momentos preciosos lendo isso. Imagine a frase "há um gato no muro". Agora imagine que eu tenha que explicar para você todos os elementos linguísticos da frase. O que é gato, o que é muro, o haver no presente, o artigo indefinido um, etc. Aproveitando esse momento eu teria que explicar o que é verbo, artigo, o que são os tijolos que compõem o muro, e teria que dispor de outras palavras pra explicar as palavras que usei para explicar essas. Agora, retorne ao início do texto e faça esse exercício com tudo o que foi dito até agora. Difícil, não é? Precisamos de um mínimo de consenso e sentido para viver nesse mundo. Mas a construção desse sentido é sempre complicada. Por trás de cada sentido, cada forma de vida, um histórico de violência e morte se esconde. E vivemos sob ele com uma ideia de normalidade que chega a ser estupidificante. Caim, o assassino primordial, foi o primeiro a se revoltar contra uma série de sentidos e imposições simbólicas. Muitas das quais nos acompanham até hoje. Ao contrário do que se pensa a pretensão inicial de Caim não era assassinar seu irmão Abel. Caim quer matar deus, é o primeiro deicida, mas mais do que matar deus, Caim quer matar o Tu Deves, a obrigação moral que decorre de toda construção religiosa. Simbolicamente Caim é atrasado. Ele vive da coleta e de uma agricultura rudimentar, negada pela divindade que prefere a natureza dominada e domesticada dos sacrifícios animais de Abel. Abel representa um controle sobre a natureza que acompanharia o homem na formação da sua ideia de progresso até a modernidade, de tal forma que o próprio deus é substituído pela ideia de progresso. Representa também o início do fim do estatuto moral dos animais, que passam a significar coisas que podemos sacrificar e utilizar a nosso bel prazer. Abel agrada à autoridade, Caim não. Expulsos do paraíso a família de Adão se resigna com o fatal destino de ter de trabalhar duro diariamente para viver. Caim não. Essa imposição é penosa e vergonhosa demais pra ele. O porquê do pecado e da punição não são claros pra ele (seria para algum de nós?). Byron escreveu uma peça baseada na revolta de Caim. No texto byroniano a ira de Caim faz surgir Lúcifer, o anjo caído, o portador da Luz (é esse o significado de Lúcifer). Seduzindo Caim inflando sua revolta de sentido. Mas Caim não é um adorador de Lúcifer, reduzí-lo à condição de primeiro satanista é um erro gravíssimo. Ele não trocaria a autoridade de deus pela de Lúcifer. Ele é um seguidor da Luz que Lúcifer traz, do conhecimento que ele propõe, e, principalmente, da moral que o Anjo da Luz demonstra. O deus do antigo testamento não é uma divindade de piedade e amor como viria a se tornar com a moral cristã, era um deus arbitrário e punitivo. A moral de Lúcifer não era assim. Convencer Caim a praticar o fatricídio não foi muito penoso. Mas Caim não mata o irmão, Caim mata o que Abel simboliza, a obediência servil, o submeter-se, o aceitar a dor e a arbitrariedade de um deus distante e muitas vezes cruel. O que deveria tombar sob a clava de Caim é o Tu Deves, não só o pastor. Mas tudo muda quando a atitude de Caim passa a ser vista como um crime. Não é libertador, não é emancipador, é assassínio. Puro e simples homicídio, um pecado contra aquele que dá a vida. A oposição de Caim acaba reforçando a ordem comumente aceita. O castigo reintegra o criminoso à ordem que ele viola. A palavra grega crima, que deu origem ao latim cisma, significa separação. Quando o criminoso comete o seu ato ele se separa da ordem instituída. E através da pena ele é reinserido nessa ordem. Ao ser punido Caim volta pra autoridade e para o significado que ele quis destruir. Antes de ser um personagem maldito, Caim é um personagem inadequado, que não se adegua à ordem constituída. O contrário de Caim é Robson Crusoé, de Daniel Defoe. Perdido na ilha ele simplesmente reconstrói a ordem "civilizada" a que estava acostumado. Até Sexta-Feira é o escravo feliz pela escravidão. Como os trabalhadores modernos nas linhas de produção. Robson é talvez o personagem mais indecente de toda literatura. Apegado demais à sua fé na superioridade do branco ocidental ele não se questiona um minuto sobre sua condição na ilha. Sua preocupação é criar uma cópia miniatura do mundo burguês que conheceu, da autoridade burguesa que ele representa. Incrível que ainda deixem as crianças lerem isso com se fosse algo inocente. Como se Robson e Sexta-Feira fossem amigos. Enfim, ele é o prisioneiro de uma prisão sem muros. Prisão essa que nos cerca também. E assim como Robson a chave também está conosco. Tomara que ao contrário dele tentemos ao menos tatear as paredes em busca da fechadura.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Jabuticabas

A verdade é maior do que podemos suportar. Mas, ei, a verdade existe? Ontem tava contando moedinhas pra comprar jabuticabas. É tempo de jabuticaba e eu gosto delas porque me lembram a infância. Jabuticabas grandiosas, docinhas. Eram tão doces quando eu era menininha. Será que o açúcar descristaliza conforme o tempo ou minha língua perdeu o encanto? As moedinhas faziam barulhinho de jabuticaba, queriam ser jabuticabas. Eu realizei o sonho das moedinhas, que prateadas ficaram quase negras e brilhantes. As moedinhas tão solitárias cansadas daqueles olhares interesseiros ou desprezíveis, preferiam os olhares ingênuos das crianças pequenas ou até das crianças grandes que, cheias de esperanças, lembram de sua infância querendo sentir o gostinho negro de jabuticabas pra reviver ou só mesmo dizer que as jabuticabas perderam o sabor. Perderam só o doce, criancinha. Você não viu, mas ele se perdeu pelo seu tempo. E lá naquela barraquinha da feira, eu me aproximei procurando a jabuticaba, procurando meu doce da infância, procurando o açúcar ingênuo. Ah, eu encontrei. O velhinho dono da barraquinha preparou num pacotinho tão delicadinho, que não precisava porque eram moedinhas sendo jabuticabas. O velhinho olhava feliz pras moedinhas, talvez porque as suas jabuticabas já tenham se tornado amargas demais; e eu olhava feliz pras jabuticabas, porque elas podiam não ser tão doces e graciosas, mas ainda adoçavam meu dia. Ah, isso sim. E as moedinhas me pediram tanto pra trocarem de lugar com as jabuticabas. Eu voltei pra casa, quase cantando e feliz com aquele gostinho possessivo das jabuticabas que me levaram pra um tempo que eu já não lembrava. Puxando verdades, encobrindo mentiras e pesquisando o óbvio da minha vida. E elas não acabavam jamais. Sapateando pela calçada, me dando conta de que mudei a vida das jabuticabas e das moedinhas, encontrei um problema: não tinha como mastigar e engolir as cascas das jabuticabas. Nem todas as verdades são suportáveis. E eu não podia terminar meu ato tão belo e singelo jogando fora cascas de jabuticabas. Poderia enterrar nas terras que estavam por ali e ninguém veria, não? Mas é que eu não sei me enganar. Decidi então que faria um esforço psicológico, destes que a gente sempre acha que pode recorrer quando tem algum problema, e mastiguei as cascas amargas, portanto, com toda clareza dos conhecimentos gastronômicos que um amargo possa dar. De tão amargo, doeu. De tão amargo, perdeu a pouca doçura que ainda enganava meu instinto infantil. De tão amargo, me fez esquecer completamente o verdadeiro gosto da jabuticaba. De tão amargo, foi verdadeiro. E há verdades que a gente não pode suportar. As minhas jabuticabas terminaram, mas elas sempre terão cascas pra mastigar ou ter que jogar fora, fingir não existir. Não, não posso deixar de provar, jabuticabas são doces e lembram o passado tão doce quanto. E se eu provar todas as vezes o seu gosto amargo, vou perder o gosto por jabuticabas, tão infantil tal gosto. Tão infantilzinho. É melhor trocar moedinhas por jabuticabas e jogar as cascas amargas fora, não é mesmo? Afinal, se enganar é preciso pra manter a ingenuidade e o gostinho pela vida. Porque tem certas verdades que a gente não pode ainda suportar. Enquanto a verdade me veio e é recente, odeio jabuticabas até esquecer que elas doeram de tão amargas e sentir vontade de experimentar de novo o doce das lembranças. Por hora, odeio jabuticabas e moedinhas!

Apenas um teste

Não tententender: não faz o menor sentido.

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segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Discos malditos 2 - Tim Maia Racional

O disco é essencial, vale um post exclusivo para ele:
Nos comentários do post anterior, eu me queixava com o Ramon da tarefa nada fácil que ele me determinou. Afinal de contas, é provável que nenhum disco brasileiro faça tanta justiça ao rótulo de "maldito", no sentido que queremos demonstrar, quanto este "Tim Maia Racional", cujo primeiro volume foi lançado em CD pela Trama em 2007. Fato é que Tim Maia, até seu falecimento em 1998, sempre renegou este disco. Foi em 1974 que Tim se interessou pelas idéias de Manuel Jacinto Coelho, a quem o cantor tratava como "o maior homem do mundo" e "missionário da pureza" (mais tarde, Tim se referiria a ele como "o maior tarado de Nova Iguaçu"). Em uma visita ao compositor Tibério Gaspar, ele folheou um livro da seita "Universo em Desencanto" e rapidamente se deixou levar pelas idéias constantes naqueles textos. Com seu poder de liderança, convenceu os músicos de sua banda a o acompanharem em sua nova doutrina. Todos passaram a se vestir de branco, cor com a qual pintaram seus instrumentos também (em uma apresentação na TV Globo, Tim arrumou confusão quando pediram que trocasse de roupa, porque a cor branca não dava bom efeito na tela). A fase "racional" durou até 1976, quando o cantor, num rompante de consciência, saiu esbravejando contra o fundador da seita.
Seja como for, e fanatismos à parte, encontramos Tim Maia em pleno vigor, visto que nesta época estava livre das drogas (reza a lenda que ele chegou até a subir o morro, dizendo às pessoas “você não precisa de bagulho pra ficar doidão, basta ler o livro!”). O discurso é panfletário, além de ser, claro, nonsense na maioria das partes. Mas é, talvez, a época em que encontramos a banda mais entrosada, cheia de pérolas musicais, como “Imunização Racional (Que Beleza)”, “Bom Senso” e “Rational Culture”. O volume 2 do disco, ainda não lançado em CD, também trazia boas canções, como “Quer queira ou não queira”, que originalmente chamava-se “Adeus San Juan de Puerto Rico”, e teve a letra mudada para servir de divulgação das idéias da cultura racional. Além disso, recentemente vazaram cinco faixas que constituem o que chamaram de volume 3 desta fase. Todo este material circulou por aí em CD-Rs, já que o artista sempre fez questão de que o disco nunca fosse relançado. Uma vez, Marisa Monte quis regravar “Imunização Racional”, e foi desaconselhada pelo próprio Tim: “Esquece isso, Marisa Monte!”. Cabe agora à Trama ou outra gravadora tentarem relançar os demais volumes, para que tenhamos acesso à obra completa do mestre. "Eu tive que subir lá no alto!".

