sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

O diálogo surdo

"O grito", de Edvard Munch, 1893


"A única coisa que devemos temer é o próprio medo" - Franklin Roosevelt


O presente texto é o diálogo de um homem com o próprio medo, e a forma como este homem resolveu "exorcizar" este sentimento. A história é fictícia. Qualquer semelhança com a vida real não é coincidência, apenas a constatação de que a vida real tem das suas ironias.

Veio como um sussuro. O frio castigava, se fazia presente e deixava suas marcas de alguma maneira, sendo confundido com as formas mais diversas de sentimento ruim que se pudesse imaginar. Ele não entendia: tudo parecia correr tão bem... como é que as coisas foram sair dos eixos de forma tão abrupta? Em que ponto do planejamento ele havia errado? O que o fizera dar estes passos para trás? 

A resposta, senhores, é que o culpado foi o medo, aquele que não tem idade, que habita os porões da alma. Aquele que, tal qual uma alma penada, arrasta suas correntes para lá e para cá, afastando qualquer foco de sucesso ou glória que possa existir. Aquele que é quase um câncer, que afeta a visão, a audição e a fala. Aquele, que em alguns casos paralisa; em outros faz correr.

E ele estava lá. Na solidão de seu lar, estranho lar. Na cadeira permanecia, e só o medo lhe pertencia. O rosto entre as mãos. Fome, sede? Não, não. Apenas medo e solidão.

Mas eis que, cheio daquele desatino, logrou mudar seu destino, e do medo de vez se livrar! Se ergueu com súbita coragem, afastou determinado aquela imagem, e convicto, desandou a bradar: “Suma-se, que eu não te quero mais, não me trazes prazer nem paz, nada me trazes além de mal estar”.

E foi assim que se deu a surpresa, à beira daquela mesa, a revelação se fez chegar: o medo também tinha medo, também tinha pontos fracos, que era só saber explorar.

E desse jeito, se deixou levantar, e com um soco no ar, saiu pra resolver a questão. Mas antes da saída cruzar, seu recado ele quis deixar, um veredito, uma decisão: “Medo, sei que tu irás voltar. Quando chegares, não penses que me encontrarás com a porta escancarada, num canto a te esperar. Estarei fortemente armado, com meu sexto sentido aguçado, aguardando a hora de te enfrentar!”. E é por isso que aos quatro cantos eu berro, com minha alma de ferro: “Tua hora vai chegar!”

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sobretudo à fantasia...


Na foto uma ânfora grega onde Fobos (o deus do medo) cavalga junto com seu pai Ares (o deus da guerra) em batalha).




"Porque o homem tem medo das alturas celestiais e dos abismos do inferno, do lado esquerdo agourento e do espaço infinito, do para sempre e do nunca mais; mas também do escuro e da loucura, dos inimigos e da traição, da censura e da tortura; porque se teme o Mal da natureza e "o que o homem faz ao homen".(...) Porque a natureza é ameaçadora quando não controlada, porque o presente é contigente e o futuro incerto, mito e razão respondem a essa necessidadede vencer a angústia, protegendo a auto-conservação:"do medo o homem presume estar livre quando não houver mais nada de desconhecido"

Olgária Chain Feres Matos em T. W. Adorno: notas biográficas. (furtei essa citação de um comentário a um texto do blog http://www.argumentodeleterio.blogspot.com/ , sei que a propaganda não desculpa o delito, mas...)

Sêneca disse que o objetivo principal do pensamento filosófico é preparar o homem para a morte. A morte como o que limita a vida é, ao mesmo tempo, o que lhe confere seu real e definitivo sentido. Nossa vida só tem sua razão de ser porque ela acaba. Mas ainda tememos a morte. A nossa, a de nossos amigos, parentes...Tememos o seu desconhecido, o seu negrume absoluto, sua desrazão, seu inexplicado. Como o outro lado da moeda da vida, a morte, quando temida, nos leva a temer também viver. O medo de fazer, de arriscar, de tentar, é, em muitos termos, uma espécie de medo da morte. Medo da morte física, real, com seu penhor irresgatável. Medo da morte social, substanciada em olhares venenosos e palavras amargas. No gosto de absinto do sentir-se só. Medo da morte existencial, do não mais se reconhecer, do se perder, do nausear-se à mera percepção de si mesmo.

