segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Iconoclasta

Dedicado a você, que não nos esquece.

É bom estar aqui no Céu. A vida é tranquila. Não sei, mas acho que você demora a chegar aqui. Se chegar. Todo final de ano, você se rebela. Acho que é sinal de que ainda não está maduro para nos alcançar. Ah, respeito tua reza, mas estes santos estão de férias. Quer recomeçar?

- "Saque indisponível. Dirija-se ao caixa eletrônico ao lado".

- "Senhor, infelizmente este item está fora de catálogo. Poderia refazer seu pedido?"

Não aprecio batalha naval. Prefiro lutar em terra firme. Aqui na ilha temos todo tipo de fruta tropical. "Yes, nós temos bananas!".

"Se eles rezam muito, eu já estou no Céu!".

Engraçado. Quem não chegou aqui ainda, fica o tempo todo a deduzir como seria nosso ambiente... ao mesmo tempo, desdenha. E, óbvio, não nos esquece. Mas que coisa, o segredo está em todo lugar. Está na Bíblia, está nas canções, está até mesmo nos códigos jurídicos.

"Esqueça os mortos, eles não levantam mais!"

Engraçado mesmo é ver como você acha que tem opiniões relevantes a respeito da carreira de alguém. Como se importasse para este alguém ou para quem o aprecia, saber como você acha que deve ser direcionada tal carreira.

"Please don´t put your life in the hands of a rock n´ roll band..."

Bom, é hora de ir. O pessoal está nos chamando pra jogar um futebol aqui. Aliás, nosso time está incompleto. Conhece um bom lateral-esquerdo? O quê? Você? Não. Precisa treinar mais um pouco. Tente ano que vem...

Ah, em caso de dúvida sobre como se comportar, leia: http://marmitafilosofica.blogspot.com/2009/03/arte-da-irrelevancia.html

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A química nossa de cada dia

A história contada não é nada mais que uma viagem completamente inverossímil. Mas é um bom pretexto para apresentar "Everyday Chemistry", coleção de mashups de canções das carreiras-solo de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, compiladas como se fossem gravações inéditas dos Beatles. Segundo nos conta o sujeito que adota o nome fictício de James Richards, ele passeava de carro pelo deserto com seu cão. Ao fazer uma parada no acostamento, acaba sofrendo um acidente, pisando em falso no que parecia ser uma toca de coelho e batendo a cabeça. Segundo ele, acorda em uma casa, para onde foi levado por um homem que diz se chamar Jonas, e que diz viver em um mundo paralelo. Pra encurtar esta história, neste mundo paralelo, os Beatles ainda tocam juntos. Inclusive George e John estão vivos. Jonas mostra a ele gravações "inéditas" do quarteto. Impedido pelo tal sujeito de outra dimensão a levar a fita, Richards acaba surrupiando uma delas. De volta ao mundo real, apresenta então esta gravação através do site "The Beatles Never Broke Up", além de contar a absurda história. Enfim...
Trazendo a história para o mundo real (de verdade), o tal "Everyday Chemistry" não parece eficaz em mostrar uma hipótese do que poderia vir a ser um disco dos Beatles se eles continuassem juntos. Principalmente pela bateria eletrônica que permeia as gravações, o que talvez fosse necessário para fazer com que as colagens ficassem coesas. Como curiosidade, é extremamente interessante. Mas é só. Pra quem deseja conhecer, basta baixar o álbum completo aqui. De cara, logo na primeira canção, "Four Guys", dá pra sacar as misturas de canções da carreira-solo de Paul McCartney (maioria no disco), principalmente "Band on the run".


Seja como for, vale conhecer.

sábado, 19 de dezembro de 2009

A trilha sonora de um mundo que não existe mais...


Humberto Gessinger é um cara que ainda escreve canções. Ele é o sobrevivente de uma época estranha, em que as pessoas esperavam que os artistas dissessem algo através de sua arte e muitas vezes esses artistas acreditavam que isso era possível. Se a obra dos Engenheiros tivesse aparecido na década de 60 em um país menos tropical talvez não tivesse passado por toda sorte de vilipêndios que enfrentou. Na melhor das hipóteses Gessinger pode ser classificado como um atavismo que superou as tentações fulgurantes das mudanças e adaptações à moda justamente por se dedicar a algo incrivelmente anacrônico: escrever canções. Muitos já estão pensando nesse momento: "mas, um monte de gente ainda escreve canções!" Será mesmo?

A canção popular é um fenômeno cultural da modernidade. Não é de se assustar que o fim da era moderna, o qual atravessamos desde o final os 60's, ameace de extinção a canção. O paradigma em que ela nasceu e surfou quase soberana por tanto tempo não mais existe. A produção enlouquecida de música eletrônica (que não segue o padrão de uma canção) é prova disso. A canção se torna a exceção dentro de uma regra que prega a repetição, o barulho, o caótico. Muitos "artistas" que pretendem trabalhar canções vendem uma outra coisa, um estilo, uma festinha, um rostinho bonito, e a canção é só um brinde. Para um público que não sabe ouvir, "artistas" que não sabem compor ou tocar. O melhor e mais mastigado exemplo são as bandas emo, mas podemos colocar no mesmo balaio o Capital Inicial, os Titãs, as bandas de festa 'ploc', e toda essa farra do boi em que se transformou a música brasileira.

Essa realidade só torna o trabalho do cancioneiro uma anacronia ainda maior. Talvez seja a primeira sensação que nos acomete quando ouvimos o trabalho de Gessinger e seu parceiro, Duca Leindecker, no projeto chamado Pouca Vogal. Quando o duo liberou suas oito canções inéditas e semi-acústicas no seu site havia algo ali que chocava. O que chocava era a distância monumental do barulho, da bagunça, da gritaria e do baticundum fake que permeia 99 em cada 100 trabalhos musicais lançados hoje. Mas somente assistindo ao DVD que essa impressão se decantou e confirmou. Tudo é sofisticadamente simples, menor, singelo. Apesar de se multiplicarem sobre múltiplos instrumentos e bugingangas, nada é exagerado, nada é além da medida, nada é falsificado. Mas o que impressiona mesmo é o fato das canções funcionarem num mundo em que ninguém mais liga pra canções. Podemos ignorar isso, mas é assustadoramente sintomático que os Beatles continuem na mídia mas que pouco se fale sobre as canções que fizeram juntos. Isso explica também o fato de que Lennon, obviamente o beatle com a vida mais impressionante, tenha uma presença midiática mais forte que os demais membros da banda.

Outro fato sintomático é a incapacidade latente dos "músicos" populares de hoje de falarem sobre música. Tudo é falado, narrado, investigado, da cor do esmalte à quantidade de obturações dentais do dito cujo, mas todos são incapazes de falar sobre música, sobre o que é legal ou não, sobre quais as pretensões artísticas, timbres, letras, etc. O melhor exemplo de diletância vazia são as entrevistas do Marcelo Camelo. Poucas pessoas tem aquele talento para falar, falar, falar e nada dizer. Até o "hã?" de sua namorada adolescente, Mallu Magalhães, é mais profundo que tudo o que o Camelo acha que diz.

Mas estávamos falando de músicos sérios. Quem estiver procurando um disco de rock nos moldes tradicionais deve passar longe do Pouca Vogal. Quem quiser algo revolucionário e avant garde, também. Não temos excessos e firulas, nem ôêôs com a platéia. Não temos guitarras quebradas no palco, nem carinhas de tesão fake pra impressionar as menininhas. Ao invés disso Gessinger & Leindecker nos dão canções, boas canções. Em tempos de arte vazia e megalomaníaca, em que tudo é purpurina e falação, isso é uma grande coisa.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Praticamente nada

O seu orientador dava os últimos detalhes na beira do palco do auditório da universidade, onde dali a poucos minutos ele apresentaria a defesa de sua tese de doutorado. Foram anos de pesquisa. Anos bem vividos? Não tinha tanta certeza. Mas estava ali. Seu casamento resistira, embora as horas na frente do computador, entre pesquisas e redação tomassem de si o tempo necessário para carinhos e obrigações conjugais. Olhou para a platéia, localizou sua esposa na terceira fila. Ela não gostava de ficar logo na frente, não apreciava exposição excessiva. Mas estava com ele, sempre o apoiando. Deu um sorriso, e ela retribuiu. Lembraria desse sorriso e choraria mais tarde, emocionado. O orientador continuava a falar, tal qual um treinador dando orientações a um boxeador. Pensou na analogia que acabara de fazer, julgou ser mesmo semelhante sua situação com a de um lutador prestes a entrar no ringue. A banca examinadora posicionada, como os juízes de uma luta. O adversário? Sua própria consciência, talvez. Ou a sociedade. Como encarariam a tese que ele iria defender? Achariam absurda e descartariam a utilidade prática daquele trabalho? Nesse caso, como ficaria seu orientador? Tomaria partido ou lavaria as mãos? Absorto em suas divagações, nem ouviu as últimas recomendações de seu mestre/treinador. Era o momento de subir ao palco e defender sua tese. Estava bem alinhado, o terno comprado especialmente para o evento, capricho de sua esposa, já que mal tinha tempo e senso para escolher a roupa que vestiria. Apresentado, era a sua vez. Cumprimentou a banca, deu boa noite aos convidados e se preparou para falar. Não se lembrava de uma palavra dita pelo orientador, nem mesmo do que ensaiara antes de chegar. Acionou a apresentação do PowerPoint e tentou começar. As palavras não saíram. Começou a suar. Olhou novamente para a terceira fila da platéia, buscou forças e resolveu falar o que seu coração pedia:


“Senhoras e senhores, este trabalho é fruto de alguns dos anos mais solitários de minha vida. Os anos que passei dormindo mal, me alimentando de forma errada e automática. Nestes anos, não pude diferenciar o clima, não sabia se chovia ou se fazia sol, exceto pelos dias em que fui obrigado a ir a campo, atirando no escuro para comprovar algo que nem mesmo sei se é verdadeiro. Senhores, façamos um exercício de imaginação. O que vale mais para um leigo? Saber o motivo daquele tom alaranjado no céu ao amanhecer, ou apreciar a bela cena ao lado de alguém de quem gosta? Entendam: não estou aqui querendo desmerecer o trabalho dos cientistas, tudo isto diz mais respeito a mim do que a eles. Entendo hoje que desperdicei alguns bons momentos a troco de algo que nunca usarei em minha vida prática. Mais do que isso: limitado às minhas pesquisas, não tive jamais uma vida prática. Sei menos do que um operário, não nego. Fico aqui a pensar o quanto sou capaz de transmitir aos meus futuros pupilos, e o quão importante será para eles os ensinamentos que eu julgava importantes até uma hora atrás. Senhores, tenho que confessar: este meu "surto", minha “ficha caindo”, se devem exclusivamente a um sorriso na terceira fila. O sorriso de quem nunca deixou de acreditar que eu fosse estar aqui. O sorriso de quem, mesmo querendo que eu estivesse por perto, vendo as folhas caírem no outono, nunca foi capaz de me cobrar. E hoje estou aqui. Apresentando o resultado da minha reclusão. Do meu desligamento do mundo. Para quê? Não sei. Não sei. Pra satisfazer meu ego, talvez. Pra satisfazer aos requisitos do mercado de trabalho, o mais provável. Fato é que eu não queria estar aqui. Não tenho talento pra enganar ninguém. Talvez ainda haja tempo de recuperar o que deixei para trás. Quem quiser saber de mim, me procure na beira de um lago qualquer. Ou numa praia deserta. Ou num sítio, sentado numa pedra, observando as formigas carregarem folhas num dia de verão. Pensando melhor, não me procurem. Vão vocês também procurar o que fazer, ao invés de ficarem trancados dentro de si mesmos, fingindo saber o que não sabem, fingindo que têm talento para avaliar o que não pode ser avaliado. Desculpem por fazê-los perder tempo comigo".

Dito isso, se retirou. Não esperou para saber sua nota (a banca lhe daria um 10, não fosse sua apresentação petulante, alguém diria depois). Correu para a terceira fila. Lá, aqueles mesmos olhos que o observavam estavam atônitos. Mesmo assim, havia um ar de admiração naqueles olhos. E além dele, estes olhos não viam mais ninguém. Saíram apressados. Um silêncio constrangedor tomava conta do ambiente.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Reflexo do terror

Mulher de meia idade, cabelos grisalhos e um vestido habitual cinza andando pelas ruas. Deserta de si e dos outros. Não era necessário descrevê-la assim, pois escondia a idade física envolvendo-se em cotidianos que a denunciavam e forçava esta falsa segurança do saber no tom autoritário que as cores de sua roupa traduziam. Usava um véu invisível na vergonha de declarar sua viuvez. Era possível enxergar em seu olhar que era viúva de todos os seus ex-casamentos. Viúva de qualquer emoção. Deixou pra trás todos os resquícios de prazer e felicidade que sentiu em algum momento da vida, dando espaço àquela amargura passiva que a tornava cruel. Uma mulher sem um nome que fosse possível lembrar, mas que deixou marcado seu rosto nos dias de tortura para com aquela criança inofensiva, que mantinha num galpão em espécie de abandono. Ainda que escondesse, era audível e nítido o que conversavam, porque um eco trazia todo aquele segredo para direções confortáveis, observadoras e palpiteiras. A viúva de dedos apontados indicando a direção e empinando o nariz como se soubesse de tudo, e acreditava saber. A menina chorava as feridas que doíam e a mulher a condenava pelos erros, julgava sem piedade e dizia ter compaixão; provava dando ouvidos aos lamentos da pobre criança que gemia seu sangue escorrendo dentro da pele pálida de dor. Havia em sua dor futura toda a certeza, enquanto a velha duvidava da sua, doía no passado e substituía suas perdas por pequenas doses de felicidade ao constatar que a pequena criança também chorava pelos mesmos desprazeres. Foi tomada pela suposta razão ressentida, dominada por um ódio que de tão gigante era irreconhecível. Abraçava a menina carente e dizia: "veja seus vizinhos, você tem vizinhos!" Com os cachos dos cabelos desfeitos pelas lágrimas que grudavam nos fios sem que ela percebesse, a pequena inocente que seguia seu coração, e só por isso tinha dúvidas e medos ao encontrar dificuldades, ao considerar seus vizinhos, deparava-se mais uma vez com a solidão que havia escolhido para si. Precisava ouvir a voz daquela experiente dona para se auto-afirmar e ter certeza das coisas certas a fazer, mas nunca se entendiam. Nunca era possível convencer a idade que, apesar dos seus machucados que a confundiam, sabia que não terminaria igual à velha se seguisse o que era necessário para si. Uma imensidão de palavras que perturbam davam razão a sua incontrolável sede de viver cada segundo de todas aquelas estranhezas que invadiam sua vida sem licença. Entre os lençóis sujos de sangue que ela secava e limpava as feridas, soluçou brandamente. Apesar de toda força e coragem que havia dentro da menina desamparada, ela não sabia disso, e dava esta certeza a cada vez que lamuriava seus sons de cinza para a voz da experiência que encontrava na construção da rua que escolhera como seu refúgio. Por um instante bobo, refletiu e concluiu que nunca chamara pela velha em seus mais profundos desesperos. Ela sempre aparecia por acaso. Acordou, como num pesadelo, apressadamente voltou à construção que nunca acabaram e ela nunca mais teve notícias. Sem querer pisou na poça de água que a chuva havia deixado de lembrança e olhou de súbito, seu reflexo na água não poderia ser mais monstruoso e fazer doer tanto de uma forma tão mais intensa que todas as suas anteriores feridas, todas juntas. O reflexo era o juíz de sua sentença e seu maior pecado era ter se condenado ao próprio inferno de si mesma. A imagem que aparecia acabava de ficar viúva mais uma vez, apesar de ainda não saber disso. Disparou no impulso de seus passos largos e correu. Correu o mais rápido que pôde. Correu rumo ao nada, ao desconhecido. Correu até seus pés sumirem no tempo e ela não mais enxergar qualquer rastro que reconhecesse aquela revelação. Não aceitava esta verdade mórbida. Não aceitava a ruína de todas as feridas mal-curadas da viúva de emoções que tirava dela a maior revolução de sua vida: seu pacto com o silêncio e a solidão apropriada - sua liberdade. A menina agora tinha asas que nenhuma viúva cinza poderia alcançar e alçava vôo a partir de agora sem nenhuma resposta. Quando sua dor foi substituída por um alívio, a menina que encontrava-se perdida e cheia de dúvidas, tirou os traços tristes do olhar, sorriu da própria ironia e sussurrou ao vento: - "melhor assim..."

terça-feira, 24 de novembro de 2009

"(...) e nossas vidas são tão normais..."


Já havia algum tempo que eu tinha vontade de assistir "A Onda", filme alemão em cartaz em São Paulo, no momento em que escrevo este texto. O filme conta a história do professor secundário Rainer Wenger, que encontra dificuldades para explicar aos alunos como o fascismo se disseminou. Ao ouvir de um aluno que dificilmente um regime semelhante ao nazismo daria certo nos dias de hoje, porque a cultura das pessoas era melhor, Wenger resolve simular em classe um sistema. Para isso, usa as ferramentas básicas do nazismo: palavras de ordem, disciplina, logotipos e até uma saudação. O erro do professor, no entanto, foi achar que conhecia a mecânica e a métrica de controle de um regime totalitarista. Projetado para durar uma semana dentro dos limites da sala de aula, o movimento acabou tomando as ruas, acumulando em suas fileiras alguns jovens que não faziam parte da turma (inclusive algumas crianças). Adesivos e pichações tomam as ruas da cidade. Os "uniformes", calça jeans e camisa branca, propostos pelo professor, ganham o emblema do movimento. Tudo toma proporção exagerada. Quando um aluno fanático passa a seguí-lo, e quando pessoas mais sensatas começam a questionar os métodos, Wenger, nitidamente entra em crise existencial, ora julgando que todos têm inveja de seu sucesso, ora caindo na real de que exagerou em seu plano. A todo momento, o filme denota que as consequências seriam irreversíveis.
"A onda" é baseado no livro homônimo de Morton Rhue, leitura obrigatória na maioria das escolas alemãs. Rhue, por sua vez, se baseou na história verídica ocorrida na Califórnia em 1967, quando o professor Ron Jones tentou explicar o nazismo a seus alunos, igualmente perdendo o controle da situação. A ficção é mais dura que a realidade neste caso, mas a prova de que não é impossível manipular um grupo em nome de um regime fica no ar. E "deixa gente ignorante fascinada".