sábado, 24 de janeiro de 2009

Discos Malditos 1











Aceitando a dica do Claudinei vamos ter alguns posts sobre discos malditos. De início eu pensei que seria legal cada um escrever sobre um disco específico, mas são tantos discos que tem uns três ou quatro que eu me sentiria um pecador de não citar. Pois bem, mas o que torna um disco "maledeto"? O que torna uma obra artística maldita? Ter o Tinhoso na capa? Fonemas satânicos que só podem ser ouvidos por aqueles com tempo o suficiente para girar um LP ao contrário? Covers da Xuxa? Bom, no último caso até deveria mas não é. Assim como o Papa é Pop e John Lennon é sacro porque o povo os fez assim, um disco é maldito quando sua receptividade junto ao público é tão ruim que qualquer citação ao mesmo leva a arrepios os fãs mais arraigados de determinado artista. Talvez como consequência de um instinto subrepticiamente (ufa) invejoso, os próprios fãs de um artista gostam de cultivar um olhar inquisidor sobre um momento pretensamente de baixa qualidade do trabalho de seu ídolo. Digo pretensamente porque não necessariamente um disco maldito é um disco ruim. Muito pelo contrário, às vezes a qualidade de um álbum será reconhecida muitos anos depois de seu lançamento. Geralmente ele se torna objeto de culto por alguns e vai resistindo ao teste do tempo até se consolidar como um grande trabalho. Em 1973 Luiz Melodia lançou seu primeiro disco, Pérola Negra. Para uma indústria fonográfica ainda muito acostumada ao padrão Bossa Nova o disco era no mínimo estranho. Na verdade o disco não se encaixava em nenhum estereótipo da época. Urbano demais por um lado, tradicional demais por outro, o disco é simplesmente inclassificável. Negro, apaixonado, cruel, desolado, tropical, outonal e tempestuoso. O disco é tudo. Talvez por isso sua receptividade incial não tenha sido das melhores. Não foi esquecido por que Melodia chegaria ao final do festival abertura da TV Globo com outra obra prima sua, a canção Ébano, que não é do Pérola Negra, mas que possibilitou que seu trabalho fosse constantemente revisitado pelas gerações que seguiram. Algumas mais belas canções do morro e do asfalto estão nesse disco. Da fenomenal Estácio, holly Estácio, em que o sobrenome Melodia se justifica linda e plenamente, à singelamente estranha Magrelinha (regravada depois por Caetano Veloso), com uma letra pop somado a um clima de valsa e samba canção emocionantes, passando por Farrapo Humano e outras pérolas que desfilam crueldade, sujeira, beleza, emoção. Hoje ele é um disco que encontrou sua redenção, reverenciado por todas as gerações de músicos que o sucederam. Precioso ao extremo. Um outro disco deslocado foi o Hot Space do Queen. Lançado na época em que músicas sintetizadas e vocais afetados dominavam (o disco é de 1982) Hot Space colocou o Queen na onda dos sintetizadores e batidas eletrônicas, com algumas canções que podiam estar tranquilamente em pistas de dança. Pra grande maioria dos fãs da banda na época foi um disco herege, uma traição. A crítica esqueceu de quem estava falando e os xingou de todos os nomes possíveis e imagináveis. Tanta ladainha quase encobriu belezas raras como Las Palabras de amor, balada pop ornada com vocais mais que perfeitos de Freddie Mercury. Life is real, uma comovente homenagem ao supracitado John Lennon, e ainda temos Under Pressure, uma verdadeira obra-prima, união dos talentos do Queen com o grande David Bowie, num dos duetos vocais mais arregaçadores da história da música pop, e os riffs sempre inteligentes de Brian May com sua Red Special em Put out the fire, a mais "setentista" do disco. Ao contrário do Pérola Negra, ainda é um disco pra ser redescoberto. Mas que vale muito a pena. Talvez a banda recordista de álbuns malditos seja o Metallica. Como assim? O Metallica? A banda mais bem sucedida do metal, com milhões e milhões de discos vendidos, tournês milionárias, um público enorme? Calma, vou explicar. Público de metal é chato. Muito, muito chato. Quando Kill 'em' all, o primeiro disco da banda, foi lançado, o cenário roqueiro americano era dominado por bandas como Cinderella, Journey e Foreigner, bandas que se preocupavam mais com a quantidade de laquê no cabelo do que com o som propriamente dito. O Metallica trouxe uma nova proposta, um som pesado, virulento, com riffs poderosos dominados pela corda E solta e palhetadas pra baixo ultra precisas. Estava criado o Thrash Metal, uma forma mais pesada do chamado heavy metal tradicional, de bandas como Judas Priest e Iron Maiden. A recepção do primeiro disco foi muito boa, tanto de público quanto de crítica. Pra uma banda de metal inciante o disco vendeu razoavelmente bem. Quando do segundo disco Ride The Lightning vozes dissonantes começaram a aparecer. A banda lança Fade to Black, considerada uma balada por alguns fãs, que riscavam com pregos e outros objetos a faixa do LP e viravam as costas em execuções ao vivo da canção. Um disco infinitamente superior ao primeiro, com melodias muito bem trabalhadas, influência clara da consolidação do trabalho do grande baixista Cliff Burton. Apesar do mimimi de alguns, foi outro sucesso. Logo depois da banda lançar o perfeito Master of Puppets, Cliff morre num acidente de ônibus durante a tour européia da banda. O baque foi estrondoso, a ideia de fim era muito forte. Mas, apesar de tudo, a banda convoca Jason Newsted para o posto vago e vão pra estúdio e gravam o monumental ...And Justice for All. Um disco de canções enormes, riffs escandalosamente complexos, vocal mais melódico e menos gritado, letras críticas, fortes. Novamente estranhamento de alguns fãs, que criticaram o vocal mais melódico de Hetfield, o baixo inaudível de Newsted (é um defeito sério do disco), os longos interlúdios acústicos. Foi um disco demonizado por anos, mas que além de ter rendido o primeiro clipe da banda (o magistral One, com cenas do filme Johnny Got his Gun) e uma indicação ao grammy de melhor disco de metal, perdido pros veteranos do Jethro Tull e seu Aqualung, mostrou uma competência e uma qualidade de composição até então inéditas pra uma banda de metal. A banda retorna ao estúdio e grava o que viria a ser seu maior sucesso. Metallica, ou o mundialmente conhecido Black Album. Um disco que soa primoroso, com riffs mais simples, músicas mais bem estruturadas, letras ótimas, um bom trabalho de graves. Uma coleção imensa de sucessos, praticamente todas as músicas foram hits radiofônicos e os clipes passavam incansavelmente na MTV. Mas pra variar, muitos fãs viraram as costas, dizendo que não era mais o Metallica, que não era um disco de Thrash, que Bob Rock, o produtor, não sabia produzir discos de metal e tal e coisa e coisa e tal. Críticas e chiliques que se repetiram e agravaram com os dois álbuns seguintes da banda, o menos metálicos Load e Reload. A banda apareceu de cabelos curtos, unhas pintadas e visual de cafetão. Pronto, foi paulada de todos os lados. Até dos amigos. No acústico do Alice in Chains, o baixista Mike Inez apareceu com o baixolão pichado com a seguinte inscrição: amigos não deixam amigos cortarem os cabelos. O defeito dos discos está justamente em ser "os discos". Por serem dois álbuns muita coisa desnecessária acabou entrando, mas são trabalhos muito interessantes, com algumas das melhores letras da carreira da banda e Hetfield provando uma vez por todas que sabe cantar. Apesar de tudo, ambos os discos foram sucessos. Mas em 2003 a coisa não estava nada boa pra banda: muito tempo sem lançar nada inédito (os discos que sucederam os loads, foram um disco de versões, o Garage inc. e um ao vivo com a San Francisco Simphony, o S&M), brigas internas que culminariam com a saída do baixista Jason Newsted, problemas do vocalista James Hetfield com bebida, que o levariam a enfrentar a jornada longa da reabilitação. O resultado de tudo isso foi o mais que controverso St. Anger, um álbum pesado e agressivo, mas recebido pelo público e crítica como um tiro no pé, um fiasco total. A princípio isso não interferiu nas vendas (tudo que os caras põem a mão vira ouro, incrível), mas as críticas eram cruéis. Na época o Metallica enfrentava as consequências de seu processo contra o Napster, o serviço de compartilhamento de arquivos. Massacrados pela MTV e pelos canais jovens por isso, a banda teve que conviver com imagens de seus antigos fãs quebrando cds em protesto contra a ação judicial. Tudo isso ofuscou um disco esquisito, desconexo às vezes, de difícil audição, mas que pra variar tem coisas muito boas. A começar pela faixa título, nervosa, espumando raiva pra todos os lados, com riffs simples mas rasgantes. Frantic é outra muito interessante, e que funciona muito bem ao vivo, como a banda tem mostrado, executando-a constantemente. The Unnamed Feeling, com seus mais de sete minutos, tem não só uma das letras mais fortes da banda mas melodias inesperadas e pouco lineares, é uma das faixas esquisitas porém fodas do disco. Some Kind of Monster talvez seja a canção que melhor resuma o disco, um amontoado de sentimentos, de partes, de pedaços, chumbados num disco que representa a sobrevivência da banda em seu momento mais difícil. Tudo registrado no belo documentário Some Kind of Monster, recomendado mesmo pra quem não gosta ou não conhece Metallica, é cinema bom, de verdade. Hoje a própria banda acha que o disco foi uma descida na montanha russa, mas sabe que sem ele não existiria o Metallica hoje, comemorando a ótima recepção do belo Death Magnetic. Pra terminar eu poderia citar o Racional do Tim Maia, em seus dois volumes, como um disco maldito renegado também pelo próprio artista, mas vou ser bonzinho e deixar o Márcio falar dele (rsrs). Esse mereceria um post só pra ele, de tão belo e controverso, mas por isso mesmo vou deixar passar. Os discos malditos são um exemplo, herético e forte, de que por mais que tentem reduzir arte a produto, a coisa lúdica e comovente sempre sobrevive, saindo pela tangente das ondas e momentos. Na cultura japonesa, os seres espectrais são chamados de Obakes, ou Obakês (já vi as duas grafias) e são, muitas vezes, seres malditos, que retornam pra vingar um sofrimento extremo que enfrentaram durante sua vida corpórea. Assim como os discos comentados aqui eles resistem, criando aos poucos suas razões, amedontrando, encantando e sobrevivendo a tudo.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Como é que chama o nome disso?