Tememos nossas mortes, e esquecemos que para morrer antes é preciso viver. Borges escreveu um conto em que uma senhora, preocupada com sua morte que julgava próxima, ia todos os dias ao cemitério cuidar de seu túmulo. Com tal esmero se doou a essa função que sacrificou até os mínimos prazeres de uma vida social. Em pouco tempo todos começaram a dá-la como morta. A morte em vida: o zumbi escatológico que se arrasta pelas telas dos cinemas B desafiando a razão com sua não-morte. O zumbi cinematográfico representa muito mais do que corpos decrépitos buscando por cérebros humanos. Em muitos termos ele representa nossa existência real, nossa gula real e irracional que destrói aos poucos tudo, inclusive a nós mesmos. O sofrimento sempiterno do que não morre mas também não vive, o homem vegetal, entrevado, a pele devorada pela inércia gangrenosa.

O psicopata Jeffrey Dahmer, que inspirou o personagem Hannibal Lecter, tentou lobotomizar algumas de suas vítmas, para transformá-las em zumbis sexuais. Na casa de Dahmer foram encontrados vários pedaços de corpos com os quais ele se masturbava antes de os devorar. Devido ao avançado estado de decomposição de alguns deles a remoção só foi possível com os policiais se utilizando de máscaras de oxigênio. Mas Dahmer não era um homem amedontrador, ao contrário, funcionário de uma fábrica de chocolates, era um cara gentil, novo na vizinhança, recém-chegado da casa onde morava com sua avó. O canibal amável. Não há medo aqui: uma vizinha idosa o agradece todos os dias por ajudá-la a carregar o lixo, seus colegas gostam dele, ele é afável, gentil, asseado, temente a deus. Não há o que se temer...

O medo transcendental, metafísico. O medo maior que o mundo. Que se cristaliza no céu para os bons e no inferno para os maus. O mundo negado e corrompido pelo medo e que termina projetado na alegoria binária do paraíso e da danação. Ao homem bom, temente a deus, o céu, ao mau, destemido (?) o inferno. Jeffrey Dahmer era um canibal amável, temente a deus, todos os presidentes republicanos eram tementes a deus, assim como os membros da Ku Klux Klan. O deus na cruz, pregado, pregando em nossas mentes a morte de deus, nosso assassinato. Deus, o credor que perdoa a nós, os devedores, eternizando nossa dívida com o verniz mau cheiroso da culpa e do medo. Os braços nodosos do Estige. Os trovões são os gritos de deus bravo com o mundo. Córtez soube explorar o medo que os homens sentem dessas bem pensadas ficções. Por ser louro e barbudo, foi identificado com o deus Quetzacoatl e com um punhado de homens pôs de joelhos uma civilização inteira. O medo de deus, o medo do pai, o complexo da castração.

Freud deu um novo sentido a nossos medos. Fobos sai da mitologia grega e se aninha em nossos preconceitos, nossos atos falhos, nossas neuroses diárias. E nosso peito sente explodir com a adrenalina, e as pupilas se dilatam enquanto a respiração acelera e dói e o suor escorre frio. A identidade física do medo, que joga por terra a separação entre corpo e mente tão cara ao ocidente e sua mania de separar tudo em gavetinhas.

O Poltergeist, aquela emanação fantasmagórica que movimenta objetos, abre portas, tem como um dos alvos preferidos gavetas. Melhor aquelas com fotos de familiares que já se foram, ou em que a esposa guarda escondida aquela carta do ex-namorado que não conseguiu esquecer.

O casamento por medo da solidão. O café da manhã juntos. Os filhos inesperados, crescendo e engordando. Cáries e medo do escuro. E não se tocam mais, quase não conversam. Depois de um tempo esconder a mancha de batom no colarinho não é mais uma preocupação. Depois de um tempo dormir no sofá não incomoda mais. Nem perder a hora do jantar. Depois de um tempo ela ocupa um lugar grande demais na cama, na sala de Tevê, nas gavetas do banheiro. Mas ela não está realmente ali. Você olha pra ela e só enxerga o incômodo, maior que o mundo. E, de repente, você se sente só e com uma aliança vagabunda no dedo.

