sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Festa com cerveja quente

A reforma ortográfica fez hoje mais uma vítima. Venho tentando escrever da forma recentemente convencionada desde que soube das mudanças. Mas hoje, remoendo alguns vícios e livros mezzo esquecidos tropecei com a palavra idéia escrita em letras brancas sobre o fundo vermelho de um livro sobre a história do movimento anarquista. Na verdade foi o primeiro grande livro sobre esse assunto tão importante e tão esquecido, saído da pena de George Woodcock. O trabalho é dividido em duas partes: História das idéias e movimentos Anarquistas, vol 1: A Idéia, e História das idéias e movimentos Anarquistas, vol. 2: O Movimento. O que me deixou com mais uma pulga atrás da orelha (são tantas que já estão até pesando) não foi a lembrança de meu artigo sobre anarquia que eu ainda preciso terminar e está já há alguns meses abandonado, mas a consciência repentina de que a palavra Idéia não tem mais o acento agudo. Essa consciência me pegou de surpresa. Escrevi IDEIA na tela do computador e achei que faltava alguma coisa, aquela cereja do bolo que o acento representa. Falando nisso, sabia que a maioria dessas cerejas em conserva que ornam bolos por aí na verdade são feitas de chuchú (com ou sem acento?)? Sério, não são cerejas de verdade; como o chuchú(u) quase não tem gosto pode ser temperado pra ter gosto de tudo, até de cereja. Ó admirável mundo novo que tem coisas assim!...Mas, onde eu estava mesmo? Ah sim, IDEIA e a reforma ortográfica. Bom, entraram num consenso aí que temos todos que escrever igual (todos os países de 'língua purtuguesa, opá') e por isso temos que tirar o acento da IDEIA, como alguém que tira o chapéu de uma velha senhora (rs). O fato é que fiquei elocubrando sobre como o consenso é algo forte na vida humana. Vox populi vox deum. Quem pode decidir decidiu que IDEIA não tem mais acento e pronto, o mundo da ortografia no Brasil mudou pra sempre. Acontece a mesma coisa com leis, com crenças, com a economia. O dinheiro é o melhor exemplo. Já foi pedra, conchas do mar, folhas de árvores, virou papel por um consenso, por uma conveniência. Tanta lengalenga sobre conveniência me fez abrir o livro sobre os anarquistas. Caras legais os anarquistas, tentaram pensar um mundo sem autoridades, sem o "tu deves", sem convenções como Estado, Deus, Direito, e muitos outros etcoeteras que nos fazem viver de joelhos. É claro que colocar em prática o que foi pensado por eles não era lá a tarefa mais fácil do mundo. Muitos se tornaram filósofos, outros agitadores sociais, alguns quase terroristas, mas o fato é que não se muda um mundo de escravos nem com bombas nem com palavras sobre a liberdade. Fechei o livro e fiquei olhando pra palavra idéia ainda acentuada na lombada vermelha dele e pensando que mesmo as mudanças e conveniências encontram seu limites, na realidade ou no passado, mas encontram. De minuto em minuto corria o olho na bendita palavra que insitia em permanecer acentuada, mais teimosa do que os anarquistas de dentro do livro, até que me cansei e empurrei o volume um pouco mais pra dentro da prateleira, de forma que a brochura da frente escondesse sua lombada. Mas o livro da frente era Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu. Pronto, outro devaneio. Fiquei pensando que o Caio era quase um anarquista. Teve uma vida conturbada como a maioria dos anarquistas tiveram e assim como os revolucionários espalhou perplexidade com uma obra em que o doce e o amaro se mostram e se escondem num pega-pega inebriante. Era um escritor diáfano (se é que isso existe). Daqueles que tiram tudo da frente dos seus olhos e te encantam somente com aquele resto de luz, com aquele finzinho de supernova que brilhou até apagar. Era antes de tudo um errante. Errante na vida, mudou-se várias vezes até 1996, ano da sua morte em Porto Alegre. Errante na literatura, escreveu sobre tudo, e sobre o nada que é escrever sobre tudo. Sim, ele era um anárquico, despudoradamente. Mas acho que tinha um olhar mais profundo que os anarquistas. Estes queriam destruir um consenso e implantar outro. Caio não, ele sabia que os consensos só obrigam quem os seguem, e que ninguém precisa abrir uma porta ou ancorar em um porto, porque portos e portas são só conveniências, consensos. Portos e portas não existem. Sabendo disso ele podia errar por aí, construir suas próprias sendas. Procurar uma estrela madura a quem pudesse confessar as mais sublimes excrescências. Ele sabia que a vida às vezes é uma festa com cerveja quente e que, mesmo como convidado, você não precisa fingir que está gostando. Chutar os fundilhos de Deus é muito bom às vezes, como nos mostrou Henry Miller, outro anárquico, outro errante, outro sábio. Nunca vi morangos mofados, na verdade, custo a ver um morango, na maioria das vezes só aqueles enormes e photoshopiados (eita verbo) das embalagens de iogurte. Mas o bolor dos morangos e das palavras do Caio Fernando Abreu eu consigo sentir e ver. São ásperos e alucinógenos, selvagemente doces, são morangos que levitam, anti gravitacionais e heréticos. São morangos-palavras, mofados como estrelas cadentes. Caio era um errante, todos nós somos, a diferença é que ele sabia, e que, mesmo que isso machucasse a boca, ele tinha coragem de o dizer.
Oba, hoje veio morango na marmita!!!!

3 comentários:

  1. O.o..então, né... cadê minhas palavras e idÉias..(ainda acentuarei, oras)

    Eu só queria sentir o motivo pelo qual bailamos de olhos abertos, mas sem enxergar, e de mãos dadas com esta tal regularidade mundana. Por que é tão fácil ler, compreender e imaginar. Mas tão difícil pensar, criar, mudar, retroagir, aceitar a contradição. Contradizer como forma de se estar vivo e vivendo. Os acertos fazem parte da vida, os enganos nos fazem senti-la. Ou talvez seja só um costume, para que não duvidemos que seja possível uma vida sem enganos. Ou que não há enganos e acertos. Apenas tentativas. Experiências!


    Ah! O texto ficou bem legal!

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  2. odeio não ter que acentuar "idéia" e quer saber? vou continuar acentuando até desacostumar naturalmente.

    o Caio é um luxo, um gênio, um profundo tradutor de desesperos e tranquilidades (nunca usei trema mesmo!).

    eu já vi morangos mofados. sabe ver beleza nas coisas esquisitas? é um morango mofado.

    morango na marmitaaaa??? adooooooro!

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  3. Só o Caio foi capaz de descrever tão bem esse dragão que eu conheci, que eu tento desesperadamente entender e deixar livre.

    Sim, to amando a marmita de vcs.
    Bjo!

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