Tudo começou com uma entrevista de Humberto Gessinger. Ele citava o caso do encontro entre Sean Penn entre James Hetfield, do Metallica. O já razoavelmente famoso ator aconselhava o vocalista da banda, que à época dava os primeiros passos na carreira: "Vocês nunca vão dar certo com esse nome! Ele é muito unidimensional!". Fazia sentido: uma banda de heavy-metal chamada Metallica. Tinha tudo pra fracassar. Mas foi sucesso mundial. Foi pensando nisso que avaliei que nosso blog tem uma nome que não aponta só para um lado. O que você prefere? Filosofia ou marmita? Ou filosofia com marmita? A escolha foi aleatória, tem a ver com meu blog individual, o Batata Filosófica (me visitem), que tem uma explicação, embora eu nunca a tenha feito. A pergunta é: qual a relevância do nome em detrimento do conteúdo oferecido? Se este blog se chamasse "Marmota Filantrópica", o interesse mudaria, sendo que o criamos com um objetivo comum, de ser um local para desfilarmos nossas divagações? Não sei. Mas sei que, por mais idiota que possa parecer um nome, o ideal é tentar ampliar os sentidos dele no decorrer do tempo, fazendo com que aquele sentido inicial, que poderia parecer bobo, se perca. Recentemente, a revista Guitar World publicou uma lista dos "nomes mais estúpidos de banda", com Beatles (que é um trocadilho entre "beat" = ritmo com "beetle" = besouro) liderando a tal lista. Pergunto: alguém se importa com o nome dos Beatles, sendo que eles continuam sendo para muitos a coisa mais fantástica que já surgiu no mundo da música?
Jimmy Page montou no final da década de 60 um grupo para dar continuidade ao seu trabalho nos Yardbirds. O grupo, completado por John Paul Jones, John Bonham e Robert Plant, chamaria-se New Yardbirds. Um amigo de Page, o malucaço Keith Moon, falecido baterista do The Who, disse que com aquele nome, eles decolariam feito um "zepelim de chumbo" (Led Zeppelin). Page, que de bobo não tinha nada, aproveitou o trocadilho do amigo e nomeou assim a sua banda. E o Zeppelin levantou voo.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Rhodes



Na escola me ensinaram que as pedras crescem para dentro. Que seu tamanho exterior é sempre o mesmo, mas a medida que envelhecem ficam mais duras, densas. Vi num museu de mineralogia uma espécie de quartzo ainda em formação. Era uma pedra mole. Quando era sacudida ela se movimentava como borracha, flexível. Mas se apertada era dura. Aquela pedra ainda iria "crescer" para dentro, se tornar mais densa. Com o passar dos anos meu conhecimento sobre geologia não aumentou muito. Talvez seja equiparado ao meu conhecimento sobre aviões, enguias, culinária mongol ou taxidermia. Talvez por isso não sei falar sobre pedras e não farei isso aqui. Falarei de coisas que crescem para dentro, como anões da caledônia, histórias mal escritas, uma ilusão do Escher. Falarei daquele dia na faculdade, ocupado com os assuntos sem sentido da política estudantil, de uma chapa de centro acadêmico, de uma reunião confusa e agitada. De quando, em meio a ombros, cadeiras, costas e queixos eu a vi. Ela parecia acreditar naquilo ali e assim eu quis parecer também. Cerrei os olhos em direção ao orador do momento que tecia um rol de problemas do curso. Mal sabíamos ele e eu que não há solução para um curso de direito. Tudo que se faz é em vão. Como colocar uma coleira bonita num cachorro morto e esperar que ele ande por isso. Estava decidido, eu seria o presidente da chapa responsável por colocar a coleira no cachorro morto. Ela seria a tesoureira. Fomos finalmente apresentados. Apertei sua mão, solene e envergonhado, e só percebi que ela avançava para beijar meu rosto quando já tinha me posicionado fora de seu alcance, vendo o pequeno carinho morrer no ar, como uma pétala de dente de leão que perdemos de vista sob o sol forte. Não conversei mais com ela durante o restante da reunião. Mas saímos juntos da sala e juntos fomos embora. Foi ótimo. Cheguei em casa com uma felicidade ofensiva nos lábios. Dessas que te deixam com medo de parar de pensar em seu objeto, com medo que ele se esvaia. Esperei meus amigos de república chegarem e contei tudo a eles de uma forma inconvenientemente sincera, retribuída com as costumeiras gozações de aprovação. Durante a campanha da chapa nos encontramos muitas vezes, e em poucos dias nos tornamos amigos. Bons amigos. Toda essa história de que homens e mulheres não podem ser amigos é uma tremenda furada. Por que não? Por que podemos acabar gostando da pessoa mais do que como amigo? Ela deixaria de ser amigo então? Isso a rebaixaria, a promoveria? Éramos amigos e eu queria pouco mais da vida do que aquilo. Houve um congresso, um EMED senão me engano, que não pude ir. Grana curta, estudante pobre e fudido. Ela foi. Voltou contando como tinha sido legal e tudo, nenhum detalhe. Não esperava detalhes. Sei que o tempo em que ela passou fora me almadiçoou com uma urgência de tê-la, de cheirá-la, abraçá-la. Me fez olhar para o abismo. Eu olhei, olhei e caí. Disse tudo o que eu sentia, como se faz num livro vitoriano ou numa novela ruim. Era como se, naquele momento Isaac tivesse se deitado na pedra do sacrifício mesmo com Abraão livre da obrigação. Ainda sinto o gosto daquele desconforto. Idiota, imaturo, senil. Sincero. Conversamos como conversaríamos muitas outras vezes. A princípio ótimas conversas, esperanças, planos até, reciprocidades. Depois mais fugidias, esquivas, com uma cor incerta, um carmim falho e cansado. Fui saber o que tinha mudado quando me disse que não poderíamos continuar porque estava namorando. Um carinha que conheceu no congresso que não pude ir. Desde esse dia, destino, coincidências, explicações não fazem mais parte de como eu vejo o mundo. Não vale a pena contar o resto da história aqui. Sofri por ela como os cartaginenses por seus olhos. Não sabia que era possível sentir aquilo e continuar vivendo. Era como uma pedra crescendo por dentro, se tornando mais dura, mais densa, mais pedra. Não tentei suicídio mas quase morri. E tudo o que fizemos, eu e ela, tudo o que dissemos depois, tornou tudo tão pior. Hoje, depois de anos de um silêncio amargo como o silêncio de uma calúnia já desmentida, sinto uma saudade impossível dela. Como um cavalo aleijado sente falta da perna. Aliás, eu desenhava muito nessa época, e a imagem de um cavalo aleijado, olhando pra frente com aquela dignidade muda dos que querem morrer era uma constante. Senti medo de enloquecer, de morrer de fome, senti medo de não dormir nunca mais. Aprendi que estrelas morrem, porque a cada noite eu percebia a ausência de mais uma delas no céu. Depois de tantos anos seu rosto e cabelo ainda me visitam em sonhos despertos e eu sofro tudo outra vez, a ponto de desejar nunca tê-la conhecido. No seu último aniversário mandei um email de felicitações, o "felicidades" de sempre que retornou um mês depois com o "mesmo pra você" de sempre. Mentiria se dissesse que estou bem agora, que passou, que secou. A pedra cresceu, está mais dura no peito. Mas há muito o que crescer. E a cada medida que se adensa, mais dor eu sinto. Fazer o quê? É da natureza das pedras crescerem para dentro. E o inexplicável é: uma pedra dentro de uma pedra, como um deserto dentro de um deserto.

Eu erro pelo deserto sem saber...

Com o cachorro morto no colo e procurando, com a ponta dos pés, a coleira que deixei cair....

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Síndrome de astronauta...


Para Luana, minha amiga astronauta...



E pela primeira de muitas vezes o astronauta virou seus olhos do azul e contemplou a imensidão à sua frente. O céu negro e aquela beleza desolada não o intimidavam, nem feriam. Ao contrário, em muitos anos não se sentia tão acalentado como naquele lugar. Apesar da pouca gravidade, empurrava com os pés alguns grãos daquela areia ainda não tocada. Vez ou outra colhia uma pedra, fruto mineral de um mundo mineral. E ao acariciar seu formato com a mão encoberta pela luva branca, pensava e sentia seu verdadeiro objetivo ali. No céu sem estrelas e sem oxigênio ele via escrito aquilo que não só ele sentia, mas que só ele entendia. Mas ali, onde o céu não pesa, sentia os espinhos de sua coroa leves e decididamente doces, sentia que o pecado é uma interpretação errada de nossos sentidos para a queda, uma ilusão de ótica da lei da gravidade. E riu-se disso como quem ri de grandes verdades. E agora que ele entendia, agora que, em órbita alheia, não existiam multidões a lhe cercar, aviões nem automóveis, nem buzinas, carretéis, contas e promessas, ele viu. Ali ele se sentiu no lugar mais familiar de todo o mundo, como quem adormece na grama ou no abraço de alguém. Ali, o acalento que sentia tornou-se morno acolhimento, e ele deu o passo primevo rumo aquilo que sempre buscara mas não pôde encontrar em seu planeta, aquilo que busca todo astronauta: um igual.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

A arte profetizando a vida.

O cinema nos tira a tristeza da impossibilidade; nos dá a possibilidade de ser. Como disse Federico Fellini, cineasta italiano: "o cinema é um modo divino de contar a vida." Porque um filme não tem fim, não tem começo; só alimenta mesmo o seu amor por viver. E nós, amantes ou simpatizantes da sétima arte, nos sentimos deuses e nos encontramos em um pedacinho de cada personagem das telonas. Não podemos escolher o destino deles, mas assistimos a suas sagas, suas angústias, seus desesperos, seus sonhos e felicidades como se estivéssemos lá. Naquele mundo extraordinário, invisível e causador de um vazio viciante entre o ápice da história e o piscar da tela que indica as reticências da história que você só acompanhou o que pôde, o que viu. Uma linha tênue da criação do diretor e a da nossa imaginação.
Eu, como amante envaidecida do cinema, poderia passar dias falando das sensações e da importância que ele assume em nossas vidas, mas o que me traz aqui, é um filme específico.
Quando lançado, em 1997, "Gênio Indomável", do cineasta Gus van Sant, fora bombardeado pelos críticos por ser um filme convencional e "mainstream". É característica forte deste diretor, retratar o jovem norte-americano de forma elaborada. Matt Damon interpreta um faxineiro, o Will, com uma genialidade sem tamanho para a matemática. Um pobre rapaz que leu tudo, e que, apesar de sua inteligência nata, carrega uma auto-defesa disfarçada de arrogância e prepotência. Para "curar" estes traumas do passado que transbordaram nas atitudes do presente e o transformaram no rebelde com causa que é, Will têm vários embates com seu recente terapeuta Sean Maguire, interpretado por Robin Williams. Embates estes que são os momentos mais interessantes e emocionantes do filme.
Will é uma espécie noventista deste jovem nerd que estamos cultivando. Aquele que passa 20 horas por dia acompanhado de seu lap top, cafeína pra se manter acordado e remédio pra dormir quando sente que precisa descansar, óculos de grau e centenas de livros pra ler. Jovens que nos assustam com a quantidade de informação que conseguem guardar. Quem nunca aprendeu alguma coisa com uma criança de 5 anos? Bom, minha sobrinha ensina minha mãe a regular as cores da televisão e ela tem 7 anos. Não sei se estamos entrando numa geração perigosa, mas é assustador ver um jovem como este se achando dono de todas as verdades só pelo talento e genialidade que têm causados pela era dos megabytes. Só, Maísa?! Tudo bem, eu admito que também fico boquiaberta com o poder da argumentação destes, mas quais são as experiências de vida que estas pessoas têm? Já perderam um amigo? Tiveram que lidar com a morte? Se apaixonaram? Precisaram enfrentar uma fraqueza ou um medo pra conseguir algo que queriam? Ou passaram a adolescência se divertindo a beça com os joguinhos mais famosos da internet? Talvez encontremos um equilíbrio, um dia. Mas não é nossa realidade atual, em que as crianças são cada vez mais sedentárias, viciadas em fast-foods e coca-cola e ao invés de devorarem livros, devoram centenas deles e mais todas as páginas da web que cruzarem seu caminho "navegador". Lendo esta palavra, tive um súbito desejo de que estes jovens realmente pudessem navegar, velejar, jogar futebol um dia. No sentido literal, mesmo. Mas será que eles querem? Será que seus relacionamentos humanos começarão da maneira tradicional ou os namoros virtuais serão a única maneira de conseguir se casar daqui uns dias?
Confesso, eu estou com medo destas pessoas cada vez mais máquinas que nós estamos criando. Porque estes jovens e o futuro que estão construindo com seus presentes, não são só personagens de um filme futurista da humanidade provável de séculos adiante; o filme é baseado em fatos reais e com final muito previsível de pessoas infelizes com a realidade virtual que se submeteram. E nesta realidade cinematograficamente linda, será que as pessoas se emocionam?