Os dedos que apontaram para o oeste hoje acusam o leste de ser a ameaça. Seja o leste europeu, o leste da caledônia, o Irã, a favela. São sempre eles, sempre os de lá, os do outro lado. Os governos sabem que pra se fazerem necessários é preciso temor: "Tema o inimigo invisível, inodoro, insípido, mal amado, mal alimentado, mal vestido. Somente EU, o seu benevolente líder, posso proteger-te. Está tudo bem, podes voltar a dormir. Não há bicho papão que eu não enfrente. O teu medo do outro te farás me amar. Que língua estranha a deles, que cor estranha a deles, que deus estranho, que comida estranha. Lutamos pela tua liberdade de odiá-los. Por tua liberdade de rir da fé deles. Da tua liberdade de condenar seu cheiro e seu jeito de olhar. Lutamos pela tua liberdade de construir uma fábrica de remédios lá, mesmo sabendo que eles não sentem depressão. Lutamos pela tua liberdade de torná-los tristes e deprimidos, e leprosos, e aidéticos. Até que não precises mais temê-los. E então encontraremos outro demônio, negro e malicioso, sorrindo sorrateiro sob sua cama. Chamaremos sua saliva de veneno, faremos cordas de seus pelos e cabelos. Mas não vamos te machucar. A ideia aqui não é essa. Vamos só mostrar o que fizemos, e diremos que foi aquele demônio devorador de gado. E afagaremos tua cabeça, te apertaremos contra o peito, e diremos que está tudo bem, que não deixaremos ele te fazer mal. Que ele crave seus dentes antes em nossa carne do que na tua. Dormirás abraçado ao travesseiro e abençoando o sono recém-conciliado. Nunca descansarás de verdade, porque tua fragilidade é preciosa pra nós. E olharás através dos olhos dos satélites e ouvirás pelas fibras óticas o que queremos que vejas e o que queremos que ouças. E o medo que sentes agora te acompanhará como um perpétuo calafrio. Mas terás sempre nossos braços, pra proteger-te de conhecer o mundo. De viver. E nos amará como quem ama algo velho e sem graça mas que não pode viver sem. Como quem ama o menos pior. E assim te afastaremos sempre do mal que existe em tua liberdade, e te daremos uma linda bandeira pra que te aqueças. Precisas de nós, e te daremos a mão sempre que quiser. Os inimigos somos fortes. Mas não tenhas medo...


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O que não se diz...

- Não acho uma boa idéia me apresentar logo de cara. Ou melhor, me apresentar não, me revelar, porque você já me conhece. Tenho a impressão de que, se você souber quem sou eu, não dará muito ouvidos ao que eu disser, por mais importante que seja. No começo, logo que você nasceu, eu te acompanhava, era seu amigo, nos dávamos bem, eu me lembro. Me recordo de cada vez que eu vinha como um flash te avisar que era perigoso, que podia dar errado, que era melhor repensar. E você confiava tanto em mim, que sempre que eu vinha e dizia, você me ouvia. Virei uma doença na sua vida e a dependência se tornou cada vez mais absoluta, aquela sua mania de tentar responsabilizar alguém e sempre deixei que este alguém fosse eu. Todas as coisas substituídas por mim, e eu sei que fui ficando cada vez mais egoísta e trapaceava você. Não havia mais nada que não fizesse sem mim. Fui seu pior tormento e seu maior refúgio. Tirei seus amigos, seus amores, sua liberdade, a possibilidade de suas experiências renovadoras. Trouxe suas dores, seus desesperos, fui mais que um simples sentimento. Determinei grande parte da sua vida, e você? Você deixou. Me permitiu te roubar tudo, te deixar preso a todas as minhas amarras. Te seduzi todos os dias, e ainda sou sua droga mais auto-destrutiva. Seguro suas mãos fortes, só eu te faço companhia, perco o limite do meu controle sobre você e sou tão puro e apavorante dentro do seu pensamento. Me aprofundo nos seus sonhos, tiro todas as coisas boas, e o que era bom lá naquele início glorioso, se tornou uma impureza grosseira que te atinge descontroladamente. Mas você permite. Permite que eu seja cada vez mais atrevido e destruidor. Você sabe que pra me vencer tem que me enfrentar com sua maior coragem. Tem que me vencer e me tirar de vez da sua vida. Sabe que terá que ser forte, não me deixar te dominar a cada vez que eu tentar aparecer. Sabe que será uma luta quase invencível, uma luta desonesta, eu diria. Mas também sabe que é possível, que só depende da sua vontade, porque eu não faço nenhuma questão de continuar, pelo contrário... Nada muda pra mim a não ser o alvo, o tempo e a penalização. Não entendo muito porque você chora por todo mal que lhe causo, mas está sempre a minha disposição. Chego a duvidar da sua sinceridade em querer ser livre, porque talvez eu seja a desculpa do seu fracasso. Talvez eu seja simplesmente o seu escudo, sua auto-comiseração. Talvez eu seja a única maneira que você encontre de ter por que viver. De qualquer modo, mesmo que me expulses, sabes que não pode viver sem mim e que eu ficarei pra lembrar-lhe de algumas coisas importantes. Mas a escolha de abrir a porta, me deixar entrar, entregar-se aos meus encantos ou desencantos, é totalmente sua. E você tem escolhido me escolher. Não, isso não é bom. Não há nada que eu possa dizer que te motive, pois este não é o meu papel. Só posso te revelar que quando não mais se lembrar que eu existo ou me usar como justificativa, neste momento, eu serei saudável pra você. Meu nome? Seu medo!
- Pois é, teu tempo chegou temporariamente ao fim, até quando eu não sei...