sábado, 21 de novembro de 2009

Novo mojo single

A Lorena publicou no Mojo Books sua interpretação para Olha Maria, do Chico Buarque. Confiram o resultado aqui

sábado, 14 de novembro de 2009

Nada surpreende

Cada vez mais em compulsão se perpetua este jeito nada original de se render ao cotidiano. O mundo, o fantasma do que se espera dele que nos assombra, tudo isso conjugados conosco, invade uma contramão sem espaço pra duas vias, levando a um destino fatal. É a tecnologia com toda comodidade e estrutura cultural que pode proporcionar, de encontro com uma velocidade a qual somos incapazes de digerir. Paralelo a isso, esta mesma tecnologia deu voz a um universo populoso de pessoas que não sabiam que existiam e hoje têm voz pra convencer até a si mesmas de suas meias verdades. O que aparentemente supõe uma idéia de liberdade e incentivos para debates que contribuam para uma sociedade menos retroativa tem se mostrado uma cartilha de alienação. Há muito pouco tempo para dissecar uma informação, que ao explodir no meio a necessidade de ser tudo-ao-mesmo-tempo-agora, faz o novo virar clichê, repetitivo, desgastante e repulsivo. O surpreendente já não surpreende mais, e o comediante ainda assim faz piadas da surpresa, o jornalista ainda assim cria pautas sobre a surpresa, o cidadão comum ainda assim se adapta ou fica indignado com a surpresa. Surpresa morna, sem muito gosto, apática. Todo mundo quer ser formador de opinião, e se prestarem atenção, nem discutiram. Os presos aos princípios continuam presos, e os que ousam desafiar-se continuam dando murro em ponta de faca. A insanidade é que o raciocínio não tem a menor coerência na maioria das vezes. É como se o todo separasse sua essência em pequenos fragmentos descartáveis e brincasse de ser original. Arremete uma sensação de que ninguém sabe mais nada e está todo mundo perdido. Quer se fechar do mundo no vazio de si mesmo? Não se tranca mais a porta, fica offline. Qualquer forma de lutar por um ideal é louvável e deve ser admirada, mas quando se vê magia na história da humanidade, soa estranho que protestar seja sinônimo de personificar um acontecimento no avatar de qualquer site de relacionamento... Nada é dispensável se intenso até o fim, portanto, não há nenhuma tentativa de banalização do homem ou da máquina aqui presente. O que prevalece é o ponto de vista de que a ponte que liga este homem à máquina: o raciocínio, tem se deixado levar pela aparente falta de necessidade de conexão. E se este raciocínio não está ativo, nada faz sentido. Há uma linha muito tênue entre a incoerência e a contradição, e esta segunda é o caos necessário. Porque afinal, não existe ordem sem caos. Seguindo o raciocínio de Mario Quintana: quem não se contradiz, mente. Ser autêntico custa admitir erros sem precisar dizer, pois não há verdade sem equívoco. Ainda sim, ser autêntico continua sendo ter uma identidade mesmo que ela não signifique nada. Afinal, pra que ser alguma coisa, se ser algo tem sido ser coisa alguma?

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Gosto se discute?

David Hume (1711-1776) tentou resolver o problema da estética propondo a criação de uma norma do gosto. Especialistas, pessoas com tempo pra ler, ouvir e estudar tudo produzido sob o selo da "arte" dariam o veredicto final sobre o que seria boa arte ou arte ruim. Hume dizia que isso era mais próximo de uma análise racional e objetiva da arte que poderíamos chegar. Outros autores, como Kant e Hegel, achavam que a arte, enquanto aesthesis, não pode ser pensada dentro de padrões racionais, e que nenhum critério objetivo existe pra determinar se algo é belo ou não, cabendo ao juízo de cada um determinar isso. Nietzsche dizia que a arte bela é aquela que consegue aliar com mais força o aspecto apolíneo (da beleza plástica, da imagem, do limite) e do dionisíaco (da embriaguez, do exagero, do excesso)do cosmos e da vida em si. Algumas análises de cunho marxista buscavam demonstrar o papel da arte como véu ideológico que encobriria as lutas de classe, revelando as condições materiais de cada época "disfarçadas" na arte. Quase que silmutaneamente a isso tudo, crescia no pensamento ocidental uma tendência ao irracionalismo e ao relativismo emotivista (nada a ver com o movimento emo, ok?). Essa corrente prega a total incapacidade humana de racionalizar a arte e mesmo estabelecer critérios para o belo. O que importa é o sentimento que a arte despertaria em cada um, e justamente por ser subjetivo, seria relativo, impossível de ser analisado racionalmente.

Tudo isso se agrava seriamente nos dias atuais, onde as sociedades se mostram cada vez mais plurais, e formas de vida das mais diferentes devem conviver. Se antes era muito difícil pensar uma norma do gosto como queria Hume, essa tarefa hoje parece impossível. Mas e então, como ficamos? Estamos obrigados a admitir que, como não existe critério objetivo, tudo é arte e tudo é belo pela possibilidade de repercutir na subjetividade de alguém? Estamos obrigados a admitir que Mozart e Mc Sapão tem o mesmo valor porque Mozart pode emocionar menos uma pessoa do que o batráquio funkeiro? Soa como uma sandice muito grande, não é verdade?

Weber já dizia que a democracia deveria estar onde lhe convém. Bom, a arte não parece ser bem esse domínio. Com certeza arte é complemento de vida, e não podemos unicamente impor a cada um o que deve complementar sua existência, mas esse papo de que tudo é arte equivale a dizer que nada é arte. Nessa lógica não surpreende que peças publicitárias sejam consideradas como arte nos dias de hoje, e nem que muita coisa pretensamente artística sirva unicamente pra vender bugingangas. Mas o pior é a regra estúpida do "gosto não se discute". Não se enganem, tudo é gosto, tudo...Por mais que revestimos muito desses gostos com uma aura de racionalidade no final tudo é subjetividade, tudo é gosto, tudo é opção.

A incapacidade de refletir sobre a própria existência leva as pessoas a se apoiarem em verdades dogmáticas em relação a sua própria vida. Quando se diz que "gosto não se discute" encerra-se dogmaticamente a discussão, fazendo exatamente aquilo que se finge condenar: impor uma opinião. Sacraliza-se o tal gosto, impedindo sua discussão como se isso fosse uma heresia.

Por fim, discutir o gosto não é universalizá-lo nem impô-lo, aceitá-lo como sagrado e indiscutível é que o torna dogmático e burro. Mc Sapão não vale o mesmo que Mozart, e a menos que toda história do ocidente mude drasticamente, nunca valerá. Quem não quer discutir gosto não quer é admitir que não sabe nem porque diz gostar de algo, não conhece a si mesmo nem o que pretende gostar. Quem não se põe em xeque não é capaz de apreciar nada realmente. E isso sim, não se discute.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Discos malditos - Simples de Coração

Antes de começar a escrever, bateu uma dúvida: poderia um disco tão bem produzido, e que tem pelo menos dois hits, ser considerado "maldito"? No caso deste "Simples de Coração", a resposta é sim, pelos seguintes motivos: É um disco de ruptura, não só por ser o primeiro dos Engenheiros do Hawaii após a saída do virtuoso guitarrista Augusto Licks e a entrada de três novos integrantes, mas também porque representa uma mudança considerável no teor das letras do grupo, 99% compostas pelo líder Humberto Gessinger. A presença de uma letra composta pelo então baterista Carlos Maltz era outro sinal de ruptura. "O Castelo dos Destinos Cruzados", inspirada no livro homônimo de Ítalo Calvino era a novidade. Foi também pivô de algumas das maiores divergências, que culminaram inclusive com a implosão desta formação logo após a turnê de lançamento. Os dois membros fundadores da banda já não se entendiam. Além dos dois, completavam a banda: Ricardo Horn, colega de Humberto dos tempos de colégio, escolhido a dedo para substituir Licks e bastante questionado quando a seu nível técnico em relação ao antecessor. Fernando Deluqui, ex-RPM, juntou-se à banda, trazendo mais peso às guitarras, e Paolo Casarin completou a formação. Casarin, tecladista que já tocou com Moraes Moreira e Pepeu Gomes, entre outros, tocou também acordeom no disco, em faixas com toque regionalista gaúcho. O contestado Horn foi o músico que tocou mais instrumentos no álbum, ficando responsável por guitarras, violões, viola e bandolim. Deluqui se limitou às guitarras. O disco começa com "Hora do mergulho", que retoma a harmonia de "Problemas... sempre existiram", do disco GLM, auge da formação clássica. Desta vez, a voz de crianças dá o tom. O arranjo lembra bastante "Comfortably Numb", do Pink Floyd, inclusive no solo. A letra cita a máxima romana "Se queres paz, prepara-te para a guerra", e vai por aí, desfilando referências. Logo em seguida, "A Perigo", que sutilmente fala em separação. Pressupõem-se algumas crises na vida de HG, mas como o próprio costuma dizer, nem sempre o artista precisa viver o que está cantando. Mas as referências estão lá, para todo mundo ver. A levada rock combinada com acordeon lembra "Vou deixar que você se vá", do Nenhum de Nós, e "This is the day" do The The. Não sei se houve esta intenção, mas lembra. "Simples de coração", a faixa título, é outra que combina solo de guitarra com regionalismo gaúcho. Separação é o tema novamente. Nesta é que se nota nitidamente a mudança na forma de escrever. As aliterações, frequentes nos discos anteriores, dão lugar a um discurso mais direto (na verdade, elas não são abandonadas por completo, como no verso "volta voando, vinda do alto"). "Lance de dados" introduz o bandolim no som da banda, com letra retomando os questionamentos sobre o acaso. Logo em seguida, chega "A Promessa", a música de trabalho, parceria de Gessinger e Casarin, com direito a solos sincronizados de Horn e Deluqui e percussão do cubano Luis Conte, famoso por seus trabalhos com Santana, Elton John, Roger Waters, entre outros. "Por Acaso", ode à vontade de voltar às origens, retoma mais uma vez o tema "voo", muito presente nas letras. Sinal de que o Rio de Janeiro não satisfazia mais o engenheiro-chefe. Porto Alegre o chamava de volta. Quem nunca teve uma sensação semelhante à descrita em "Ilex Paraguariensis"? "Tô no meio da estrada e nenhuma derrota vai me vencer", diz a letra da música, com o título inspirado no nome científico da erva-mate. "O castelo...", já citada no início do texto, parceria de Maltz e Horn com Kleber Lucio, chega com guitarras distorcidas e vocais rasgados. Segundo o próprio Maltz, esta era para ser uma balada (como foi gravada por ele posteriormente em seu grupo "Irmandade" e em seu disco-solo), mas foi vetada neste formato, supostamente por já haver muitas baladas no disco. Nos shows, Gessinger não cantava o refrão e tocava seu baixo sentado, olhando para o chão (cenas de uma apresentação nos estúdios da TV Bandeirantes podem ser encontradas no Youtube, e comprovam esta informação). Em seguida, "Vícios de Linguagem" vem com partes da letra cantadas em inglês pelas Waters Sisters, cantoras também famosas por backing vocals em discos famosos. "Algo por você" é uma parceria Gessinger/Deluqui, com clima hard rock setentista e alguns vocais abafados. Finalizando, a quase religiosa "Lado a Lado", com participação de Kevin Cronin, do grupo pop REO Speedwagon no violão. Esta é mais uma com o bandolim de Horn. No final, cavalos trotando, segundo dizem, "homenagem" do grupo ao chefe HG, conhecido por suas "patadas". A turnê do disco e as participações em programas de rádio e TV mostraram que não só o disco era de ruptura, mas a banda também se encontrava dividida. Quase sempre, Maltz falava mais nas entrevistas do que o próprio Gessinger, autor da maioria das canções. Mesmo no release, é o baterista quem explica o conceito do álbum. Sinal dessa ruptura foi que, ao final da turnê, a banda se separou. Humberto partiu para os shows e um disco com o grupo que montou, o Humberto Gessinger Trio, que mais tarde seria base para uma nova formação dos Engenheiros do Hawaii. Maltz montou sua "Irmandade" na qual deixou a bateria para se aventurar nos vocais e violão. Deluqui partiu para a carreira-solo, e posteriormente participou de uma reunião do RPM (que também não durou mais que um disco ao vivo). Casarin voltou para sua terra natal, Erechim-RS, onde seguiu tocando teclados e guitarra com a banda Automóvel Verde. Já Ricardo Horn, o mais contestado, chegou a tocar com a banda gaúcha Aquaplay, mas em seguida largou a carreira de músico profissional, dedicando-se, segundo informações, à área de pesquisa de mercado.
No fim das contas, é um disco que envelheceu bem, continuando atual até hoje. Greg Ladanyi, famoso por seus trabalhos com Madonna, Fleetwood Mac e Toto, produziu o disco e trouxe um som límpido, onde todos os instrumentos são ouvidos com nitidez.
Pra terminar, um comentário pessoal, que pode causar horror aos puristas: é o meu disco preferido.