Ainda não tenho a banda que eu quero....


Dos meus pseudo talentos e proto profissões a que eu menos revelo às pessoas é a de compositor. Sim, leitor, eu escrevo (tento) canções. Mas porque não apresento essas pérolas do cancioneiro ao mundo? Primeiro porque não tenho ainda a banda que eu quero, e essa é uma questão muito importante. A formação ficaria mais ou menos assim, dependendo da disponibilidade de cada músico, claro: Humberto Gessinger no baixo e vocal (óbvio), Neil Peart na bateria, James Hetfield na guitarra base, dividindo alguns vocais com o Gessinger, e eu no baixo. Dois baixistas na mesma banda? O sonho é meu não é, então eu ponho quantos baixos eu quiser. Só não decidi quem será o guitarrista solo, mas tô pensando. Curioso é que todos os músicos da banda são ótimos letristas. Isso é muito importante. Numa discussão sobre música cristã há uns dias atrás, em que eu criticava com veemência as letras chatas e repetitivas muito comuns a esse estilo, a resposta que eu mais ouvi foi que letra não importa. Como não importa? Como todos os demais usos da palavra, as letras de música representam não só o que seu autor pensa e sente, mas o que toda uma época vê como importante para ser pensando e sentido. Óbvio que existem vários sentidos pra uma mesma época. Ainda mais nos dias de hoje em que as metanarrativas foram abandonadas e vivemos em um tempo de pluralismo cultural. Mas há sempre um conjunto de sentidos que predomina, ainda que os motivos para isso não sejam unicamente culturais. Isso não quer dizer que os compositores falarão sempre do mesmo assunto, mas explica porque em determinados períodos os letristas tendem a abordar com mais frequência certos temas. Pensando sobre isso podemos analisar as letras dos que formam o comum das bandas de hoje. Novamente entramos no terreno perigoso e preguiçoso das generalizações, mas se preguiça não fosse bom não seria um pecado capital. Pois bem, é de se notar que as letras de grande parte das bandas de hoje falam muito de amor, externalizando sentimentos particulares que pretendem encontrar eco nos sentimentos dos ouvintes. Não há nada de errado com essa atitude a princípio. Primeiro porque todo texto que escrevemos é um texto sobre nós mesmos, não dá pra fugir do que somos. Segundo, o universo temático de um compositor pode ser unidimensional sem que isso seja ruim para o trabalho dele. Todas as letras de Robert Johnson falam sobre a vida e os sentimentos dos negros americanos nas décadas de 20 e 30, e são simplesmente geniais. Na verdade tudo é uma conjunção de fatores. Nossa época é uma época em que as pessoas ganham em exteriodade e perdem em interioridade. Em outras palavras somos o que parecemos ser. Vivemos sempre empurrando um outro, um personagem de nós mesmos nas nossas relações diárias. E como vivemos numa época de exterioridades esse personagem tem uma necessidade enorme de se exteriorizar. E o amor é sempre um ficha certa pra se apostar. Porque é um sentimento que se universaliza com muita facilidade. Desde o momento em que alguns mongezinhos na idade média inventaram o amor romântico como uma saída para a condenação da igreja sobre o sexo (as pessoas precisavam transar pra repovoar a Europa devastada pela peste negra, mas a atitude da igreja era de condenação extrema às práticas sexuais realizadas fora do casamento) todos nós sofremos dele em algum momento de nossa vida. Então escreva uma letra dizendo que ela te deixou que sempre vai ter alguém sofrendo por isso pra cantá-la. Mas há uma questão aqui. A exteriorização massiva desse sentimento gerou um esvaziamento do mesmo. Tantas canções falando de amor, amor isso, amor aquilo, que no final fica chato. Soa falso, vazio. Tudo fica tão universalizado que sentimos falta do particular por trás daquilo, do singular, da pessoa que escreveu a letra. Se me mostrarem uma letra do Nx Zero e outra do Cpm 22 eu nem sei dizer qual banda escreveu o quê. Os sentimentos ficam tão pasteurizados em fórmulas que ninguém mais acredita neles. Onde há amor demais não há amor nenhum. Dizer "eu te amo" não pode ser uma coisa fácil. Da mesma forma, letras religiosas repetem sempre a mesma fórmula, do deus amor, luz, poder, e etc. Como as letras satanistas também o fazem. Como eu disse antes, um letrista pode ter um universo temático bem limitado e ser talentoso ainda assim. Ouvindos os discos da Cidadão Quem isso é facilmente perceptível. As letras do Duca, que em início de carreira foi acusado, injustamente, pelos críticos de ser um ótimo guitarrista mas um letrista mediano, falam muito de saudade. Muito mesmo. Saudades da infância, dos amigos, vivos ou que já se foram. Saudades de casa, de um sonho acerca do mundo, do amanhã colorido que veio, ou que não veio e que talvez nunca venha. Mas o melhor, quando se ouve as canções se sente a saudade. Saudades de uma praia que não se conheceu, de um Jimi que não se chamava Jimi e que também não conhecemos, de um Falcon perdido há muitos anos atrás. Meu Falcon foi abatido em missão, devorado pelo Poddle toy da minha vizinha. Teve um funeral digno de um soldado. Mas mesmo quem não teve um Falcon sente saudades dele. Mas as saudades não são nossas, são do Duca. É aí que está. Numa época em que todo mundo escreve e fala pra universos inteiros, um cara que fala de si, do que viveu, do que sentiu, comprova o que outro gênio nessa arte já cansou de dizer, que nenhuma canção é maior do que a vida de qualquer pessoa. A rua em que ele cresceu, a casa em que morou, os amigos que fez, tão parecidos com nossa rua, nossa casa e nossos amigos é muito maior do que todas as canções de amor incondicional e os "ela me deixou" que ouvimos por todos os lados. Bob Marley, se vivo fosse (que Jah o tenha) ficaria muito feliz, mesmo não conseguindo cantar canções de liberdade, somente canções de redenção. Porque hoje, até redenção é algo raro. Como disse sou um proto compositor. Acabei de escrever uma canção. Acho que é sobre amor, mas não tenho certeza...ainda.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Com quais carneiros você sonha?


Histórias de homens e seus duplos são muito comuns no ocidente. Talvez pela importância que, na história do conhecimento, demos à lógica binária e à ideia de simetria. Talvez porque, dentro da tradição judaico-cristã o homem não seja muito mais do que um duplo de Deus: Imago Dei. Criado à imagem e semelhança de Deus, Adão foi animado do barro, do inorgânico. Duplo de Deus o homem já começa sua história agindo como o seu original, organizando, nomeando, ordenando. Deus cria o mundo com o verbo, Adão o faz funcionar com o mesmo recurso. Não demora para que o duplo queira fazer o mesmo que o criador e tornar-se, ele mesmo, criador. Criar vida a partir do inorgânico. Na mitologia judaica, na verdade até mesmo antes dela, era comum a figura do Golem, um ser animado que era criado por alguém a partir de matéria inanimada. O termo Golem é uma derivação da palavra gelem (גלם), que significa "matéria prima". Adão é tratado no Talmud como um Golem e assim como ele todos os golens nasceriam do barro. Assim como Adão os golens também são animados pelo verbo, pela palavra, mais propriamente pelo termo Emet (אמת, 'verdade' em hebraico), afixado em sua testa em uma folha ou placa de argila, e seriam destruídos quando a primeira letra fosse apagada, gerando a palavra Meit (מת, 'morto' em hebraico). A alquimia tem a sua própria versão do Golem, o chamado Homúnculo, pequenos seres humanos (Paracelso os descrevia com 12 polegadas de altura) criados por outros humanos através de processos artificiais, muitas das vezes envolvendo práticas animalcultistas como tentar fecundar um ovo de galinha com esperma humano, cobrindo o orifício da casca com sangue de menstruação ou através do aquecimento de semém fechado em um recipiente de vidro durante quarenta dias. As fórmulas eram as mais variadas, mas todas prometiam criar um ser humano sem a necessidade da reprodução sexuada. Somente no século XVIII o Padre Spallanzani acabou com a festa dos animalcultistas provando a necessidade da união dos gametas de mesma espécie para o surgimento da vida. A partir daí muitos ovos de galinha foram deixados em paz ou transformados em simples omeletes. A lenda dos homúnculos inspirou a escritora Mary Shelley em sua história mais famosa, o romance Frankenstein, ou o Prometeu Pós-Moderno (Prometeu foi um Titã_um titã da mitologia grega, que fique bem claro, não um integrante daquela bandinha horrorosa_ que também teria o poder de criar a vida a partir do inanimado, junto com seu irmão Epimeteu). No romance de Shelley, o Dr. Frankenstein cria um ser a partir de partes humanas mortas. Retratado inúmeras vezes como um monstro pouco inteligente, a criatura do livro original é inteligente e sensível, sucumbindo ao desespero trazido pela consciência de si mesmo. Numa época em que a racionalidade se fixa como o sentido preeminente do mundo, Frankenstein não só põe esse sentido em xeque, mas através do duplo, do ser criado, investiga uma humanidade que se esqueceu de ser humana. Frankenstein inaugura uma série de duplos dos homens mais humanos que esses últimos. A ficção nos dá exemplos dos mais variados. Para não desesperar o já entediado leitor me prenderei a dois. O primeiro, mais recente, é a criança robô de A.I. (no Brasil, Inteligência Artificial, ano de 2001, filme que começou a ser dirigido por Stanley Kubrick, mas que, em decorrência de sua morte foi realizado por Steven Spielberg). No filme um casal "compra" uma dessas crianças andróides, chamada de David, com capacidade cognitiva próxima a dos humanos. Vários acontecimentos levam ao abandono de David, que passa o filme tentando reencontrar sua "mãe". Num mundo dominado pela tecnologia e pela ciência, David se mostra extremamente mais humano que os personagens dessa espécie no filme. A feira de carne, onde andróides obsoletos e acusados de crimes são horrivelmente destruídos, denota bem a inversão de papéis. Na tela os humanos de verdade são aqueles feitos de circuitos e fibras sintetizadas. O mesmo ocorre num outro filme, Blade Runner, ano de 1982, do diretor Ridley Scott, em que um caçador de andróide (blade runner), aposentado, vivido por Harrison Ford, é obrigado a retornar à ativa para "aposentar" um conjunto de Replicantes rebeldes. Os Replicantes eram andróides criados à imagem do homem para trabalhar nas inóspitas condições das colônias espaciais. Com o tempo eles começam a desenvolver um temperamento agressivo, devido ao curto prazo de vida de quatro anos levar a uma rápida deteriorização de suas capacidades cognitivas. O grupo rebelde busca seu "criador" para conseguirem uma vida"real", assim como David procura pela fada azul, com o mesmo propósito, em A.I. Os Replicantes demonstram sentimentos e desejos humanos mais plenos do que os humanos normais, vivendo em uma distopia arrunaida onde sonhos e esperanças não mais existem. Numa das cenas finais, o Replicante Roy Batty (Rutger Hauer), protagoniza uma das mais belas passagens do cinema, evocando as coisas que viveu e conheceu e que naquele momento estariam a se perder como as lágrimas que vertia sob a chuva torrencial. O filme é baseado num conto de Phillip K. Dick, Do Androids dream of Eletric Sheep?. Dizem que Dick detestou o filme. Mas os duplos que criou, os Replicantes, nos trazem a dúvida sobre o sentido da própria ideia de humano. Numa época em que o pluralismo é um caminho para a própria sobrevivência do homem na terra, repensar o mundo não como o berço dO Sentido, mas dOS Sentidos é fundamental. Por mais que duplos dos humanos que os criaram, os Replicantes criaram sentidos e interpretações que humano nenhum poderia criar para entender sua vida. O mesmo com o monstro de Frankenstein ou com o pequeno David. Nietzche dizia que se as moscas tivessem consciência de si se veriam como o centro voador desse mundo, e que se os carneiros tivessem um deus esse deus também seria um carneiro. O sentido antropomórfico do mundo, a colocação de nosso selo de humanos sobre o planeta que vivemos é nossa marca indelével. Contudo, muitas vezes ele é sobreposto por sentidos que se pretendem maiores e mais universais, como religiõs, culturas, interesses econômicos. Então ser cristão passa a ser mais importante que ser humano. Ser ocidental também. Ser branco, ser homem (masculino), ser desenvolvido. Externalidades maiores que a humanidade em si e que nos faz projetar nos nossos duplos ficcionais o humano que perdemos em nós mesmos. Se os replicantes sonham com carneiros elétricos, como são os carneiros com os quais você sonha?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Dúvidas nascidas a partir de um jogo...


