quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Praticamente nada

O seu orientador dava os últimos detalhes na beira do palco do auditório da universidade, onde dali a poucos minutos ele apresentaria a defesa de sua tese de doutorado. Foram anos de pesquisa. Anos bem vividos? Não tinha tanta certeza. Mas estava ali. Seu casamento resistira, embora as horas na frente do computador, entre pesquisas e redação tomassem de si o tempo necessário para carinhos e obrigações conjugais. Olhou para a platéia, localizou sua esposa na terceira fila. Ela não gostava de ficar logo na frente, não apreciava exposição excessiva. Mas estava com ele, sempre o apoiando. Deu um sorriso, e ela retribuiu. Lembraria desse sorriso e choraria mais tarde, emocionado. O orientador continuava a falar, tal qual um treinador dando orientações a um boxeador. Pensou na analogia que acabara de fazer, julgou ser mesmo semelhante sua situação com a de um lutador prestes a entrar no ringue. A banca examinadora posicionada, como os juízes de uma luta. O adversário? Sua própria consciência, talvez. Ou a sociedade. Como encarariam a tese que ele iria defender? Achariam absurda e descartariam a utilidade prática daquele trabalho? Nesse caso, como ficaria seu orientador? Tomaria partido ou lavaria as mãos? Absorto em suas divagações, nem ouviu as últimas recomendações de seu mestre/treinador. Era o momento de subir ao palco e defender sua tese. Estava bem alinhado, o terno comprado especialmente para o evento, capricho de sua esposa, já que mal tinha tempo e senso para escolher a roupa que vestiria. Apresentado, era a sua vez. Cumprimentou a banca, deu boa noite aos convidados e se preparou para falar. Não se lembrava de uma palavra dita pelo orientador, nem mesmo do que ensaiara antes de chegar. Acionou a apresentação do PowerPoint e tentou começar. As palavras não saíram. Começou a suar. Olhou novamente para a terceira fila da platéia, buscou forças e resolveu falar o que seu coração pedia:


“Senhoras e senhores, este trabalho é fruto de alguns dos anos mais solitários de minha vida. Os anos que passei dormindo mal, me alimentando de forma errada e automática. Nestes anos, não pude diferenciar o clima, não sabia se chovia ou se fazia sol, exceto pelos dias em que fui obrigado a ir a campo, atirando no escuro para comprovar algo que nem mesmo sei se é verdadeiro. Senhores, façamos um exercício de imaginação. O que vale mais para um leigo? Saber o motivo daquele tom alaranjado no céu ao amanhecer, ou apreciar a bela cena ao lado de alguém de quem gosta? Entendam: não estou aqui querendo desmerecer o trabalho dos cientistas, tudo isto diz mais respeito a mim do que a eles. Entendo hoje que desperdicei alguns bons momentos a troco de algo que nunca usarei em minha vida prática. Mais do que isso: limitado às minhas pesquisas, não tive jamais uma vida prática. Sei menos do que um operário, não nego. Fico aqui a pensar o quanto sou capaz de transmitir aos meus futuros pupilos, e o quão importante será para eles os ensinamentos que eu julgava importantes até uma hora atrás. Senhores, tenho que confessar: este meu "surto", minha “ficha caindo”, se devem exclusivamente a um sorriso na terceira fila. O sorriso de quem nunca deixou de acreditar que eu fosse estar aqui. O sorriso de quem, mesmo querendo que eu estivesse por perto, vendo as folhas caírem no outono, nunca foi capaz de me cobrar. E hoje estou aqui. Apresentando o resultado da minha reclusão. Do meu desligamento do mundo. Para quê? Não sei. Não sei. Pra satisfazer meu ego, talvez. Pra satisfazer aos requisitos do mercado de trabalho, o mais provável. Fato é que eu não queria estar aqui. Não tenho talento pra enganar ninguém. Talvez ainda haja tempo de recuperar o que deixei para trás. Quem quiser saber de mim, me procure na beira de um lago qualquer. Ou numa praia deserta. Ou num sítio, sentado numa pedra, observando as formigas carregarem folhas num dia de verão. Pensando melhor, não me procurem. Vão vocês também procurar o que fazer, ao invés de ficarem trancados dentro de si mesmos, fingindo saber o que não sabem, fingindo que têm talento para avaliar o que não pode ser avaliado. Desculpem por fazê-los perder tempo comigo".

Dito isso, se retirou. Não esperou para saber sua nota (a banca lhe daria um 10, não fosse sua apresentação petulante, alguém diria depois). Correu para a terceira fila. Lá, aqueles mesmos olhos que o observavam estavam atônitos. Mesmo assim, havia um ar de admiração naqueles olhos. E além dele, estes olhos não viam mais ninguém. Saíram apressados. Um silêncio constrangedor tomava conta do ambiente.

Um comentário:

  1. "este meu "surto", minha “ficha caindo”, se devem exclusivamente a um sorriso na terceira fila"

    BRAVO!

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