O bando, ops, a banda, em 1995.








sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Outro Mojo...

Sei que é chata essa auto-propaganda, mas acaba de sair mais um single (mandei por atacado para a Mojo). Tá aqui.

P.S.: tem integrante do blog na fila pra ser publicado, e com certeza tem mais gente preparando seus mojos. Aguardem que vem coisa bacana por aí.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Por merecer um poema...

Pra Joy
Ela fechou o livro sobre os joelhos. Acariciou a capa de couro e não disfarçou um pequeno beliscão na lombada. Adorava livros assim. De graça, de uma forma quase submissa, como se ela fosse o objeto e não o contrário. Amava os livros a ponto de querer agradá-los, querer fazer as fibras e os pedacinhos organizados de celulose vibrar. Queria dar prazer aos livros, como uma amante que quer fazer o amado sorrir. Pra isso era importante viver os livros. De que "adiantava acompanhar um personagem até sua morte senão se morre junto?"ela perguntava. E sabia sofrer, e sorrir, sabia viver e morrer com os livros, se auto-constituir como se passeasse nas páginas, se apoiando nas letras, beijando as interjeições, rindo dos acentos e tropeçando nas vírgulas. Não era algo mágico, fora do mundo, simplesmente era assim...e, por isso, era perfeito. Como todo viver verdadeiro. Por isso beliscava as lombadas, pra manter aquele mínimo diáfano de vida bela, único resquício de um livro fechado.
Sua mão suava sobre a capa que ela não queria soltar. O caminho até à prateleira foi propositadamente mais longo e mais erradio. Abaixou-se pra ver dicionários, coçou a cabeça diante de pilhas de filósofos orientais, riu alto de tratados de física, fez seu próprio labirinto entre as prateleiras. Era uma dança de criança a que fazia ali. Uma dança entre brinquedos. Afinal, o que são os livros pra quem os ama além de brinquedos sérios e importantes demais?
A dança terminou num passo em falso em frente ao espaço vazio onde seu amigo de capa de couro deveria repousar. Correu os olhos quase aflitos pelas lombadas vizinhas. Pareciam um tanto pedantes e orgulhosas demais perto do livrinho marrom nas suas mãos. Ficou na ponta dos pés pra ver se não tinha nada na vaga que pudesse ferir o livro. Passou, destemidamente, a mão no vazio da prateleira, jogando poeira nos próprios olhos. Encaixou o livro em sua casa recém-faxinada, leu devagar as sílabas do título: "A-ca-sa-de-pa...", dirigiu um último e suspirante afago ao livro, virou-se e partiu...
Na verdade nunca partiu realmente...ficaria ali pra sempre, em partículas de unhas marcadas numa lombada de couro. Em fios de cabelo caídos entre as páginas. Ficaria ali pra sempre, entre sonhos encapados. E um dia alguém sorriria pra ela, numa carícia singela, dessas assim...de graça...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Jabuticabas, medos e meninos.

Sua meia-idade, já com vistas turvas já não reconhecidas mais se pela falta de visão real ou os óculos empoeirados, encarou pela primeira vez em longos trinta anos de espera, o pé de jabuticaba. Mais precisamente na casa de campo onde hoje habitava seu filho e família. Lembranças que sempre estiveram ali, mas por algum motivo ele não quis mexer. Não foi necessário, até então, cutucar nos tesourinhos do passado - hábito inconveniente pra desmerecer toda a beleza sombria que sua nova condição aclamava.

Na verdade, nunca desejou aquele saudosismo que sentia ao estar diante deste fato. Nunca houve algum momento em que precisasse lamentar sua vida e refugiar-se no passado para suportar o presente e as possibilidades do que esperar do futuro. O instante era tão oco e silencioso, tão sublime... Avistava o topo da árvore insana como se voltasse aos oito anos e todas as suas traquinagens borbulhavam em seu sangue novamente.

Se tivesse o mínimo de coragem - ou falta de senso de responsabilidade, diriam os mais conservadores - subiria ao menos nos galhos mais fáceis. Tão tranquilizante como apaziguador era relembrar de sua coragem, do quanto já foi mestre em alcançar galhos perigosos e apanhar as frutas mais doces em dias de verão. Matar a sede com saliva doce de jabuticaba era, entre outras coisas, seu passatempo favorito. Sentia o cheiro de bolo de fubá que sua mãe preparava em todas as tardes de sábado. Inquietava-se ao recordar sua mãe, a mais eterna deusa de sua vida, porém, estar de frente à árvore, sua companheira fiel dos tempos de risos, trazia também o gosto amargo da crueldade que sua mãezinha, tão protetora, o aplicou para seu próprio "bem". Que culpa ela tinha, pobre mulher? Houve um tempo desconfortável que sua educadora-mór o castigou da maneira amena com que toda mãe zelosa o faz, convencendo-o de que aqueles malabarismos eram fatais para sua vida. Que se caísse dali poderia morrer, ficar paraplégico, ser tirado de seu lar para morar com desconhecidos maldosos, receber um castigo dos céus com duzentos anos de azar, ou qualquer tragédia maior que sua mãe se lembrasse no momento do discurso. Não se convenceu fácil, não se conformava com os empecilhos que sua vida tão infantil já trazia. Queria que tudo fosse diferente, mas, pra não magoar sua tão amada mãe, desistiu da árvore.

Ah, se soubesse o que isso o causaria hoje! Depois de desistir do seu primeiro grande feito, qualquer adversidade que a vida o impusera, pensava nas recomendações da mãe. O medo passou a fazer parte da sua vida de tal forma que não existira até ali. Se contorceu durante muito tempo para abafar gritos que poderiam prejudicá-lo. Tornou-se um homem bom, porém passivo, porque temia a cada árvore como se a morte não fosse mais a pior das consequências. Embora pensasse nisso agora, reconhecia sua vida estável, suas boas escolhas, seus bons feitos e orgulhava-se de quase tudo. Menos dos riscos que deixou de correr, da falta de humanidade que infiltrou-se em sua lógica. Diante de todas estas lembranças esquisitas e que julgava imbecis, avistou o netinho sentado, brincando de bolinha de gude. Sorriu com o canto da boca, cheio de esperança e uma espécie de redenção saía do ar que respirava; sentia alívio sem saber. Rendeu-se a ingenuidade de sua velhice transformando-se em menino. Segurou a mão do neto com a força que jamais imaginou que ousaria de tanto sentimentalismo; engoliu seco uma porção de lágrimas que não entendia de onde vinham e com o vento batendo em sua face e refrescando seu momento de transformação, ensinou pacientemente o neto a subir na árvore e encorajou a alcançar a mais alta fruta. Quando a criança no alto da árvore segurou a maior jabuticaba e levou aos lábios, uma lágrima caiu de seu rosto e então se perdoou...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ser o nada, para nada ser obrigado a ser

Coisas impensáveis, talvez. Coisas de libido, de filosofia. Assuntos que caberiam num livro de romance, mas inviáveis para os romances da vida real! Ah! Vida real.

Durante o sono que não sei mais dormir, descanso meus pensamentos pensando. E penso muito, penso tanto que minha mente adormece, entretanto, ativa, sempre tão ativa, altiva. Às vezes acordo com marcas e máculas dos sonhos, outras vezes os sonhos tão somente são aquelas coisas todas que conversamos até que o meu corpo se canse, ou desista: a desistência pode ser, muitas vezes, a única salvação.

Dialoguei interminavelmente comigo mesma, e com algumas pessoas que me estimulam o distanciamento para a 'confecção' de coisas para se crer, e ideais para não se buscar; não por não crer, mas por crer não serem possíveis, e de gostar que sejam apenas parâmetros... para o que dará errado.