Quando a idéia desse recipiente coletivo de idéias petulantes, por vezes imaturas, por vezes maduras e no mais das vezes maturadas surgiu, a pretensão era criar um espaço para que três pessoas pudessem dividir suas impressões e visões sobre o mundo. Acho que está dando certo até agora porque não temos ambições muito maiores do que dividir certos horizontes com os outros, e, obviamente, dominar o mundo no processo (rsrs). Mas o fato é que a repercussão desses pequenos textos tem nos deixado muito felizes. A mim particularmente. Uma dessas repercussões se solidificou em um outro texto. Um grande amigo meu, o Professor Fernando Gomes Schettini, inspirado pelas peças de xadrez de meu post sobre insônia, me enviou um texto tão bom que seria muito egoísmo da minha parte não colocá-lo aqui. Fico muito honrado e feliz com isso, porque o Prof. Fernando e eu já travamos uma amistosa competição proto literária, que não sabemos quem ganhou, mas que rendeu não só cômicas e interessantes linhas, mas cimentou uma amizade já muito sólida e muito forte. Cumpade, brigado pelo texto, sei que não dá pra explicar uma piada aqui, mas posso te garantir que ficou um presépio (rsrsrs) Abração.


DÚVIDAS NASCIDAS A PARTIR DE UM JOGO


Sou também, assim como o Prof. Ramon, um empurrador de madeira. Empurro mal, mas empurro. Antes, porém, que me julguem um pervertido, ou pensem que eu entrei no blog errado, esclareço que empurrador de madeira é a maneira como chamam aqueles que jogam xadrez sofrivelmente, sem o mínimo domínio das partidas clássicas, das aberturas tradicionais e suas variantes. Jogo xadrez apenas por achá-lo um jogo intrigante, não somente pela lógica e raciocínio que devemos empregar durante uma partida, mas também por ser um jogo extremamente formoso. Quando via na TV pessoas jogando xadrez, ficava intrigado com a forma das peças que sequer sabia o nome e questionava-me sobre suas competências e atribuições, etc. Diante desse mistério, resolvi que compraria um tabuleiro de xadrez. O critério de escolha não foi a beleza das peças ou o tamanho do tabuleiro, mas a grossura do manual de instruções: um que trouxesse o máximo de informações sobre o jogo. Com um tabuleirinho pequeno com peças minúsculas e um manual não tão fino, comecei aprender a jogar xadrez. Com a leitura do manual pude perceber que cada peça, excetuando os reis e peões, trazia estampada em si a sua personalidade, o signo de seu movimento de seu destino no tabuleiro: as torres possuem quatro muradas, indicando as quatro direções que podem se movimentar pelas linhas verticais e horizontais do tabuleiro; os cavalos, que andam fazendo cabriolas semelhantes a um L maiúsculo, trazem um ângulo no encaixe do pescoço com a cabeça, formato que insinua a curva de seu movimento; os bispos usam uma mitra com um corte diagonal; e as damas ou rainhas não dispensam suas coroas de oito pontas, cada uma delas indicando uma das oito direções nas quais podem se movimentar. Interessante é que essas formas correspondendo às competências tiveram um efeito estranho sobre mim: toda vez que tirava as peças do saquinho para jogar, via em cada uma delas a personagem cavaleiro, peão, rei, como se cada um daqueles pequenos totenzinhos trouxesse em seu interior o seu poder, sua natureza, seu movimento, sendo bem mais que baratos objetos feitos, ou melhor, mal feitos, de plástico injetado. Demorei a perceber que o movimento das peças não lhes era natural, não havia nascido com elas, mas lhes era externo, atribuído por quem as movimentasse. Enfim, o movimento não estava contido nas peças, mas nascia, em todos os sentidos, mediatamente ou imediatamente, do homem. Essa confusão promovida pelo xadrez levou-me a questionar: O que é natural e o que é criação humana nesse mundo? Será que tudo aquilo que atribuímos valor tem realmente o valor que lhe é atribuído? Será que esses valores não são postos e repetidos à exaustão para que, enfim, passem por naturais? E se falso esses valores, será que beneficiam alguém ou algum grupo? Lembro-me da entrevista de um grande publicitário, se afirmasse que foi o Washington Olivetto correria o risco de errar, o qual disse que o profissional da propaganda deve ter em vista que a última utilidade de um automóvel seria carregar pessoas, que um carro serviria para vencer complexos, abrir portas, dar status, preencher vazios, curar depressão, etc. Na verdade, para alguns, um carro serve até mostrar o quanto uma pessoa é melhor que as demais. Mas que carro é essencialmente para carregar pessoas, isso é, e ninguém vai me provar o contrário! O fato é que se criam representações sobre tudo: coisas, comportamentos, idéias, pessoas, cargos, funções, regras, leis e tudo quanto há. Constata-se, pois, uma necessidade: questionar, medir, saber quanto vale. Questione o valor, a substância, o que contém, a quem interessa o cargo público que ocupa, o automóvel que pretende comprar, o par de sapatos, sua mulher, seu namorado, o direito de propriedade, o idéia de amor, um prato de comida, um cafezinho, o seu contracheque, a crise, as falas de seus pais, uma moringa d’água, a campanha antipirataria de CD’s, o valor do salário mínimo, o sucesso do padre Fábio, as infinitas e enfadonhas possibilidades de consumo, a notícia no jornal, um velho episódio do Pica-Pau, os super iates, as fotos do Salgado, drogas com e sem CNPJ, questione esse texto, esse blog, e a pretensa necessidade de questionar e, se sobrar tempo, questione a forma e o conteúdo de sua vida... Será que dá para dormir em paz sem drágeas ou, pelo menos, uns chopes gelados?


Fernando Gomes Schettini.

Chame do jeito que quiser...

Eu me questionei sobre o valor ou a importância que possa ter a forma, conteúdo e função, porque um amigo me perguntou o que havia ganhado de aniversário e a minha resposta foi sobre o conteúdo e função, mas ele estava mais preocupado com a forma. Pois bem, ganhei um pen-drive com vários discos, entre eles o “Love” e o “Revolved” dos Beatles, “I'm not there”, trilha do filme do Dylan e “Racional”, do Tim Maia. Dizem que quando não damos importância a alguma coisa não pensamos nela. Acho que é verdade. Minha resposta não falava do pen-drive, só se referia aos nomes dos discos, e meu amigo então questionou se era em cd, lp ou mp3. Esta informação era meticulosamente importante pra ele. Particularmente, eu gosto do material físico, gosto do cd, do lp, das revistas, dos livros com páginas amareladas. Os e-books me incomodam, só leio em último caso. Já os mp3, adoro! São excelentes soluções pra quem não tem oportunidade de ter acesso à arte em geral ou pra quem quer ouvir música no caminho do trabalho ou da faculdade. Há um certo romantismo que me atrai em colecionar objetos, que não são só objetos para quem admira e vê genialidade naquilo que foi feito. Há romantismo em colocar o vinil pra rolar. Não é só a qualidade que influi nas nossas paixões pela forma, mas a emoção ao ouvir um disco ou ler um livro. A experiência que a audição proporciona não pode ser medida pela forma. Ao menos, não totalmente. A obra sustenta todo um processo de criação que deve ser dedilhado para alcançar cada emoção, sem ser injusto com o cartaz trash de um filme foda, por exemplo.
De que vale a forma sem a função? O fato é que somos limitados previamente por não notarmos todos os pontos de vista e entendermos quais as óticas utilizadas pra explicar verdades diferentes das nossas. Culturalmente e naturalmente, estamos pré-dispostos a avaliar, até para análise da primeira impressão, a forma, o material, a cor da embalagem. Alguns não conseguirão ver além dela e perceber o conteúdo e as funções se tornarão subjetivas e talvez incapazes. O que cabe ressaltar é que nós, enquanto humanos, estamos precisando de uma reforma no nosso modo de pensar sobre o conteúdo, antes que acabemos definitivamente com a embalagem que se tornou o nosso mundo, em que se salvam por pouco os que têm sensibilidade. A melhor forma de conter é funcionando.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Basilisco e Aristóteles: forma e conteúdo?