A palavra é... medo!

Como os leitores devem saber, volta e meia nós, palpiteiros profissionais que editamos este blog, nos propomos alguns desafios. Nem sempre (eu diria "nunca", no meu caso) quem propõe o tema é o mais capacitado para escrever sobre ele. Mas sempre sai algo de qualidade, que dá gancho a boas discussões.
Desta vez, escolhemos de comum acordo escrever sobre o medo, este sentimento que paralisa, tanto fisicamente quanto mentalmente. Seremos nós três, mais um convidado. Deixo meus colegas fazerem as honras, enquanto elaboro meu texto. Boa sorte para nós.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ignoring U

O texto a seguir era pra ser um single pro Mojo (http://www.mojobooks.com.br/) de uma música da Pitty do disco "Anacrônico", maaaas eu ultrapassei os limites de caracteres permitidos para o mojo e não quero assassinar meu texto, portanto, depois de ser ignorado, aqui está ele pedindo atenção.

Enquanto eu me trocava cheia de má vontade em frente ao espelho quebrado, lembrei-me de quando começamos a nos deteriorar, e foi exatamente ali, naquele canto do quarto. - Você pretendia ouvir uma resposta dependente para a sua pergunta, e não foi a que eu te dei. Estupidamente e sem me explicar nada, atirou o porta-retrato com a única foto que tínhamos juntos no espelho. Uma rachadura lateral se fez, e lá estávamos refletidos naquela imagem, separados pela primeira vez em duas metades de um mesmo espelho que nos dividia. A partir dali nunca mais fomos nós. - Entorpecida pela recordação, me troquei com pressa. Coloquei a roupa que você menos gostava e chamei um táxi, enquanto, desajeitada, vestia um casaco. Estava ansiosa, creio. Precisava saber como me comportaria depois de tanto tempo só e em casa, precisava saber se estava preparada, precisava beber alguma coisa que me suportasse naquela noite. Escolhi o mesmo blues pub de sempre e tinha a certeza de que te encontraria. Comprei chiclete na banca de jornal, estava impaciente, andando de um lado para outro e desgastando minhas botas. Acendi um cigarro e sentei na calçada pra esperar o táxi e um pensamento intrometido me veio invadir a mente vazia. Aquele comportamento de sentar-me na calçada me mostrava que realmente, eu não era mulher para você. Nunca seria o que você gostaria que eu fosse, jamais me acostumaria. No caminho para o boteco inglês, reparava aquelas ruas molhadas, o vidro embaçado e a respiração esfumaçada das pessoas que passavam lá fora. Sabia que tudo aquilo era muito decisivo pra mim. Apesar do frio, do orvalho sobre as paredes, minhas mãos suavam quando me sentei no balcão do boteco e pedi uma bebida. Não podia beber algo tão forte, mas o conhaque precisava estar comigo pra me mostrar que tenho coragem. Confesso que tive medo de me perder na bebida, me entregar, me render ao resto de você que ainda havia dentro de mim. Eu estava me salvando, me bebendo, me esmagando a cada dose exalando meu perfume com cheiro de vermelho-sangue. Fez-se silêncio entre uma música e outra, as luzes estavam mais baixas que antes e ofereceram uma música. Sem pensar muito, me levantei descontrolada ao ouvir as primeiras notas. Me levantei unicamente com o objetivo de fugir. Fugir e chorar. Chorar em paz. E quando olhei, você estava em minha frente, com os lábios praticamente encostados nos meus e me pedindo com os olhos pra voltar pra você. Por alguns minutos que pareciam eternos, minutos em câmera lenta, nós dançamos sob uma chuva de champanhe. Era uma ilusão porque na verdade, eu estava paralisada pela surpresa e não conseguia me mexer. Desviei o olhar e ainda ao som de Eric Clapton, reparei ao meu redor com suas mãos ainda envoltas em minha cintura. Me perguntei se você estava ali me esperando fracassar e pediu aquela nossa música de propósito. Vi que as outras pessoas dançavam de verdade, e que elas surpreendentemente sorriam. Percebi que aquele momento não era só dedicado à minha vida e que, todas as pessoas viviam suas vidas exatamente como eu vivia a minha: esperando o próximo minuto. Medi a distância entre mim e o salão de jogos. As pessoas lá dentro eram fortes, queriam ganhar e eram tão individuais! Com esta cena e sentindo você cheirar meu cabelo, me soltei agressivamente do seu braço e corri para aquela sala que me fazia forte. As fraquezas ficavam do lado de fora, com você lamentando pelos erros. Muito depois, quando só restou a bola branca na mesa, eu sorri um sorriso amargo e tive a certeza de que: sozinha e naquele exato instante, eu havia conseguido. Te ignorei e me sentia docemente... livre!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Coisas que aprendi com Calvin e Haroldo...