Por favor, perdoem-me o pessimismo, pois não o é. Apenas estou admirando uma vertente nova. No momento estou ouvindo qualquer coisa de Bob Dylan, e estou como sinto a voz e a música dele: um sofrimento prazeroso. Tente me acompanhar, leitor; a voz dele é desafinada (aparentemente- mas eu adoro o mal feito... bem feito), melancólica, irônica; porém, sinto uma felicidade no mais íntimo do último som a ser ouvido inconscientemente por mim, tanto que é quase impossível a descrição do que dissimula nessa que vos escreve, quando o ouço. A todo o momento parece-me que ele conta uma história macabra de sua vida, mas sempre com o santo e bendito humor negro; humor este que nos afeta, os desesperados. Então, é como o ouço que me sinto hoje: um misto de quase tudo o que é contrário e contra. E isso fez com que eu me lembrasse de outra música [vai uma dica musical ai:] 'Balada de Agosto' de Raimundo Fagner e Zeca Baleiro, que diz 'meu coração vive cheio de amor e deserto'; conseguem compreender a profundidade e o quão dolorido pode ser sentir-se assim, e acreditar que é um estado imutável, invariável? Entretanto, ao mesmo passo, é um deleite saber que é isso, e assim o será. O mais difícil, porém, é aceitar e viver. Pois, independentemente de sermos assim, não se pode, não podemos viver desta forma; não aqueles que não querem - como diria a minha mãe- 'segurar o pau da bandeira', não é válido a luta àqueles que querem se afastar e se manterem afastados. Pois, apreciem bem, se o que se é, é distanciamento, e se quer viver assim, o preciso é a distância. Na nossa cultura e no nosso mundo, e se quisermos ainda conservas os amigos e a família, teremos de provar que a distância que queremos é verdadeira, e, logo – ao tentarmos enturmar para provar isto-, não viveremos como queremos. Àqueles que não contarão o que são a distância é amiga sempre.

Acho que me perdi, talvez; mas as perdas nos meus escritos são mais importantes do que concluir com maestria.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Outro Mojo Single

Mais um conto meu publicado na série Mojo Single, desta vez baseado na canção "Where the streets have no name", do U2.Leia aqui.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Sobre lares e casas.

Eu estive pensando sobre ‘casa’, ‘lar’... A gente luta tanto, sacrifica tanta coisa para fazermos de um único e ‘bendito’ lugar a nossa casa, o nosso lar. Todo o resto, todo o mundo fica largado, abandonado amaldiçoado por não ser lá ou em qualquer outro lugar o nosso lar. Começo a pensar, então, que o que deveria ser o nosso lar não sejam muros e janelas, portas fechadas e cães, mas o que nos faz guarda e grita dentro do silêncio interno destas paredes e demais coisas de uma casa.
LAR. Esta é a preocupação de quase todas as pessoas, mas nós, será, sabemos usá-la, ou nos é inútil, desde que tenha sido fabricada, escriturada e mobiliada? Pensei estes dias, ao caminhar irritadamente sob um sol quente, escaldantes, assassino: o que deveria ser ‘casar’ e o lar. Primeiramente pensei: “ah! Casa é uma parada construída para que pessoas morem dentro, para que se tenha um abrigo de todo o mau natural ou humano, um refúgio.” Então pensei “puta que pariu, a gente luta a vida toda só para isso? Só para se ter no que se esconder?”. Então milhares de outros motivos vieram-me à mente, alguns egoístas, outros estúpidos, outros indiferentes. Não vale à pena se perturbar com o que é, mas resolvi queimar ‘tutano’ com o que acho que deveria ser; e deveria ser um local para se encontrar o lar, o nosso lar. “Mas, Lorena, o que diabos é este tal de lar a que invocou agora pouco?” E eu digo, caros botões, o lar é o que há dentro de você, é o que queima na sua mente, e o que o faz andar, ou não. É aquela voz que a gente não ouve, mas grita dentro das nossas cabeças. É o que nos faz chorar quando estamos bêbado e perdemos o social pragmatismo. É o que nos faz vibrar quando toca aquela música, que, sem mesmo saber o motivo, revela mais do nosso lar, do que aquelas coisas que você comprou porque achou bonitinho – e não que eu seja contra o consumo, ou que eu ache que devemos ser pobres de coisas materiais -, mas, olhando nosso mundo, vejam os pais: desejam que os filhos sejam sempre mais do que são ou podem ser, nunca se contentam; entretanto, se os perdem, não sabem mais lidar sem eles; se perdem. Assim, vez por outra, vejo que esse lar de coisas e compras, não são nossa casa, nosso refúgio; mas se os perdemos não temos lugar, isso porque achamos que coisas são insubstituíveis, ou porque, valha-me Deus, eu gastei tanto dinheiro, tanto sono, tantas horas, tanta vida, tanto o mundo e agora, simplesmente, perdi tudo e não reclamarei?
Meu lar! O que se faz dentro de um lar. Pensa-se? Dorme-se? Faz-se sexo? Faz-se nada? Escreve-se? Suicida-se? Mas todas estas coisas podem ser feitas em qualquer lugar, certo? Então, se a questão fosse, também, ouvir a voz interior e nos darmos ao luxo de sermos um hipócrita cretino a criticar tudo, faríamos em qualquer canto, oras. Então o lar é monte de madeira, ou cimento e tijolos que a gente constrói – a gente não, a gente paga para construírem o nosso lar – para nos isolarmos do mundo, mas ai a gente liga a tevê e dá de cara o Datena, e o mundo está dentro de casa. Então, que diabos seria um lar, que nos ocupa tanto a vida, que este se torna a coisa mais valiosa?
Pensei, em grau comparativo – eu que não tenho lar, moro no lar e na casa dos meus pais – em coisas que me colocam em contato com algo meu, algo meu, [compreendem?] íntimo meu. Não consegui encontrar nada, nada. Meus cadernos? Já perdi tanta coisa que escrevi, que sou uma bastarda insensível. Meus CDs? Roupas? Celular – detesto coisas que toquem como ou semelhante a campainhas -? Ah! Não encontrei nada, porém, pensei: vida capitalista, mundo capitalista, qualidade capitalista, qualificações capitalistas, pessoas capitalistas, justiça capitalista, sorte capitalista... LAR CAPITALISTA. Não é a falta de um refúgio o que machuca, ou que desespera, mas tudo o que o lar é, é algo que se compra, se precisa por status. Tem uma música (não poderia faltar) que diz “Vem que passa o teu sofrer. Se todo mundo sambasse, seria tão fácil viver”. Não quero dizer que não se precise de um teto – deveria se chamar teto, teto é um bom nome – sob o qual morar, mas é que achar que no mundo todo o único lugar a que tem direito de paz e de conhecimento interior é uma casa, é sob madeiras e cimento... me deixa confusa, e desinteressada da vida. Há tanto no mundo, e o lugar em que eu estiver, será o meu lar. Isto pois, o lar nunca está, senão conosco. Nosso corpo é nossa casa, e nossa mente nosso lar. E onde estiveres, o lar estará. O seu lar, logo, é você mesmo.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

"Let down..."

Como de costume, andava pelas ruas de Sades procurando pequenos prazeres, e ao receber a grande notícia de que seu amigo havia retornado ao cargo importante da empresa em que se conheceram, não sentiu-se traído, pois de certa forma já esperava pelo acontecido. Tivera um misto de repugnância que era exatamente o que queria evitar na sua nova filosofia de vida. Atentou-se ao repórter, o portador da novidade, olhou ingenuamente para a câmara. A ansiedade de todos estavam em seus olhos, e então, Felício disse em tom secreto:

- Nunca achei que Principês estivesse errado, mas sabia que aos olhos dos julgadores que o condenavam sem nenhuma certeza aparente, saber do que Principês fez por pura diversão daria a eles motivos para enforcá-lo instataneamente. Fomos expulsos. Um pelo que nunca fez e acusaram ter feito, o outro por ter feito um pouco, mas nunca o que acusaram. Decidimos sair em silêncio. Meu silêncio era fidelidade e moral, o dele, um tanto de culpa. Ora, nossos idealismos! Fomos escorraçados do reino o qual há muito já não acreditávamos mais. O tempo passou sem que eu tivesse um contato verdadeiro com Principês. Vejam só, agora Principês volta ao grande cargo... Ele sempre gostou de poder, e achei que a política lhe fosse um bom caminho. Mas não faz sentido se o próprio ego é mais importante, não é mesmo? Como pode, meu caro sadês, trocar os escrúpulos por tirania? Eis que sigo acreditando na amizade e que, realmente, não me corrompo. Não presto, não nego. 'O que obviamente não presta sempre me interessou muito.' Mas tenho preferido não prestar em silêncio. E este é Principês...

Subitamente Felício fora cortado, pois entrava no ar a tão esperada coletiva de imprensa anunciando a volta de Principês. Coletiva esta que, faria com que as palavras ditas anteriormente perdessem o valor. Porque Felício era só um idealista romântico, já Principês era este aí...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Memórias de um leitor analfabeto, ou como desaprender de tanto saber