Rezam os bestiários que o Basilisco nasceria de um ovo posto por um galo e chocado por um sapo, ou rã (não me lembro bem a natureza do batráquio) e teria o poder de transformar em pedra todos que olhassem pra ele diretamente. Bom, apesar de algumas diferentes versões sobre o assunto, todas apresentam o bichinho com formas (por isso ele se encaixa no nosso tema) um tanto quanto interessantes. Dizem uns que ele seria uma serpente gigantesca com escamas de fogo e olhos amarelos, outros que ele teria cabeça de cobra, corpo de galo, asas de dragão, cauda de cobra (a cobra não seria inteiramente uma cauda?) e pés de galo (amedontrador, não acham?) A única constante na maioria das versões é que o Basilisco possuiria uma crista no formato de coroa. Daí o seu nome. Basilisco significa ‘Reizinho”. Mas o que mais me impressiona não são as formas um tanto quanto rocambulescas da criaturinha. Mas o fato dele ser uma das mais figuras mais constantes nos bestiários medievais, com descrições extremamente minuciosas, apesar da falta de lógica de sua história. Ora, se o bicho transforma em pedra aquele que o vê, como pode existir uma descrição física do mesmo? Quem o viu para fazer tal coisa teria se tornado pedra, não? Não tem lógica nenhuma. Alguém mais crente poderia argumentar que, segundo a história, o reflexo do Basilisco num espelho ou no metal polido não produziriam o górgone efeito petrificador. Mas como eu sou chato eu lembraria que na Idade Média a metalurgia, que havia se desenvolvido bastante com os romanos, tinha praticamente se perdido e que por questões econômicas e políticas poucas pessoas podiam ter espelhos, armas ou outros objetos de metal polido. Enfim, para decepção geral o Basilisco não existe. Mas temos um bichinho tão estranho quanto. O ornitorrinco é um mamífero que põe ovos, tem bico, pelos, membranas entre os dedos das patas, hábitos anfíbios. Em termos de forma ele também não se deu muito bem não. Mas a forma é uma questão filosófica muito antiga. Aristóteles desenvolveu o assunto profundamente. Para ele na ausência de movimento temos a matéria e a forma. A forma é a realização da essência de algo. A identificação de matéria e forma em Aristóteles é bem diferente da nossa. Pra ele a forma cama vem da própria essência da cama, ou seja, de ser um objeto sobre o qual dormimos, pouco importa, se, acidentalmente, essa cama seja de madeira ou metal. Se dermos uma nova forma à substância que compõe a cama essa (a cama) então deixa de existir, mas sua substância resiste sob outra forma. Toda matéria, segundo Aristóteles, caminha para o desenvolvimento de uma forma, podendo passar por diversas delas. Por exemplo, o teclado onde eu estou digitando isso e o monitor onde você está lendo já tiveram outras formas. Nesse exato momento estou digitando isso sobre as costas de um dinossauro, que morreu, se transformou em combustível, que virou plástico, que teve umas letrinhas impressas e veio parar aqui em casa. A forma dinossauro mudou, mas a substância que a compunha ainda persiste, pressionada pelos meus dedos. Pode parecer uma coisa boba mas quando me dei conta disso (obrigado Prof. Galuppo), nunca mais olhei pra uma caneta do mesmo jeito. Isso ao que chamamos forma seria o acidente, que não altera a essência das coisas. A palavra monstro, do grego teras, classificava justamente aquilo que não estava de acordo com uma forma, como no caso do Basilisco. Não é de se espantar que os recém nascidos com defeitos físicos fossem sacrificados, eles não poderiam atingir a forma que se espera de um homem. Cheguei ao ponto que eu queria. Eu acho. Quero falar de monstruosidades, de formas obscenas, de coisas tão irracionais quanto o Basilisco mas tão reais quanto o ornitorrinco. O mundo de hoje é o mundo do desenvolvimento irracional das formas. Da obscenidade constante. O obsceno é aquilo que ultrapassa seu espaço, os limites de sua cena. O obeso é obsceno porque ele é mais gordo que o gordo. Assim como a pornografia, mais sexo do que o próprio sexo. As formas que se extrapolam ao ponto de se tornarem disformes, teratológicas, monstruosas. Na nossa atual ciência, que Pierre Legendre chamou muito educadamente de ciência de açougueiros, o que importa é a forma, dissecar e classificar os pedaços. O amor e todos os sentimentos são reduzidos à ação de genes, hormônios e enzimas. Qualquer explicação que ultrapasse o biologismo e a ação das partes é considerada romântica e atrasada. Antes a imago dei, hoje um monte de células. Paralelo a isso cresce a burocratização e especialização do mundo. Não é a toa que a história das ciências biológicas sempre andou de par a par com a história das instituições. Assim como na biologia, com seus genes e células isolados, com se genoma mapeado, somos socialmente celulares, seres individuais, separados. Assim como na biologia, em que a guerra de todos contra todos, na seleção darwinista do mais apto é a tese mais aceita, nosso individualismo e egoísmo, nosso embate contra todos também é aceito como normal e necessário. Sempre a repetição obscena e fatal das formas. Como no câncer: a menor forma se multiplicando ferozmente até devorar o todo. A parte que se sobrepõe. As imagens de TV que mostram tudo ao mesmo tempo, num espetáculo em si mesmo também teratológico, nos embota de tal forma que os problemas da novela acabam se tornando mais importantes que os problemas da economia ou do conflito em Israel. Outra obscenidade: onde há informação demais não há informação nenhuma. Como nos canais de propaganda: nada a se dizer vinte e quatro horas por dia. Nesse jogo do contente, o outro não importa. Eu quero que sua alteridade não seja nada mais que uma projeção do que eu quero, que ele adote as formas que importam pra mim. Que conteúdo? Quero que seja bonito, que se vista bem, que fale direito, que estude numa boa faculdade, que tenha um carrão, que fale javanês e dance forró. Não quero o outro. Quero aquilo que eu gosto corporificado, formalizado, oficializado e carimbado. Falando em carimbo nossa fé nas formas é tão estúpida que ainda dependemos de cartórios, de cinco vias, de formulários, de autenticações e firmas reconhecidas. Como se um contrato formalmente reconhecido que retira centenas de pessoas de suas casas fosse melhor que um contrato de grilagem que faz o mesmo. Somos a representação formal dos perfeitos idiotas, com carimbo, firma reconhecida e tudo o que é de direito. Talvez por isso o Basilisco não nos meta medo como fazia com os medievais, porque o mundo que criamos é infinitamente mais monstruoso que ele. Falando sobre formas, fica a pergunta do chapeleiro maluco à Alice: qual a semelhança entre uma escrivaninha e um corvo?

Divagações sobre forma e conteúdo

Confesso a vocês que quando propus aos meus colegas o tema conjunto, achei que seria uma missão simples. Vivo citando esta diferença entre forma e conteúdo, portanto racionalizar sobre ela seria tarefa de fácil resolução. Ledo engano! Comecei a pensar nas regras, e vi que há entre elas muitas exceções.
O fato é que me recordei das aulas de comunicação, em que estudávamos os teóricos como Mcluhan, cuja célebre máxima "o meio é a mensagem" é o que mais se aproxima do que quero dizer. No entanto, é preciso separar o joio do trigo, até porque acho necessário que sejamos claros em nossos textos, para que não cansemos nossa meia dúzia de leitores fiéis. Quando McLuhan teorizou sobre o meio e a mensagem, quis dizer que o meio de comunicação pode influir diretamente na mensagem a ser direcionada ao receptor. Ok. É óbvio que ouvir música no iPod é diferente de ouvir na eletrola. Mas diga, meu caro leitor: o que muda na forma de absorver o conteúdo? A maior vantagem que vejo nesta relação é a mobilidade. O iPod ou o mp3 player pode te acompanhar onde quer que você vá. Mas ora, dirão alguns, isso o walkman também permitia! É verdade. Mas quantas músicas cabiam numa fita k-7? Para alguns, talvez isto não seja problema, pois é comum (acontece comigo às vezes) passar dias ouvindo a mesma música ou álbum. Enfim, o que quero tentar demonstrar é que pode ser belo ter apreço por um formato, como os discos de vinil. O que não se pode é permitir que o suporte seja mais importante do que o conhecimento a ser adquirido. Que importa se você está lendo estas linhas mal escritas num monitor de LCD ou na folha que você imprimiu no trabalho para ler durante a volta para casa? Importa se isso é um blog ou um portal corporativo? Seria a casca da fruta mais importante do que seu sumo? Vale a máxima do futebol, quando trata de times grandes, em que "a camisa pesa"?
O que é certo e inadiável é que há, na música principalmente, um processo de ruptura. "In Rainbows", do Radiohead, não é o primeiro caso, mas deve ser o mais emblemático dos dias atuais. O que vale mais ser comentado? A forma como o álbum foi disponibilizado (para quem não se lembra, foi disponibilizado para download, com o consumidor decidindo quanto pagaria pelas faixas) ou a qualidade das canções gravadas? É romântica a idéia dos álbuns conceituais, a música de trabalho, a ordem das faixas. Mas isso também é possível de ser feito de algum modo, mesmo com a ausência do material "físico". Mas é legal saber que o ouvinte agora tem mais liberdade para customizar suas escolhas.
Por fim, preciso dizer que ainda tenho muito mais dúvidas do que certezas sobre o tema. Espero que meus colegas se saiam melhor do que eu em suas análises. E você, prezado leitor, o que pensa disso tudo?

Momento "A palavra é..."

Nós, humildes seres petulantes e questionadores (e desde quando seres petulantes são humildes?) combinamos em uma de nossas reuniões de pauta virtuais que escreveríamos sobre um tema específico, cada um dando sua visão. O tópico escolhido para abrir esta série é "Forma e Conteúdo", sobre o qual dissertaremos. Boa sorte para nós!

