Há uns meses atrás um amigo meu me trouxe um Ipod de uma viagem à Argentina. Coisa fina: 80 Gigas de capacidade (cara, incrível como linguagem de computador não diz nada né: Giga???) Demorei uns dias pra aprender a mexer no bichinho. Na verdade, aprender mesmo eu ainda estou aprendendo, sou meio lerdo pra essas coisas. Mas assim que eu aprendi a colocar música nele fui enfiando tudo que pude. Pá, em três semanas já tinha perto de umas duas mil músicas e alguns vídeos no meu parque de diversões midiático portátil, o que não arranhava, nem de longe, seus infindáveis 80 Gigas (aff). Duas mil músicas... hoje tem muito mais, evito olhar o contador, mas o fato é que desse contingente enorme devo ter ouvido umas 400, 500, e isso porque ouço muita música. Outro dia ouvindo David Allan Coe, enquanto tomava um café com leite e pensava em sei lá que bobagem, me dei conta do quanto é obsceno isso. Esse excesso de tudo, até do que gostamos, e que muitas vezes faz com que, justamente o que é mais importante pra nós se perca. Desliguei o aparelhinho e fiquei buscando mentalmente sons e canções que me fizeram parar e pensar: caramba, isso é tão bonito que dói. Aquela música que torna impossível pensar que existia um mundo antes dela. Existem muitas delas. Lembrei-me de quando ouvi Joan Baez pela primeira vez, de como eu ficava triste imaginando os olhos furados do pássaro preto da canção do Gonzagão. (Re)ouvi na minha cabeça minhas primeiras impressões sobre Led Zeppelin, aquele primeiro gosto de Doors. Lembrei que só fiz minha monografia de final de curso sobre direito e tragédia grega porque depois de um porre a única música que eu conseguia colocar pra tocar, devido à minha incapacidade motora de apertar os botões do aparelho de som, foi Orestes, do A Perfect Circle, com inúmeras referências ao trio de tragédias de Ésquilo. Lembrei das conversas com amigos sobre música. Das camisas velhas do Iron Maiden que hoje me fazem concordar com minha irmã sobre ser a coisa mais cafona do mundo. Em suma, pensei no tanto que a música é importante para mim. E, pra variar, lembrei da minha infância. Quando o padrasto do meu pai faleceu (eu devia ter uns 10 anos), meu velho acabou herdando a enorme (mesmo) coleção de LPs dele. Na verdade os outros 1213 irmãos do meu pai (tios, desculpe se eu estiver esquecendo de alguém) não quiseram levar aquilo, que pra eles era lixo, pra casa, e acabou ficando com meu pai mesmo. O Seu Valtério, o padastro do meu pai, (a quem eu considero meu avô paterno, uma vez que o biológico faleceu quando meu pai tinha cinco anos) além de ser a pessoa mais doce do mundo tinha o hábito de colecionar coisas. Tinha coleções das mais estapafúrdias, como uma coleção de utensílios para se limpar peixe. Coisas assim. Mas duas dessas coleções eram impressionantes pelo volume e pela dedicação que lhes era devotada: a primeira era uma coleção de figuras de presépio. Nem faço idéia de quantas miniaturas ele possuía, mas eram muitas. Tinha personagem pra umas duas biblias. Infelizmente a ira curiosa de alguns netos destruiu muitas dessas peças. Provavelmente não resta mais nenhuma hoje. A outra coleção era a já citada coleção de discos. Era (é) enorme, pra época então e pras condições financeiras da família era uma coleção realmente admirável. Se o tal do ecletismo é possível foi o seu Valtério que o inventou. Tinha de tudo na coleção: muitos discos argentinos e uruguaios, discos de trios gaúchos de acordeão, cantores evangélicos que tinham as piores capas do mundo, discos de blocos carnavalescos como o Bafo de Onça, Altamiro Carrilho e sua bandinha, uma bem cuidada discografia do Tonico e Tinoco, que o seu Valtério fazia questão de escrever nas capas, logo acima dos nomes, o epíteto pelo qual a dupla era conhecida na época e que ele se utilizava sempre pra se referir a ela: os fabulosos. Tinha muitos álbuns do Teixeirinha também. Lembro dele cantando Coração de Luto enquanto arrumava com muito cuidado os discos nas prateleiras. Quando o Gessinger cantou essa música no tributo ao Teixeirinha, junto ao Luiz Carlos Borges, eu me lembrei do seu Valtério e dos discos do Teixeirinha. Nessa coleção tinha algumas preciosidades: um disco em comemoração aos cinco anos da indústria fonográfica no Brasil, que trazia a primeira composição de Vinícius de Moraes e Tom Jobim, a primeira gravação de Saudades da Amélia, do Mário Lago, e uma versão, cantada não me lembro mais por quem, de Nega Fulô, poema do poeta alagoano Jorge de Lima que anos depois eu viria a estudar na escola para o vestibular. Tinha também um dos primeiros discos de músicas cômicas do Brasil, que entre outras cabriolagens trazia uma canção chamada Chico Lingüiça (na época ainda com trema), que contava a história do tal Chico, o rei da preguiça, que de tão preguiçoso quem falava por ele era o cachorro, e que sonhava em trabalhar em uma fábrica de feriado nacional. Tinha um disco com trilhas sonoras de antigos filmes de faroeste, que tinha um cavalo branco lindo na capa e tinha uns sons de relincho e apitos de trem que eu adorava. Mas pra mim o disco mais importante de todos era um chamado Guitarra Paraguaia, que foi um dos primeiros discos gravados na América Latina com tecnologia que permitia a sobreposição de canais. Então o mesmo músico gravara as harmonias e melodias do álbum. A capa era de um vermelho dramático, em que uma mão empunhando um belo violão espanhol era adornada por uma manga cheia de bordados em temas latinos. Os temas variavam do erudito ao popular de uma forma tão fluida e leve que faz a gente pensar o tanto que essa separação é idiota. E tinha uma peça clássica, um andante de Francisco Tarrega, chamado Lágrima, que me fascinava (como ainda o faz). Na minha cabeça de dez anos aquele era o som que as lágrimas fariam se pudéssemos ouví-las. Dedilhava no ar minha guitarra paraguaia imaginária pensando sabe-se lá que coisas grandiosas e dramáticas. Alguns anos depois, estudando o mínimo de música que eu sei, aprendi a tocar a peça e li alguma coisa sobre o Tarrega. Ele foi provavelmente o maior revolucionário do violão erudito que já viveu. Inventou técnicas, aperfeiçoou outras tantas, desenvolveu melhorias para o instrumento, etc. Uma técnica característica de Tarrega era tocar com os dedos e não com as unhas como é comum no violão erudito. Contam que ele cortava as unhas o mais profundo que podia para evitar o contato das mesmas com as cordas do violão. O motivo disso é que ele acreditava que a unha era matéria morta, e que música deve ser feita com vida, com o toque da carne e da alma. A unha era um excesso que o alienava da música que ele verdadeiramente sentia. O que nos resgata o tema do texto: será que por termos tudo não temos nada? Será que a facilidade tecnológica tornou tudo tão simples que acabamos realmente projetando um selo de descartável sobre o que ouvimos e sentimos? Olhando pras capinhas de discos na tela do meu Ipod, capinhas que não estão realmente ali, são só um conjuto de bits e bites e sei lá mais o quê, e pensando na voz cansada do seu Valtério cantarolando enquanto acarinhava seus discos, eu temo que sim. Ah, um vídeo com a peça do Tarrega: http://www.youtube.com/watch?v=Jot7Q9n7L9U
Nenhum comentário:
Postar um comentário