segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Iconoclasta

Dedicado a você, que não nos esquece.

É bom estar aqui no Céu. A vida é tranquila. Não sei, mas acho que você demora a chegar aqui. Se chegar. Todo final de ano, você se rebela. Acho que é sinal de que ainda não está maduro para nos alcançar. Ah, respeito tua reza, mas estes santos estão de férias. Quer recomeçar?

- "Saque indisponível. Dirija-se ao caixa eletrônico ao lado".

- "Senhor, infelizmente este item está fora de catálogo. Poderia refazer seu pedido?"

Não aprecio batalha naval. Prefiro lutar em terra firme. Aqui na ilha temos todo tipo de fruta tropical. "Yes, nós temos bananas!".

"Se eles rezam muito, eu já estou no Céu!".

Engraçado. Quem não chegou aqui ainda, fica o tempo todo a deduzir como seria nosso ambiente... ao mesmo tempo, desdenha. E, óbvio, não nos esquece. Mas que coisa, o segredo está em todo lugar. Está na Bíblia, está nas canções, está até mesmo nos códigos jurídicos.

"Esqueça os mortos, eles não levantam mais!"

Engraçado mesmo é ver como você acha que tem opiniões relevantes a respeito da carreira de alguém. Como se importasse para este alguém ou para quem o aprecia, saber como você acha que deve ser direcionada tal carreira.

"Please don´t put your life in the hands of a rock n´ roll band..."

Bom, é hora de ir. O pessoal está nos chamando pra jogar um futebol aqui. Aliás, nosso time está incompleto. Conhece um bom lateral-esquerdo? O quê? Você? Não. Precisa treinar mais um pouco. Tente ano que vem...

Ah, em caso de dúvida sobre como se comportar, leia: http://marmitafilosofica.blogspot.com/2009/03/arte-da-irrelevancia.html

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A química nossa de cada dia

A história contada não é nada mais que uma viagem completamente inverossímil. Mas é um bom pretexto para apresentar "Everyday Chemistry", coleção de mashups de canções das carreiras-solo de John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr, compiladas como se fossem gravações inéditas dos Beatles. Segundo nos conta o sujeito que adota o nome fictício de James Richards, ele passeava de carro pelo deserto com seu cão. Ao fazer uma parada no acostamento, acaba sofrendo um acidente, pisando em falso no que parecia ser uma toca de coelho e batendo a cabeça. Segundo ele, acorda em uma casa, para onde foi levado por um homem que diz se chamar Jonas, e que diz viver em um mundo paralelo. Pra encurtar esta história, neste mundo paralelo, os Beatles ainda tocam juntos. Inclusive George e John estão vivos. Jonas mostra a ele gravações "inéditas" do quarteto. Impedido pelo tal sujeito de outra dimensão a levar a fita, Richards acaba surrupiando uma delas. De volta ao mundo real, apresenta então esta gravação através do site "The Beatles Never Broke Up", além de contar a absurda história. Enfim...
Trazendo a história para o mundo real (de verdade), o tal "Everyday Chemistry" não parece eficaz em mostrar uma hipótese do que poderia vir a ser um disco dos Beatles se eles continuassem juntos. Principalmente pela bateria eletrônica que permeia as gravações, o que talvez fosse necessário para fazer com que as colagens ficassem coesas. Como curiosidade, é extremamente interessante. Mas é só. Pra quem deseja conhecer, basta baixar o álbum completo aqui. De cara, logo na primeira canção, "Four Guys", dá pra sacar as misturas de canções da carreira-solo de Paul McCartney (maioria no disco), principalmente "Band on the run".


Seja como for, vale conhecer.

sábado, 19 de dezembro de 2009

A trilha sonora de um mundo que não existe mais...


Humberto Gessinger é um cara que ainda escreve canções. Ele é o sobrevivente de uma época estranha, em que as pessoas esperavam que os artistas dissessem algo através de sua arte e muitas vezes esses artistas acreditavam que isso era possível. Se a obra dos Engenheiros tivesse aparecido na década de 60 em um país menos tropical talvez não tivesse passado por toda sorte de vilipêndios que enfrentou. Na melhor das hipóteses Gessinger pode ser classificado como um atavismo que superou as tentações fulgurantes das mudanças e adaptações à moda justamente por se dedicar a algo incrivelmente anacrônico: escrever canções. Muitos já estão pensando nesse momento: "mas, um monte de gente ainda escreve canções!" Será mesmo?