domingo, 11 de janeiro de 2009

Bom, mais uma madrugada, mais um post. A insônia é uma esposa ciumenta, dessas que não gostam de dividir a gente com ninguém. Se eu estivesse com amigos agora ela provavelmente teria vindo pra casa sozinha e me deixado lá, bocejando de sono. E é uma esposa ingrata também, dessas difíceis de agradar. Não importa quantas noites você passe com ela, ela sempre quer mais uma. Insônia e eu nos conhecemos na infância, eu devia ter uns dez anos, ela já era beeeemmmmm mais vivida, já tinha passado noites e noites com outros, na verdade ela nunca foi muito fiel não. Mas é aquela coisa, a gente nunca escolhe a insônia, ela é que escolhe a gente. E com dez anos eu fui escolhido. De lá pra cá eu e ela vivemos uma tórrida história, repleta de noites em claro, olheiras matinais, livros lidos e relidos e ligações impertinentes de amigos bêbados às quatro da manhã. Passada a crise dos sete anos, nosso casamento deu uma melhorada. Ela se tornou minha companheira de estudos, de xadrez, de textos escritos e descartados, de interpretações filosóficas e antropológicas sobre o mundo. O mundo dos seres notívagos é silencioso e subreptício o suficiente pra nos encher de perguntas irrespondíveis. Somos assaltados pelo assombro morno de uma dúvida a cada instante da madrugada. Dúvidas que muitas vezes se esvaecem com o amanhecer, como se só fizessem sentido sob a gravidade da Lua. No fim das contas você sabe que elas voltarão e acaba não se importando muito quando elas somem. O tédio de uma noite insône nos ensina muito. Ensina demais. Vida e morte são coisas que a gente faz quando está entediado. Um verso do John Cale, da música Fear. Queria muito ter escrito isso eu mesmo, captar uma coisa assim, uma verdade dessas, não é pra comedor de feijão que nem eu. Mas voltando à insônia. No mundo sublunar dos que não dormem (né Maísa?), os sons são outros, os cheiros também. Nossa intimidade com as luzes artificiais é maior do que nosso contato com o Sol. É um perigo para o insône pensar demais. Se ele desenvolve a consciência de que está sozinho com sua esposa infiel, a insônia, é pior ainda. A solidão só é real na escuridão, naquele momento da noite em que somente um carro distante ou o cachorro do vizinho rompem o silêncio. Na hora em que a tv é dos pastores e das atrizes pornô e que as janelas estão todas cerradas por conta do frio ou de um medo mudo. O pior castigo pra um insône é um quarto de hotel de uma cidade distante quando você está a trabalho (como todo trabalho, um trabalho chato) e não há ninguém há quilômetros que se importe contigo. Gosto de road movies, road books, road songs, gosto da estrada, em suma. O clichê de subir num ônibus ou conseguir uma carona com um livro do Kerouack na bagagem sempre me agradou muito. Gosto de fazer playlists de canções de estrada, canções que falem de lugares, de viajar. A metáfora da vida enquanto viagem também é interessante. É uma pena que a maioria das religiões se preocupe muito mais com a chegada do que com a viagem em si. Viagens são ótimas pra que se veja as coisas sob outra perspectiva. Pra que se ponha as certezas em dúvida. Viagens são ótimas pra retirar o bolor do nosso cotidiano acomodado, pra esquecer a voz do chefe, pra sentir saudades dos amigos. Mas não falo do pacote turístico cinco estrelas nem da tour preparada cinco anos antes. Legal é viajar com poucos planos e com pouco dinheiro (tá, com um dinheiro razoável). Por que? Porque é preciso um mínimo de insegurança para que uma viagem seja realmente boa. É preciso duvidar, é preciso ter receio, é preciso tentar. Uma viagem em que trazemos conosco o cotidiano não é viagem, é um deslocar-se vazio no espaço. Na metáfora da vida enquanto viagem isso também vale. É preciso se perder sempre no caminho da viagem. Admitidos como somos, achamos o cotidiano necessário demais para o colocarmos em xeque. Movemos poucas peças, saltamos com os cavalos, talvez, delizamos um ou o outro bispo, mas não mexemos nas torres, nem na Rainha nem no Rei. Não queremos sacrificar os peões, eles representam segurança, um obstáculo contra o avanço inimigo. E esperamos. Esperamos com os olhos no cotidiano. Até que em três movimentos: xeque-mate. Caímos e vemos o quão estúpido fomos em não arriscar no jogo, de não saltar mais longe com os cavalos, de mover torres inteiras com um único ato de vontade. Na estrada xadrez da vida há inúmeros pontos sem retorno, há inúmeras encruzilhadas, milhares de desvios e caminhos perigosos e sensuais como aventuras que não nos contavam na infância. Há inúmeras chances de xeque e ínumeras chances de derrota. Não há o pronto, o certo, o destino, o anti acaso. Tudo é como tudo poderia ter sido. Eu poderia estar dormindo agora, mas a insônia ainda me conta histórias antediluvianas de caminhos, indas e vindas. E eu sorrio pra ela como um companheiro satisfeito, mexendo o cavalo da rainha mais uma vez antes do fim da viagem.

Faz toda a diferença

Tava acompanhando o post recente do Ramon sobre a mudança na grafia da palavra "idéia" (confesso que acentuei automaticamente) e me veio o caso do "apóio", o verbo, que virou "apoio", grafado de modo similar ao ato e jogando a responsa para o orador. Esta minha divagação acabou me fazendo recordar de casos que conheci há tempos e que demonstram como a interpretação faz toda a diferença no entendimento de algo. Um caso, que aprendi nas aulas do grande professor Rodolfo Nakamura, foi a frase "Eu não disse que ele errou", que tem cinco formas de ser compreendida, sem que se acrescente uma vírgula sequer, trabalhando apenas com a entonação. Para ilustrar, a entonação será representada com caixa-alta:

1) EU não disse que ele errou.
2) Eu NÃO disse que ele errou.
3) Eu não DISSE que ele errou.
4) Eu não disse que ELE errou.
5) Eu não disse que ele ERROU.

O segundo caso é exatamente o inverso. Na história, já popular, encontrada em muitos lugares pela blogosfera, as mudanças na pontuação são o que determina o destino da herança oferecida:

A Herança

Um homem rico estava muito mal, agonizando. Pediu papel e caneta. Escreveu assim:

'Deixo meus bens a minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do padeiro nada dou aos pobres.'
Morreu antes de fazer a pontuação. A quem deixava a fortuna? Eram quatro concorrentes.

1) O sobrinho fez a seguinte pontuação:
Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

2) A irmã chegou em seguida. Pontuou assim o escrito:
Deixo meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

3) O padeiro pediu cópia do original. Puxou a brasa pra sardinha dele:
Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

4) Aí, chegaram os descamisados da cidade. Um deles, sabido, fez esta interpretação:
Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro? Nada! Dou aos pobres.

Moral da história:
A vida pode ser interpretada e vivida de diversas maneiras. Nós é que fazemos sua pontuação.
E isso faz toda a diferença...

sábado, 10 de janeiro de 2009

Fotografando o mundo com a alma

Companheiros e companheiras do meu blog coletivo querido,

Claro que as opiniões expressas por esta redatora que vos fala são de total responsabilidade dela mesma! O que não garante nada a ninguém, já que responsabilidade não é o meu forte. Hoje após o almoço, fui ao mercado com meu pai e numa observação destas estonteantes, fiz alguns questionamentos que ainda não consegui me responder. No caminho, passamos por um semáforo com crianças que há muito tempo não sabem o que é banho, provavelmente não frequentam a escola e estavam ali, 'trabalhando'. Umas pedindo esmolas, outras vendendo balinhas. Sinceramente, nunca sei o que fazer quando vivo situações assim. Porque o meu lado mulherzinha quer ajudar por pena daquela criança estar com fome e outro lado sabe que isso só piora as coisas. O famoso tapar o sol com a peneira, que, se não é um problema humano, com certeza é um defeito bruto do brasileiro. Por dor ou por amor, ajudei. Mas, vem cá, até quando eu serei só a menina branca que 'ajuda' o moleque das ruas que não tem o que comer? Longe de querer ser politicamente correta, clichê ou repetitiva, porque estes assuntos estão todos os dias nos principais jornais, mas não dá pra ignorar que este mundo feio e triste aí é nosso. E eu perguntei pro meu pai quando avistamos a possível mãe de um dos moleques xingando-o e gritando com ele como se ele fosse um escravo: "onde é que nós estamos indo? Onde é que estamos querendo chegar?" Não é do capitalismo, nem do governo que quero falar. Quero falar de nós. Discordo quando dizem que é hipocrisia ajudar o maltrapilho da esquina. Eu ajudo porque tenho pena e porque, admito minha enorme fraqueza e ignorância de não saber mais o que posso fazer. Fico apavorada quando me dou conta de que, quando ajudo uma pessoa, outras várias estão nascendo naquele momento e terão o mesmo destino, senão pior que aqueles que cruzaram meu caminho aquele dia. No mercado, alguns enchem o carrinho de sobrevivência, outros de prazeres. E eu estou me sentindo um lixo humano e pensando: - o que será que aquelas crianças sonham? Ver um eclipse? Tomar um milk-shake com uma garota legal feito eu? Ir pra escola e ter o que comer no Natal? O que será que faria estas crianças felizes? Eu sei que elas não sentem fome só no Natal, mas também sei que é a data do ano que esta fome mais dói. Afinal, viemos de uma sociedade cristã. Muitas delas perguntam onde está Deus com suas ceias natalinas. Outras, cobertas com um pedaço de jornal, ouvindo os sinos da igreja, olham as luzes da cidade e tentam imaginar qual é o sabor de um panetone. Não é a injustiça, nem a desigualdade que mais incomodam, é a desumanidade. É insuportável saber, que para aquele menino, a moça de dentro do carro que deu o dinheiro de um lanche pra ele, seja só um sim dentre tantos nãos que ele escuta. Que a moça que sorriu pra ele, sorri porque não conhece a vida que ele leva. É insuportável a sensação de cúmplice que dá, quando o semáforo abre e a gente continua a vida como se nada tivesse acontecido. Mas... o que fazer? Eu, quando decidi postar sobre isso aqui no blog, fiquei envergonhada. Porque o garotinho está fazendo parte de uma marmita coletiva, e tudo que ele mais quer neste momento, é literalmente uma marmita. Será só mero acaso estarmos aqui? Eu, sinceramente, não sei... e não saber, neste caso, dói, dói muito!