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Karl Jaspers dizia que a pergunta filosófica, em última instância, se assemelha muito às perguntas das crianças. Por não estar ainda totalmente alocada no mundo e na linguagem a criança não perdeu sua capacidade de se maravilhar diante desse mesmo mundo, como diria Heidegger. Para ela, saber como seu desenho animado preferido é feito ou de onde veem os bebês tem o mesmo fascínio. Infelizmente, nós adultos, soterrados por nossas obrigações, contratempos, contas a pagar, preocupação com calvície e menstruações atrasadas muitas vezes perdemos essa capacidade de nos maravilhar. E até a condenamos nas pessoas adultas que por alguma sorte a mantém. Nas sociedades industriais contemporâneas, essencialmente voltadas ao tecnicismo, à aplicabilidade e à eficiência, "perder tempo" se questionando e se maravilhando não é uma boa. O que importa são os formulários preenchidos, os parafusos apertados, as Tvs vendidas e os cafezinhos estrategicamente identificados como descanso. Aos sonhadores que ainda vivem seu exercício de auto reflexão, a zombaria e o desrespeito. Um dos meus sonhadores favoritos se chama Bill Watterson. Em 1985 Watterson criou uma tira de quadrinhos em que contava histórias sobre um garotinho e seu tigre de pelúcia. Os leitores que esperavam historinhas bobas sob peripércias infantis encontraram argutos questionamentos existenciais e morais concretizados na capacidade dos dois personagens de ficarem perplexos com o mundo ao redor. Os próprios nomes dos personagens são referências filosóficas. Calvin teve seu nome retirado do teólogo francês Jean Calvin e Haroldo (Hobbes no original) do filósofo inglês Thomas Hobbes, duas leituras constantes e apaixonadas de Watterson. Durante os anos em que a tira foi publicada diariamente, Calvin e Haroldo se depararam com inúmeras situações, que iam desde se relacionar com a alteridade, com a autoridade e com a morte. Mas se engana quem pensa que vai encontrar um tratado sistemático sobre a ontologia (aff) apátrida do homem contemporâneo nas histórias de Calvin. Watterson foi tão genial que trouxe a filosofia para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído: para a vida. Não é filosofia ou pensamento acadêmico, não é decoreba de nomes ou sistemas, é o pensar sobre si mesmo. Esse autodiálogo, essa reflexão constante sobre o que se acredita, o que se vive e o que se é, é que é filosofia. Quando Marx dizia que os filósofos já haviam pensado demasiado sobre o mundo e que era chegado o momento de mudá-lo, era também sobre essa atrofia a que o pensar filosófico se condenou quando se tornou de forma indevida em um consolo acadêmico. Então temos a figura do imponente filósofo de escola, que lê e discute Hegel em alemão, mas que é incapaz de se questionar sobre as coisas mais ordinárias de sua própria vida. Parecem aqueles guitarristas de bandas de metal melódico, que tocam noventa mil notas por minuto, mas que são totalmente incapazes de se colocar num canção, ainda que singela, de forma que a gente ouça a música e sinta o que o cara sentiu no momento em que a compôs. Os questionamentos do pequeno Calvin são de outro nível. Ao mesmo tempo que sua hiperatividade o leva a criar o Calvinbol, um jogo em que as regras são mudadas a todo instante (o que nos faz pensar sobre a importância das convenções), Calvin se utiliza de pesquisas de popularidade