A canção popular é um fenômeno cultural da modernidade. Não é de se assustar que o fim da era moderna, o qual atravessamos desde o final os 60's, ameace de extinção a canção. O paradigma em que ela nasceu e surfou quase soberana por tanto tempo não mais existe. A produção enlouquecida de música eletrônica (que não segue o padrão de uma canção) é prova disso. A canção se torna a exceção dentro de uma regra que prega a repetição, o barulho, o caótico. Muitos "artistas" que pretendem trabalhar canções vendem uma outra coisa, um estilo, uma festinha, um rostinho bonito, e a canção é só um brinde. Para um público que não sabe ouvir, "artistas" que não sabem compor ou tocar. O melhor e mais mastigado exemplo são as bandas emo, mas podemos colocar no mesmo balaio o Capital Inicial, os Titãs, as bandas de festa 'ploc', e toda essa farra do boi em que se transformou a música brasileira.

Essa realidade só torna o trabalho do cancioneiro uma anacronia ainda maior. Talvez seja a primeira sensação que nos acomete quando ouvimos o trabalho de Gessinger e seu parceiro, Duca Leindecker, no projeto chamado Pouca Vogal. Quando o duo liberou suas oito canções inéditas e semi-acústicas no seu site havia algo ali que chocava. O que chocava era a distância monumental do barulho, da bagunça, da gritaria e do baticundum fake que permeia 99 em cada 100 trabalhos musicais lançados hoje. Mas somente assistindo ao DVD que essa impressão se decantou e confirmou. Tudo é sofisticadamente simples, menor, singelo. Apesar de se multiplicarem sobre múltiplos instrumentos e bugingangas, nada é exagerado, nada é além da medida, nada é falsificado. Mas o que impressiona mesmo é o fato das canções funcionarem num mundo em que ninguém mais liga pra canções. Podemos ignorar isso, mas é assustadoramente sintomático que os Beatles continuem na mídia mas que pouco se fale sobre as canções que fizeram juntos. Isso explica também o fato de que Lennon, obviamente o beatle com a vida mais impressionante, tenha uma presença midiática mais forte que os demais membros da banda.

Outro fato sintomático é a incapacidade latente dos "músicos" populares de hoje de falarem sobre música. Tudo é falado, narrado, investigado, da cor do esmalte à quantidade de obturações dentais do dito cujo, mas todos são incapazes de falar sobre música, sobre o que é legal ou não, sobre quais as pretensões artísticas, timbres, letras, etc. O melhor exemplo de diletância vazia são as entrevistas do Marcelo Camelo. Poucas pessoas tem aquele talento para falar, falar, falar e nada dizer. Até o "hã?" de sua namorada adolescente, Mallu Magalhães, é mais profundo que tudo o que o Camelo acha que diz.

Mas estávamos falando de músicos sérios. Quem estiver procurando um disco de rock nos moldes tradicionais deve passar longe do Pouca Vogal. Quem quiser algo revolucionário e avant garde, também. Não temos excessos e firulas, nem ôêôs com a platéia. Não temos guitarras quebradas no palco, nem carinhas de tesão fake pra impressionar as menininhas. Ao invés disso Gessinger & Leindecker nos dão canções, boas canções. Em tempos de arte vazia e megalomaníaca, em que tudo é purpurina e falação, isso é uma grande coisa.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Praticamente nada