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Festa com cerveja quente

A reforma ortográfica fez hoje mais uma vítima. Venho tentando escrever da forma recentemente convencionada desde que soube das mudanças. Mas hoje, remoendo alguns vícios e livros mezzo esquecidos tropecei com a palavra idéia escrita em letras brancas sobre o fundo vermelho de um livro sobre a história do movimento anarquista. Na verdade foi o primeiro grande livro sobre esse assunto tão importante e tão esquecido, saído da pena de George Woodcock. O trabalho é dividido em duas partes: História das idéias e movimentos Anarquistas, vol 1: A Idéia, e História das idéias e movimentos Anarquistas, vol. 2: O Movimento. O que me deixou com mais uma pulga atrás da orelha (são tantas que já estão até pesando) não foi a lembrança de meu artigo sobre anarquia que eu ainda preciso terminar e está já há alguns meses abandonado, mas a consciência repentina de que a palavra Idéia não tem mais o acento agudo. Essa consciência me pegou de surpresa. Escrevi IDEIA na tela do computador e achei que faltava alguma coisa, aquela cereja do bolo que o acento representa. Falando nisso, sabia que a maioria dessas cerejas em conserva que ornam bolos por aí na verdade são feitas de chuchú (com ou sem acento?)? Sério, não são cerejas de verdade; como o chuchú(u) quase não tem gosto pode ser temperado pra ter gosto de tudo, até de cereja. Ó admirável mundo novo que tem coisas assim!...Mas, onde eu estava mesmo? Ah sim, IDEIA e a reforma ortográfica. Bom, entraram num consenso aí que temos todos que escrever igual (todos os países de 'língua purtuguesa, opá') e por isso temos que tirar o acento da IDEIA, como alguém que tira o chapéu de uma velha senhora (rs). O fato é que fiquei elocubrando sobre como o consenso é algo forte na vida humana. Vox populi vox deum. Quem pode decidir decidiu que IDEIA não tem mais acento e pronto, o mundo da ortografia no Brasil mudou pra sempre. Acontece a mesma coisa com leis, com crenças, com a economia. O dinheiro é o melhor exemplo. Já foi pedra, conchas do mar, folhas de árvores, virou papel por um consenso, por uma conveniência. Tanta lengalenga sobre conveniência me fez abrir o livro sobre os anarquistas. Caras legais os anarquistas, tentaram pensar um mundo sem autoridades, sem o "tu deves", sem convenções como Estado, Deus, Direito, e muitos outros etcoeteras que nos fazem viver de joelhos. É claro que colocar em prática o que foi pensado por eles não era lá a tarefa mais fácil do mundo. Muitos se tornaram filósofos, outros agitadores sociais, alguns quase terroristas, mas o fato é que não se muda um mundo de escravos nem com bombas nem com palavras sobre a liberdade. Fechei o livro e fiquei olhando pra palavra idéia ainda acentuada na lombada vermelha dele e pensando que mesmo as mudanças e conveniências encontram seu limites, na realidade ou no passado, mas encontram. De minuto em minuto corria o olho na bendita palavra que insitia em permanecer acentuada, mais teimosa do que os anarquistas de dentro do livro, até que me cansei e empurrei o volume um pouco mais pra dentro da prateleira, de forma que a brochura da frente escondesse sua lombada. Mas o livro da frente era Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu. Pronto, outro devaneio. Fiquei pensando que o Caio era quase um anarquista. Teve uma vida conturbada como a maioria dos anarquistas tiveram e assim como os revolucionários espalhou perplexidade com uma obra em que o doce e o amaro se mostram e se escondem num pega-pega inebriante. Era um escritor diáfano (se é que isso existe). Daqueles que tiram tudo da frente dos seus olhos e te encantam somente com aquele resto de luz, com aquele finzinho de supernova que brilhou até apagar. Era antes de tudo um errante. Errante na vida, mudou-se várias vezes até 1996, ano da sua morte em Porto Alegre. Errante na literatura, escreveu sobre tudo, e sobre o nada que é escrever sobre tudo. Sim, ele era um anárquico, despudoradamente. Mas acho que tinha um olhar mais profundo que os anarquistas. Estes queriam destruir um consenso e implantar outro. Caio não, ele sabia que os consensos só obrigam quem os seguem, e que ninguém precisa abrir uma porta ou ancorar em um porto, porque portos e portas são só conveniências, consensos. Portos e portas não existem. Sabendo disso ele podia errar por aí, construir suas próprias sendas. Procurar uma estrela madura a quem pudesse confessar as mais sublimes excrescências. Ele sabia que a vida às vezes é uma festa com cerveja quente e que, mesmo como convidado, você não precisa fingir que está gostando. Chutar os fundilhos de Deus é muito bom às vezes, como nos mostrou Henry Miller, outro anárquico, outro errante, outro sábio. Nunca vi morangos mofados, na verdade, custo a ver um morango, na maioria das vezes só aqueles enormes e photoshopiados (eita verbo) das embalagens de iogurte. Mas o bolor dos morangos e das palavras do Caio Fernando Abreu eu consigo sentir e ver. São ásperos e alucinógenos, selvagemente doces, são morangos que levitam, anti gravitacionais e heréticos. São morangos-palavras, mofados como estrelas cadentes. Caio era um errante, todos nós somos, a diferença é que ele sabia, e que, mesmo que isso machucasse a boca, ele tinha coragem de o dizer.
Oba, hoje veio morango na marmita!!!!

Divagações de um editor confuso...

E no meio disso tudo, fica a pergunta: por que o texto da Maísa é o único com a fonte diferente?

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Seu Valtério e as unhas de Tarrega no meu Ipod

Há uns meses atrás um amigo meu me trouxe um Ipod de uma viagem à Argentina. Coisa fina: 80 Gigas de capacidade (cara, incrível como linguagem de computador não diz nada né: Giga???) Demorei uns dias pra aprender a mexer no bichinho. Na verdade, aprender mesmo eu ainda estou aprendendo, sou meio lerdo pra essas coisas. Mas assim que eu aprendi a colocar música nele fui enfiando tudo que pude. Pá, em três semanas já tinha perto de umas duas mil músicas e alguns vídeos no meu parque de diversões midiático portátil, o que não arranhava, nem de longe, seus infindáveis 80 Gigas (aff). Duas mil músicas... hoje tem muito mais, evito olhar o contador, mas o fato é que desse contingente enorme devo ter ouvido umas 400, 500, e isso porque ouço muita música. Outro dia ouvindo David Allan Coe, enquanto tomava um café com leite e pensava em sei lá que bobagem, me dei conta do quanto é obsceno isso. Esse excesso de tudo, até do que gostamos, e que muitas vezes faz com que, justamente o que é mais importante pra nós se perca. Desliguei o aparelhinho e fiquei buscando mentalmente sons e canções que me fizeram parar e pensar: caramba, isso é tão bonito que dói. Aquela música que torna impossível pensar que existia um mundo antes dela. Existem muitas delas. Lembrei-me de quando ouvi Joan Baez pela primeira vez, de como eu ficava triste imaginando os olhos furados do pássaro preto da canção do Gonzagão. (Re)ouvi na minha cabeça minhas primeiras impressões sobre Led Zeppelin, aquele primeiro gosto de Doors. Lembrei que só fiz minha monografia de final de curso sobre direito e tragédia grega porque depois de um porre a única música que eu conseguia colocar pra tocar, devido à minha incapacidade motora de apertar os botões do aparelho de som, foi Orestes, do A Perfect Circle, com inúmeras referências ao trio de tragédias de Ésquilo. Lembrei das conversas com amigos sobre música. Das camisas velhas do Iron Maiden que hoje me fazem concordar com minha irmã sobre ser a coisa mais cafona do mundo. Em suma, pensei no tanto que a música é importante para mim. E, pra variar, lembrei da minha infância. Quando o padrasto do meu pai faleceu (eu devia ter uns 10 anos), meu velho acabou herdando a enorme (mesmo) coleção de LPs dele. Na verdade os outros 1213 irmãos do meu pai (tios, desculpe se eu estiver esquecendo de alguém) não quiseram levar aquilo, que pra eles era lixo, pra casa, e acabou ficando com meu pai mesmo. O Seu Valtério, o padastro do meu pai, (a quem eu considero meu avô paterno, uma vez que o biológico faleceu quando meu pai tinha cinco anos) além de ser a pessoa mais doce do mundo tinha o hábito de colecionar coisas. Tinha coleções das mais estapafúrdias, como uma coleção de utensílios para se limpar peixe. Coisas assim. Mas duas dessas coleções eram impressionantes pelo volume e pela dedicação que lhes era devotada: a primeira era uma coleção de figuras de presépio. Nem faço idéia de quantas miniaturas ele possuía, mas eram muitas. Tinha personagem pra umas duas biblias. Infelizmente a ira curiosa de alguns netos destruiu muitas dessas peças. Provavelmente não resta mais nenhuma hoje. A outra coleção era a já citada coleção de discos. Era (é) enorme, pra época então e pras condições financeiras da família era uma coleção realmente admirável. Se o tal do ecletismo é possível foi o seu Valtério que o inventou. Tinha de tudo na coleção: muitos discos argentinos e uruguaios, discos de trios gaúchos de acordeão, cantores evangélicos que tinham as piores capas do mundo, discos de blocos carnavalescos como o Bafo de Onça, Altamiro Carrilho e sua bandinha, uma bem cuidada discografia do Tonico e Tinoco, que o seu Valtério fazia questão de escrever nas capas, logo acima dos nomes, o epíteto pelo qual a dupla era conhecida na época e que ele se utilizava sempre pra se referir a ela: os fabulosos. Tinha muitos álbuns do Teixeirinha também. Lembro dele cantando Coração de Luto enquanto arrumava com muito cuidado os discos nas prateleiras. Quando o Gessinger cantou essa música no tributo ao Teixeirinha, junto ao Luiz Carlos Borges, eu me lembrei do seu Valtério e dos discos do Teixeirinha. Nessa coleção tinha algumas preciosidades: um disco em comemoração aos cinco anos da indústria fonográfica no Brasil, que trazia a primeira composição de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, a primeira gravação de Saudades da Amélia, do Mário Lago, e uma versão, cantada não me lembro mais por quem, de Nega Fulô, poema do poeta alagoano Jorge de Lima que anos depois eu viria a estudar na escola para o vestibular. Tinha também um dos primeiros discos de músicas cômicas do Brasil, que entre outras cabriolagens trazia uma canção chamada Chico Lingüiça (na época ainda com trema), que contava a história do tal Chico, o rei da preguiça, que de tão preguiçoso quem falava por ele era o cachorro, e que sonhava em trabalhar em uma fábrica de feriado nacional. Tinha um disco com trilhas sonoras de antigos filmes de faroeste, que tinha um cavalo branco lindo na capa e tinha uns sons de relincho e apitos de trem que eu adorava. Mas pra mim o disco mais importante de todos era um chamado Guitarra Paraguaia, que foi um dos primeiros discos gravados na América Latina com tecnologia que permitia a sobreposição de canais. Então o mesmo músico gravara as harmonias e melodias do álbum. A capa era de um vermelho dramático, em que uma mão empunhando um belo violão espanhol era adornada por uma manga cheia de bordados em temas latinos. Os temas variavam do erudito ao popular de uma forma tão fluida e leve que faz a gente pensar o tanto que essa separação é idiota. E tinha uma peça clássica, um andante de Francisco Tarrega, chamado Lágrima, que me fascinava (como ainda o faz). Na minha cabeça de dez anos aquele era o som que as lágrimas fariam se pudéssemos ouví-las. Dedilhava no ar minha guitarra paraguaia imaginária pensando sabe-se lá que coisas grandiosas e dramáticas. Alguns anos depois, estudando o mínimo de música que eu sei, aprendi a tocar a peça e li alguma coisa sobre o Tarrega. Ele foi provavelmente o maior revolucionário do violão erudito que já viveu. Inventou técnicas, aperfeiçoou outras tantas, desenvolveu melhorias para o instrumento, etc. Uma técnica característica de Tarrega era tocar com os dedos e não com as unhas como é comum no violão erudito. Contam que ele cortava as unhas o mais profundo que podia para evitar o contato das mesmas com as cordas do violão. O motivo disso é que ele acreditava que a unha era matéria morta, e que música deve ser feita com vida, com o toque da carne e da alma. A unha era um excesso que o alienava da música que ele verdadeiramente sentia. O que nos resgata o tema do texto: será que por termos tudo não temos nada? Será que a facilidade tecnológica tornou tudo tão simples que acabamos realmente projetando um selo de descartável sobre o que ouvimos e sentimos? Olhando pras capinhas de discos na tela do meu Ipod, capinhas que não estão realmente ali, são só um conjuto de bits e bites e sei lá mais o quê, e pensando na voz cansada do seu Valtério cantarolando enquanto acarinhava seus discos, eu temo que sim. Ah, um vídeo com a peça do Tarrega: http://www.youtube.com/watch?v=Jot7Q9n7L9U