Nada provoca tanta devoção e ao mesmo tempo tanto tédio quanto um monte de livros. Todo cara metido a intelectual e mesmo os intelectuais de verdade são consumistas enrustidos. Podem não comprar sapatos, enfeites automotivos, pornografia barata, mas gastam seus poucos tostões em livros e mais livros. Existe uma indulgência que envolve o consumo bibliófilo, muito parecido com a imunidade tributária incidente sobre os insumos na produção de livros, revistas e periódicos (sim, sou advogado e devido a isso, chato pra caralho). Gastar dinheiro com livros não é tão pecaminoso quanto gastar jogando sinuca ou comprando um tênis com molas laranjas à mostra (ainda escreverei um texto sobre a decadência sensível na percepção estética dos designers de calçados...melhor, não escreverei não). De qualquer forma, parênteses de lado, temos para nós que a compra de um livro é algo inocente e mesmo edificador. O fetiche do "livrista", com sua biblioteca abarrotada. A questão aqui é que a devoção anda de mãos dadas com a frustração e o tédio, e mesmo com o pedantismo intelectual. Construímos uma realidade em que ler é uma habilidade de cada vez um número menor de pessoas. Falo de ler e entender o que se lê. De se entender e se viver o que se lê. Estamos cercados de analfabetos funcionais e pessoas incapazes de compreender dois parágrafos escritos sobre o mais estúpido dos assuntos. Se Nietzsche estava certo e hoje o Espírito se tornou populaça, é esse espírito que nos faz identificar tudo que é inteligente como chato e buscar no superficial a qualidade anestesiante que nos faz sobreviver ao cotidiano insuportável que criamos.
Da leitura fetichizada do intelectual acadêmico, que lê Levinas em três línguas antes de encher a esposa de porrada, à leitura atropelada do jornaleco de 25 centavos no trânsito ou na fila do banco, passando pela corrida de olho caduca nos contratos de adesão e manuais de instrução, lemos coisas que não viveremos e que têm sua importância cada vez mais reduzida perto de nossa indiferença diante do que ler significa. Sobretudo diante da distância que colocamos entre aprender e viver algo, da separação falaciosa entre teoria e prática, do saber e do viver. Da busca medíocre por um produto a cada esforço, ainda que seja o de ler um livro. Vivemos uma realidade que não quer pensar a si mesma e por isso uma realidade que despreza a leitura. Não é preciso mais queimar livros, afinal eles não fazem mais nenhuma diferença.
Não há mais o risco de alguém amolecer as ideias lendo romances de cavalaria ou sonhar em "mineirês" ao ler Guimarães Rosa. Não se corre mais o risco de alguém achar que pode mudar o mundo porque leu Marx ou jogar o jogo do contente porque leu Poliana ou o Pequeno Príncipe. Já não temos mais olhos de leitores. Talvez de leitores de códigos de barra. Olhos decodificadores, que enxergam o livro como mais uma barra num mundo que aprendemos a simbolizar como um grande supermercado, um templo de consumo irracional e iluminado por luzez fluorescentes e com cinzeiros nas saídas.
O livro e o tênis, Mike Tyson e Albert Camus, Mark Twain e barquinhos de papel-jornal, tudo processado por nossos olhos e sentidos de moedores de carne, transformados na mesma massa amorfa e de cheiro forte que chamamos de vida. Não fazemos mais jus aos livros que temos, não temos mais a nobreza do ruminante, do homem-touro que digere tudo duas, três vezes, e transforma o que digeriu em sangue. Não temos a nobreza de um dos minotauros de Borges. Não merecemos os livros que temos, eles estão melhores quando fechados ou abandonados às traças silenciosas que lhe dão o devido valor, vivendo das suas páginas inutilmente sábias.
Feche o livro, meu filho, e vá ver TV!!!!!!

domingo, 16 de agosto de 2009

Desconstrução

Amou o desamor
Conheceu o sabor do ódio
Sentiu medo, paixão e dor
Desprezou o amor ao próximo
Teve sede de vingança
Derramou lágrimas de saudade
Quis voltar a ser criança
Esqueceu sua própria idade
Ganhou as ruas
Perdeu o rumo
Venceu batalhas
Perdeu apostas
Mandou recado
Recebeu ameaça
Cometeu pecados
Bebeu cachaça
Ergueu paredes
Quebrou vidraça
Sentiu
Amou
Conheceu
Desprezou
Esqueceu
Mandou
Recebeu
Ganhou
Perdeu
Quebrou.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

E se eu fosse "Beatriz"...

“Minha casa é vazia, mas as vozes nunca se calam. Eu os ouço sempre, tão alegres. A vida deles é tão calma, que me inveja a bonança da noite.”

“Se eu pudesse apenas entrar na sua vida, jamais o faria: merecemos mais. Se eu pudesse ser feliz, eu seria. Se eu pudesse fazê-lo feliz, talvez eu hesitasse.”

Na porta dela, agora, alguém bate a cobrar. Cobra emoções, cobra carícias. Os olhos dela mareados não vêem nada mais: o mundo é uma onda, e sua vida um naufrágio... Mas as vozes, as vozes sempre surgem, a casa toda tão alegre.

Seus pés tocam o chão, está tão frio. Seu coração pulsando em descompasso com a música que ela dança... A música é serena, a voz do cantor tão sofrida.

Os olhos dela estão fechados, e ela pensa em alguém. Força um sentimento: tem medo de ser feliz como em casa, como sozinha.

Acaricia a tatuagem que fez, e que hoje odeia. Toca os cabelos, e dá uma volta dançante em si mesma... As luzes se apagaram, a platéia está muda e ela concentrada...

Hoje ela resolveu não abrir a porta, a dor do apego não entrará, e ela não sofrerá... amargura que seja. A peça dela, hoje, será uma comédia... um monólogo.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Os sons do silêncio...


Terça-feira da semana passada eu fiz uma viagem de ônibus. Dessas viagens rapidinhas, que duram só 14, 15 horas. Pra evitar o tédio geralmente eu durmo nessas viagens. Mas estava um tanto ansioso pra chegar e conciliar o sono foi impossível. Então, meu bom e não tão velho iPod salvou minha sanidade mais uma vez. Entre minhas maluquices e esquizofrenias musicais está um gosto que, para muitos deve parecer inconciliável, por canções folk e por heavy metal. Mais da metade dos gigas do aparelhinho são ocupados com esses estilos de música. Bom, coloquei o Dead Heart in a Dead World do Nevermore pra tocar. Um disco simplesmente sublime, grandes letras, bem tocado, bem cantado. Niilista ao extremo. Mas alguma coisa me chamou particularmente a atenção nessa audição. A letra de The Sound of Silence. Sim, é um cover da canção de Simon e Garfunkel composta em 1964. Obviamente já conhecia a canção, o maior sucesso da dupla, composta após o assassinato de John Kennedy, em novembro de 1963. Depois de ouvir a versão do Nevermore algumas vezes, saí procurando no iPod a versão original. Sim, tenho ela também no iPod. E mesmo sabendo que isso fode a bateria do aparelhinho fiquei repetindo a música um tempão.


Só posso dizer que pela primeira vez eu entendi o sentido total daquela letra, com toda força que ela tem, se é que é possível realmente entender algo em sua plenitude. Escrita para representar o choque de uma nação diante de um crime bárbaro ela se tornou um hino existencial, diante da estupefação, do incompreensível, do absurdo. O silêncio é sempre, em última instância, aquilo que nos cerca. Não há o que se discutir, o único absoluto e inarredável é o silêncio e nada mais estupefaciante do que essa consciência. A náusea nasce da consciência desse absurdo, desse silêncio opressor, violento, que nos preenche mais do que o mais potente dos sons. Não é na quantidade de decibéis que se mede a intensidade de algo, é justamente na ausência deles, em que sua presença colossal se fixa ali, nos nossos olhos, na nossa mente.


É na noite escura, que não responde a nenhuma pergunta, a nenhum viver, que repousa a resposta última, da liberdade plena e assustadora que reside ali, no silêncio, no absurdo, onde toda representação se extingue, onde toda racionalidade falha. Ouvi a canção como se visse um mundo em câmera lenta passando na minha frente, como se eu fosse a bala em direção à cabeça de JFK, tudo passava devagar demais, lento e inexorável demais.


Numa viagem que, por muitos motivos, mudou minha vida, essa canção em especial, tantas vezes ouvida antes, mudou também minha forma de ver e perceber o mundo. Difícil explicar isso para um mundo que acostumou a tratar a música e a arte em geral somente como forma de entretenimento, mas mudou. De forma violenta, até.


Tirei os fones do ouvido e fui olhando a estrada lá fora. Começava a amanhecer, e os solavancos do ônibus já despertavam alguns passageiros. Eu não cabia mais em mim, mas ninguém perceberia isso. Assim como aquela estrela que não está mais lá, mas não nos deixa perceber isso. Desci do ônibus coçando os olhos, a despeito de todo cuidado com a gripe A. Os reencontros de rodoviária, o cheiro de pastel de ontem, os mundos que se faziam e se desfaziam todo dia me pareceram incrivelmente iguais, incrivelmente pequenos e sem sentido, vazios e agridoces como orvalhos esquecidos. Pequenos demais perto do som do silêncio.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Virgínia.

Atentamente observava o salão, repleto de pessoas de movimentos suaves e sorrisos ariscos. Virgínia tentava novamente compor sua canção, imaginando-a a cada passo calmo pela festa que ela, na verdade, não participava nem entendia. Se foi capaz de cumprimentar alguém, pouco levava isso em consideração. Nem sequer percebia que estava sendo observada. Virgínia era a louca, a compulsiva, a infeliz e amargurada que já tentara se matar algumas vezes, a suicida fracassada. E assim, exatamente assim, os olhares de seus convidados a diziam sem que ela percebesse. O desespero, a angústia, a falta de si própria levou-a até a janela, de onde podia contemplar o outono de um entardecer suave, avistando o sono profundo da natureza que ela sentia uma necessidade inteiramente mortal de tocar. Sorriu... Sorriu de medo e em direção ao tempo lá fora. O fitou com toda força que fora capaz de arrancar de dentro de si. Virgínia segurava o copo vazio cautelosamente com a convicção de que ele guardava um momento. Era nele um instante de algo que ela procurava, ressentia, duvidava. Talvez devesse chorar suas lágrimas em seu interior para dar a ele algum significado. Virgínia era o copo. Virgínia era música que vinha do vazio de um insignificante copo. Enquanto alguém iniciava um discurso emocionado, Virgínia distraída consigo mesma dedilhava seu piano. Violentou de dentro de sua alma sua mais profunda tristeza, fechou os olhos sentindo toda sua dor, e sob olhares repulsivos dos que a julgavam insensível por não perceber a homenagem, tornou-se música. A música mais bela e profana. Havia nela um pouco de sombra. Uma sombra que Virgínia não quis fotografar novamente para retirá-la. Ela se queria sombria e imperfeita. Uma sombra necessária. Sombra perdida naquele recanto de uma vida que deveria ser feliz e ideal. Há tantos anos diagnosticada como esquizofrênica, dopada por drogas que desconhecia e diziam precisar; pela última vez em tanto tempo, Virgínia se emocionou com seu auto-abandono. Deitou-se no sofá tragando o último cigarro de sua vida, encheu o copo do que queria ter sido a vida inteira e sabia: jamais seria feliz por ser uma eterna insatisfeita. Envenenou-se no mesmo copo vazio de antes e sentiu-se leve. Aquela hora era tranquila e Virgínia não queria pensar em sua vida toda que nunca dera motivos para perder tanto tempo. Pensou em sua última canção. Uma canção de amor à sua inexistência. E segundos antes de morrer, lembrou-se: - era seu aniversário...