O seu orientador dava os últimos detalhes na beira do palco do auditório da universidade, onde dali a poucos minutos ele apresentaria a defesa de sua tese de doutorado. Foram anos de pesquisa. Anos bem vividos? Não tinha tanta certeza. Mas estava ali. Seu casamento resistira, embora as horas na frente do computador, entre pesquisas e redação tomassem de si o tempo necessário para carinhos e obrigações conjugais. Olhou para a platéia, localizou sua esposa na terceira fila. Ela não gostava de ficar logo na frente, não apreciava exposição excessiva. Mas estava com ele, sempre o apoiando. Deu um sorriso, e ela retribuiu. Lembraria desse sorriso e choraria mais tarde, emocionado. O orientador continuava a falar, tal qual um treinador dando orientações a um boxeador. Pensou na analogia que acabara de fazer, julgou ser mesmo semelhante sua situação com a de um lutador prestes a entrar no ringue. A banca examinadora posicionada, como os juízes de uma luta. O adversário? Sua própria consciência, talvez. Ou a sociedade. Como encarariam a tese que ele iria defender? Achariam absurda e descartariam a utilidade prática daquele trabalho? Nesse caso, como ficaria seu orientador? Tomaria partido ou lavaria as mãos? Absorto em suas divagações, nem ouviu as últimas recomendações de seu mestre/treinador. Era o momento de subir ao palco e defender sua tese. Estava bem alinhado, o terno comprado especialmente para o evento, capricho de sua esposa, já que mal tinha tempo e senso para escolher a roupa que vestiria. Apresentado, era a sua vez. Cumprimentou a banca, deu boa noite aos convidados e se preparou para falar. Não se lembrava de uma palavra dita pelo orientador, nem mesmo do que ensaiara antes de chegar. Acionou a apresentação do PowerPoint e tentou começar. As palavras não saíram. Começou a suar. Olhou novamente para a terceira fila da platéia, buscou forças e resolveu falar o que seu coração pedia:


“Senhoras e senhores, este trabalho é fruto de alguns dos anos mais solitários de minha vida. Os anos que passei dormindo mal, me alimentando de forma errada e automática. Nestes anos, não pude diferenciar o clima, não sabia se chovia ou se fazia sol, exceto pelos dias em que fui obrigado a ir a campo, atirando no escuro para comprovar algo que nem mesmo sei se é verdadeiro. Senhores, façamos um exercício de imaginação. O que vale mais para um leigo? Saber o motivo daquele tom alaranjado no céu ao amanhecer, ou apreciar a bela cena ao lado de alguém de quem gosta? Entendam: não estou aqui querendo desmerecer o trabalho dos cientistas, tudo isto diz mais respeito a mim do que a eles. Entendo hoje que desperdicei alguns bons momentos a troco de algo que nunca usarei em minha vida prática. Mais do que isso: limitado às minhas pesquisas, não tive jamais uma vida prática. Sei menos do que um operário, não nego. Fico aqui a pensar o quanto sou capaz de transmitir aos meus futuros pupilos, e o quão importante será para eles os ensinamentos que eu julgava importantes até uma hora atrás. Senhores, tenho que confessar: este meu "surto", minha “ficha caindo”, se devem exclusivamente a um sorriso na terceira fila. O sorriso de quem nunca deixou de acreditar que eu fosse estar aqui. O sorriso de quem, mesmo querendo que eu estivesse por perto, vendo as folhas caírem no outono, nunca foi capaz de me cobrar. E hoje estou aqui. Apresentando o resultado da minha reclusão. Do meu desligamento do mundo. Para quê? Não sei. Não sei. Pra satisfazer meu ego, talvez. Pra satisfazer aos requisitos do mercado de trabalho, o mais provável. Fato é que eu não queria estar aqui. Não tenho talento pra enganar ninguém. Talvez ainda haja tempo de recuperar o que deixei para trás. Quem quiser saber de mim, me procure na beira de um lago qualquer. Ou numa praia deserta. Ou num sítio, sentado numa pedra, observando as formigas carregarem folhas num dia de verão. Pensando melhor, não me procurem. Vão vocês também procurar o que fazer, ao invés de ficarem trancados dentro de si mesmos, fingindo saber o que não sabem, fingindo que têm talento para avaliar o que não pode ser avaliado. Desculpem por fazê-los perder tempo comigo".

Dito isso, se retirou. Não esperou para saber sua nota (a banca lhe daria um 10, não fosse sua apresentação petulante, alguém diria depois). Correu para a terceira fila. Lá, aqueles mesmos olhos que o observavam estavam atônitos. Mesmo assim, havia um ar de admiração naqueles olhos. E além dele, estes olhos não viam mais ninguém. Saíram apressados. Um silêncio constrangedor tomava conta do ambiente.