domingo, 12 de julho de 2009

Caminhando pelas ruas do ciberespaço

Uma palestra ontem me abriu os olhos para algo que eu ainda não enxergava: o brasileiro é extremamente disciplinado no que se trata de conhecer novas tecnologias e novidades na rede, mas produzimos pouquíssimo conteúdo. Somos um retrovisor, um termômetro das inovações pelo mundo. O que falta para nós? Coragem? Empreendedorismo? Incentivo? Talvez ainda não tenhamos enxergado que o mundo não é mais - e nunca será - o mesmo. A evolução/revolução será constante, e talvez este seu emprego com carteira assinada, caro leitor, não exista mais daqui a alguns anos. Nunca o conceito do "do it yourself" foi tão forte e tão significativo. Fronteiras, muralhas e limites estão se extinguindo, saiba. Este blog, por exemplo, é feito por quatro pessoas que moram a quilômetros de distância uma das outras. Enquanto você lê estas mal traçadas linhas (clichê, hein?), dezenas (ou centenas, ou milhares) de outros blogs estão sendo criados, com conteúdo interessante. Você já criou o seu? O palestrante de ontem, Gil Giardelli, citou dois exemplos bacanas: um é o site Enjoei, no qual alguém com muito senso percebeu que existem pessoas que enjoam dos seus pertences e querem se desfazer deles. Mediante uma comissão, estas pessoas anunciam seus produtos no site e podem encontrar alguém que os queira. Outro exemplo foi o Coletivu, local para reunir grupos que possuam uma rota em comum e organizem caronas para seus trajetos. Interessante, não? E você, tem alguma ideia inovadora que possa revolucionar o mundo da internet? Que tal compartilhar conosco? Para terminar, uma frase proferida na palestra de ontem: "O ciberespaço é uma cidade onde as ruas não tem nome". Que tal colocar o seu em uma delas?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Lorena na Mojo

Mais uma colega estréia seu Mojo Single. Desta vez é a caçula do blog, Lorena Cicari, que escreveu seu conto baseado em "Copo Vazio" do Chico Buarque de Hollanda. O resultado você confere clicando aqui.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

"Pois quem tiver nada pra perder, vai formar comigo um imenso cordão"

Agora que estou às portas da morte, questiono-me sobre o porquê das pessoas contarem os segredos ou revelar verdades quando estão para morrer. Sabe, tenho uma doença que médico algum diagnostica, que benzedeira alguma cura (sim, odeio coisa relaciona a este tipo de crença, mas estou muito fraco para impor minha vontade), que reza alguma funcione. Passei minha vida toda guardando alguns segredos, não por serem importantes ou reveladores, mas você já percebeu o quanto é difícil manter algo secreto? É como se as pessoas conseguissem ‘sentir’ (falando assim, parece que me refiro a um cachorro... mas, pensando bem, as pessoas são como cães farejando motivos para ferrarem com tudo) quando algo está tampado pelo véu casto dos segredos. E sempre tentam macular tão jóia, tais mistérios. Por que o ser humano gosta tanto de acabar com o que nos aguça a curiosidade, de desvendar tudo? Os mais descrentes me parecem tão desesperados para crer em qualquer coisa que crêem ser possível obter verdades sobre tudo. Coitados.

Mas voltando ao ponto, por que revelar os segredos quando estamos para morrer? Uma coisa que nos sacrifica tanto para manter, sendo entregue tão facilmente, simplesmente porque se não contarmos os ‘mistérios’ morrerão conosco. Mas, não é exatamente está a idéia? Que os segredos morram conosco? (ah! Vai entender essa mente humana). Ou será que precisamos provar, depois de sabe-se lá quantas cobranças pagas, que amamos alguém, e para isto temos de entregar até o nosso último e secreto desejo... ou mentira.

Fui casado por muitos anos, muitos anos mesmo. Uma vida (como se eu tivesse tido outra, como se fosse possível outra... Talvez para quem perca a memória sim, mas não é o meu caso). Sempre fui honesto, mas comigo mesmo. Oras, por que ser honesto comigo é indigno? Não me via obrigado a dançar a música da minha esposa, só porque ela queria que eu partilhasse tudo com ela. Nunca partilhei tudo com ninguém. O máximo que eu dividia era o meu nada, o que já era muito, porque se você for pensar bem, o nada é muito mais do que qualquer outra coisa. É a forma mais rápida de manter secreto um segredo (isso foi um trocadilho sem graça? Desculpe-me, oquei, estou para morrer. Talvez meu senso de humor não funcione tão bem como outrora - Oh palavrinha feia... não gosto).

Certa noite, cansado como nunca estive, acordei e vi à cabeceira de cama minha mulher, prostrada, um padre e minha mãe: era hora da extrema unção (sempre achei que se escrevesse ‘extremunção’. Erro grosseiro, não é mesmo?). O padre veio, fez todo aquele teatro, livrou minha alma sabe-se lá do quê, para ir para sei lá onde, enfim, aquele ritual de partida fora feito. Minha mãe acompanhou o padre até a rua, e minha mulher postou-se ao meu lado, passando as mãos em minha cabeça. Acariciava meus poucos cabelos e minha testa, talvez ela pensasse “vá, morra logo. Livrai-me disso tudo.”, mas nunca disse. Minha respiração foi ficando cada vez mais lenta, meus olhos com a expressão caída (como outras partes do meu corpo, se é que me entende), minha hora estava chegando, ou era a hora da morte trabalhar? Tanto faz. Minha mulher olhava-me com uma cara estranha, como se me perguntasse algo. Não consegui compreender. Depois de muito silêncio e um olhar esquisito, ela me disse: “não tens nada a me dizer? Nada que queira revelar? Ou algum segredo que precise que eu saiba?” Olhei para ela, fiz uma força descomunal, pois estava muito fraco, e respondi que não. Depois morri. E por hora não sei onde estou. Pois bem, acredite nisso. Ou você achou que eu fosse revelar esta ‘verdade’, este ‘segredo’?

terça-feira, 23 de junho de 2009

Nada mais, nunca mais...

O diagnóstico de depressão parecia incrivelmente leve em sua mão. Parecia que estava lendo algo dirigido a outrem, na verdade, a ninguém específico. Parecia estar lendo um diagnóstico fictício, de um personagem fictício, de algum livro de ficção ruim. Muito ruim. Sorriu amarelo para o psiquiatra e esperou ele entregar a receita. Juntou os dois papéis na carteira, apertou a mão do dr. e saiu. Estava se sentindo incomodada por estar aceitando aquilo tão bem. Uma sensação estranha, como se já tivesse certeza de seu estado, e do que aconteceria dali pra frente. Deixou o prédio tentando acomodar esse incômodo. A rua estava impressionantemente limpa e o sol de inverno lançava uma luz aconchegante sobre tudo. Ela não percebeu isso, estava deprimida oras, não tinha obrigação de perceber coisas sutis assim. Passou na padaria e comprou dois pães e um maço de cigarros. No caminho acendeu o primeiro cilindro pensando que deixaria os pães estragar, como fazia há algumas semanas já. Detestava fumar do jeito frenético que estava fumando. Mas fumava, contorcendo os lábios com desgosto. Chegou em casa e demorou a destrancar a porta. Aquilo a deixou angustiada, triste mesmo. Entrou e lançou o pão com displicência sobre a mesa, não sem correr os olhos sobre a lixeira onde os pães de anteontem e ontem foram descartados. Foi para o quarto, ligou o computador e a tv, acendeu outro cigarro. Não deu atenção nem à tv nem ao computador. Apagou o cigarro e se deitou. O travesseiro estava frio, a cama também. Não dormiu, não ia dormir. Nunca dormia mesmo. Seu sono não passava de uma necessidade biológica, não descansava, não relaxava, não levava nada embora. Passou o polegar sobre as unhas roídas. Olhou para o porta retrato, com a foto dos seus pais. Não gostava deles, não naquele momento. Naquele momento não gostava de nada. Eram seis da tarde e ela precisava comer. Se dizia isso como quem se cobra uma dieta na segunda-feira. Levantou da cama. O mundo parecia muito grande fora dali. Preparou a mesa e colocou algo no microondas. Lembrou que tinha retirado o telefone do gancho na noite anterior, simplesmente por retirar. Colocou-o de volta. Tirou o prato do microondas e olhou pra ele com cara de desgosto. Comeu pouco, quase nada. Deixou tudo como estava e se despiu. Foi até o banheiro, e abriu o chuveiro. A água estava quente, seus seios ficaram vermelhos rapidamente. Ela se sentou no chão do banheiro e chorou, chorou muito. Esperava espíritos negros que a levassem embora. Esperava o som de catástrofes e o juízo final. Esperava assaltantes, quedas de aviões, tudo que pudesse terminar com sua vida ali, naquele momento. Não queria ter a responsabilidade por um suicídio, então não se matava. Ficou ali chorando, sob a água quente, sentindo a depressão pesar, independente da leveza do diagnóstico no papel. Não seria feliz, nunca. Sabia disso. Se sentia má, ofensiva, doente e culpada. Não era nada mais que uma suicida incapaz de se matar e com os seios vermelhos pela água quente. Não era nada mais, sem ironia, sem nada no meio...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Você é o que você come...

poster de Cannibal Holocaust (clique na imagem para ampliar)
Capas do Cannibal Corpse (clique na figura para ampliar)

pães no formato de pés necrozados


Tudo bem, provavelmente não poderia existir um título mais clichê para um texto que envolve de alguma forma canibalismo. Mas o tema de hoje pode ser tudo, menos sutil. É justamente na falta de sutileza que ele pretende sobreviver e encontrar adeptos. Não estou falando do canibalismo em si, mas de uma espécie de arte que podemos chamar de "arte canibal". De fato, o mal e a violência não são temas novos dentro da arte. Como a arte primitiva tinha uma forte inspiração nas dinvidades adoradas por aqueles povos, sempre havia algo de cruel e assassino, porque, ao contrário da maioria das religiões monoteístas, existiam também deuses cruéis e assassinos. Então isso não é uma novidade. Mas existe algo de terrivelmente inovador no tipo de arte que irei mencionar aqui: um desejo obcecado pelo mais extremo realismo. O importante é que o que esteja sendo representado o seja com a maior carga de verdade possível. Um caso emblemático é o do artista/confeiteiro Kittwat Unarrom que esculpe pães e bolos como partes do corpo humano. Tudo com um realismo impressionante, representando a textura da pele, a cor do sangue, tudo. Algumas peças tem a forma de órgãos ou membros deformados ou necrosados. Essas "delícias" são vendidas a preço de ouro, e muitos compradores fazem questão de devorar suas relíquias para apreciação pública.

Na música não existe exemplo melhor que a banda de metal Cannibal Corpse. É evidente que o canibalismo aqui não está presente no nome apenas. As letras da banda tratam com uma constância até monótona de atos necrofágicos, tudo carregado com uma dose imensa de um erotismo perverso. Desde um "vício por pele vaginal" (addicted to vaginal skin) até atos de vilipêndio explícito a cadáver (Sever the limbs/ DecapitateYank out the teeth/ Then masturbate/ Pounding the face/ Ejaculate, diz a letra de Dismembered and molested) a obra do Cannibal Corpse é recheada de momentos não recomendáveis para a maioria das pessoas. As capas são um insulto à parte, retratando cenas de morte e canibalismo de forma impressionante.

Mas poucas coisas superam o festim macabro de Cannibal Holocaust. Esse filme italiano de 1979, dirigido por Ruggero Deodato é considerado o mais extremo filme de horror já produzido. Ao invés de monstros e fantasmas, Deodato se utilizou de tribos indígenas canibais, ao invés de lugares escuros e abandonados, a selva amazônica durante o mais brilhante dos dias. Os efeitos são tão realistas que o diretor foi preso após a premiere do filme, acusado de realizar um snuff movie, filme em que os atores são realmente mortos durante a gravação. Somente após apresentar os atores vivos e bem as acusações foram retiradas. Depois de Cannibal Holocaust a carreira de Deodato acabou. Conseguiu somente alguns filmes para a tv e nada mais. O filme se tornou um cult e muito de seu estilo foi copiado por produções posteriores. A Bruxa de Blair é um exemplo. O filme de Deodato foi o primeiro a trabalhar com aquele clima de documentário. O mais ofensivo do filme, em verdade, são as cenas em que animais reais são mortos. Um porco do mato, uma cobra, uma aranha, um gambá, um macaco de cheiro, e na cena mais horrenda de todas, uma tartaruga que é decaptada e decepada enquanto seus membros continuam a se mover para no final do sacrifício um dos personagens brincar com as vísceras da mesma. Seguem-se terríveis cenas de estupro, empalamento ritual, morte por lapidação, aborto forçado e, claro, canibalismo. O filme se utiliza de milhões de clichês sobre o certo e o errado e mais um sem número de informações equivocadas sobre as tribos nativas da amazônia. Mas, como foi dito no início, sua pretensão não é ser sutil.

E é aí que está o centro do problema. O nível de realismo de cannibal holocaust, contendo inclusive mortes reais de animais, é realmente necessário? Até que ponto a arte pode chegar? Podemos mesmo dizer que aqui há arte? De fato, o problema real de cannibal holocaust não é ser um filme extremamente violento. O problema é o realismo tremendo com que tudo é feito, forçando os limites entre realidade e representação. Pense bem, você compra um ingresso para assistir a uma peça de teatro, chega lá, as cortinas se abrem, e os atores no palco não fazem nada além de imitar, da forma mais real possível, o comportamento de pessoas reais, em suas vidas cotidianas. Seria isso arte? Por mais que uma concepção única de arte seja impossível arrisco-me a dizer que não. Falta a representação aqui. A representação não é uma mera repetição do real, mas sim uma sublimação simbólica do mesmo. Era o que Artaud fazia com seu teatro da crueldade. Ao invés de colocar uma lua no palco representando a noite, colocava um pássaro com os olhos fechados, uma representação da noite no teatro japonês. Quando a linguagem da representação é rompida, não existe mais arte, existe vida real. E nós não precisamos de duas dela. O que se devora em cannibal holocaust é o simbólico, necessário a toda arte. Isso é tão ofensivo quanto os sacrifícios animais no filme, por mais que muitos não percebam.



terça-feira, 9 de junho de 2009

"Recompondo..."

Ele só queria sentir o que poderia ter do nada, ter de expectativa alguma, de obrigação mínima. Queria provar a sua própria companhia: precisava sair. Decidiu, então, levantar-se naquela manhã triste e trivial e não pensar. Não tomar nota de si, daquele si de todos os dias infelizes. Ele virou-se para o lado e o viu, estava tão medonho, tão íntimo, tão só; não agüentou vê-lo descaradamente compreendido, e relevantemente não enigmático; a vida tinha se transformado em, apenas, uma seqüência de dias iguais. Ele lembrou-se de que eram o que não deveriam ser, que eram contrários e eram contra. Tornaram um ao outro um casal comum, um casal chato, sem graça, sem particularidades, sem desbravamentos. Ele não mais suportava. Vestiu-se apressadamente, como de costume, e pôs-se a cantarolar algo indecifrável. Foi até a cozinha, preparou o café, como de costume, colocou os pães, o suco, o bule de café, o bolo, as xícaras, como de costume, sobre a mesa. Deu um gole a seco no café forte, e saiu.

Naquela manhã ele fez o mesmo trajeto de todos os dias, mas não percebeu nada ao seu redor. Ele não percebeu a menina que explodia em alegria brincando com um filhote de cachorro na porta de casa, não percebeu o cego que o fez parar antes que uma bicicleta o atingisse, não reparou no jornaleiro que anunciava uma nova contratação de um clube qualquer de São Paulo. Ele não percebeu que o ônibus estava lotado, que as pessoas estavam com aquela cara de sempre: a cara dele era a expressão de todos. Desceu do ônibus e, finalmente, chegou ao serviço; quando olhou para a entrada, pensou: “Eu poderia não ter vindo para cá hoje. Eu poderia ter entrado em qualquer outro ônibus e ido para algum lugar que me fizesse lembrar o caminho.”. E como se não houvesse mais tempo para isto, ele entrou no prédio. Cumprimentou fria e equivocadamente seus bastardos colegas de infelicidade. Ele desistira, outra vez naquele dia, de abandonar os reflexos do fracasso. Ele foi novamente apenas o ‘Ele’ que ele não agüentava mais. Naquele dia ele desistiu.

Na volta pra casa, para aliviar a própria consciência dos pensamentos francos e honestos, passou em uma adega e escolheu um vinho. Passou em uma livraria e escolheu um livro. Naquela noite eles se conheceriam, eles beberiam, leriam um para o outros, e desabafariam o peito em segredos presos na ponta da língua.

Quando abriu a porta de casa e entrou, sentiu algo estranho. Não havia cheiro de ‘banho tomado’. A casa estava vazia. Foi até o quarto e viu que somente as suas coisas estavam ali, e viu que todas as suas coisas estavam arrumadas, como se jamais tivessem, ainda que se conhecessem tão bem, misturado nada de suas vidas. Como se nunca tivessem dividido uma gaveta, uma estante, uma prateleira, um caderno: eles não se uniram, nunca. E em seu rosto lágrimas rolaram, rolaram numa desordem grata, num concerto de gratidão. Ele estava sozinho, e não precisara sujar-se com o fim.

Chegando à cozinha encontrou um envelope, ficou irritado, pois aquela carta distorcia todo o ambiente, era algo que não queria que estivesse ali, abriu-o e leu:


“Sabe o que é acordar todos os dias e sentir que estás apenas se levantando, ou que esperas, apenas, que chegue a noite para que possa, se Deus quiser, desperdiçá-la dormindo -acontecimento raro. Entretanto, mesmo que rasgue a noite em pensamentos lúcidos, ela não está lá, você não está lá. Nunca se vê, nunca a nota... Nunca ME nota. Triste e bela a Noite, apenas calça as sandálias, e desfila pelo corredor. Só em casa, trancada, a Noite pode exibir-se. Você esqueceu, desaprendeu a vê-la: ela não interessa, eu não interesso. E para você, então só resta fechar os olhos e adormecer, entretanto, você é muito fraco para sonhar, para criar. Está apenas mais uma vez esperando algo, esperando acordar para adormecer outra vez.
Eu não suporto mais isto.

O amei como talvez eu não tenha imaginado quando nos conhecemos. Ainda és o que me dói no peito, e o que me tarda da vida. Não me quero com você mais.

Daquele que jamais o quererá outra vez. Henrique.

E foi com estas palavras que ele agradeceu não ter tomado o rumo, mais cedo, de outro caminho. Que agradeceu ter ido ao trabalho, e não desviado a rota de costume. No entanto, algo o assombrava as idéias: “como seria a vida de Henrique, como ele se faria depois dali? Será que os novos caminhos dele o farão lembrar-se sempre dos trajetos?”. Mas como de costume, deixou-se levar pela cômoda preguiça cômoda e caiu no sofá. E assim, sentado no sofá com seu vinho, e seu livro ele recompôs seu futuro. Mas não havia nada lá. Não haveria nada de novo pela frente. Ele não seria capaz de tentar nada. O nada seria sempre sua mais intensa busca, seu mais intenso desejo e prazer. O nada era a conquista do fracasso.