para conseguir algo de seus pais, mostrando a importância de ganhar um brinquedo para o aquecimento da economia, mas, mais do que isso, mostrando o quão circustancial e vazio é o discurso contemporâneo sobre a política e a economia, baseado simplesmente em dados em uma tabela. Numa outra tira Calvin se desespera por notar um livro da biblioteca com a devolução atrasada dois dias, pergunta a que tipo de torturas será submetido pelos bibliotecários, sua mãe responde que terá que pagar uma multa de dez centavos por dia de atraso, ao que ele retruca que pelo jeito que os bibliotecários olham pra gente as consequências parecem muito piores, o que é um excelente questionamento sobre o exercício de nossos papéis sociais. Em 1995, dez anos após criar a tira de quadrinhos mais bem sucedida da história (publicada em mais de 2.400 jornais, diariamente, ao redor do mundo), Watterson resolve aposentar seus pequenos filósofos. Primeiro porque o medo de se tornar repetitivo o atormentava. A ideia de que seus personagens pudessem caminhar para o mesmo destino dos Simpsons ou da série Dilbert, que reprocessam as mesmas histórias e piadas a cada temporada, o deixava realmente inquieto. Mas o ponto decisivo para que Watterson encerrasse sua carreira foi a pressão que constantemente sofreu para transformar sua criação nos mais diversos produtos. Na era das memorabilias e bugigangas diversas, não se encontram produtos oficiais de Calvin e Haroldo, porque Watterson resistiu às tentações dos que prometiam dinheiro fácil em troca do uso leviano de seus personagens. Lancheiras, canecas, bonecos, travesseiros, estampas de papel higiênico. Calvin e Haroldo deixariam de ser arte (Watterson sempre ressaltou que seu trabalho era um trabalho artístico) pra se tornarem meras estampas e produtos. Numa realidade como a nossa falar de integridade artística parece extremamente anacrônico. Provavelmente também pareceu aos donos de jornais que queriam comercializar Calvin e Haroldo. Mas esse anacronismo, somado ao amor que Watterson sempre nutriu pelo que criou é que tornam Calvin e seu companheiro de pelúcia tão importantes. No meio tempo entre o fim da tira e esse texto eu ganhei uma sobrinha, minha pequena "Calvin" particular. Quando quero muito entender algo converso com ela. Quando ela tinha uns três anos ela adorava ver a lua, adorava mesmo. Numa noite de muita chuva ela virou pra mim e pediu: tiomon, me leva pra ver a lua. Ao que eu respondi: mas Duda, tá chovendo, não tem lua hoje. Ela parou por um instante, refletiu e retrucou: a lua não gosta de chuva não, tiomon? Foi uma pergunta tão bonita, uma conclusão tão interessante, que eu me reservei a sorrir e comentar: é Duda, acho que não. O mundo é mágico pra quem sabe fazer a pergunta certa...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Camisa de força da arte


para el escama, que me inspirou com um dos seus famosos bordões...

Dias atrás, Regis Tadeu fez uma publicação na qual detonava os fãs, colocando-os como verdadeiros vilões aniquiladores da arte. Em partes, ele tem razão. Tirando a arrogância e a maneira como generaliza as pessoas. Mas uma grande parcela dos fãs se envolvem tanto com o artista, que se sentem meio donos, a ponto de acreditarem cegamente que suas opiniões são realmente coerentes. O fato é que criar é um trabalho subjetivo, que compete apenas ao autor da obra. É uma atividade individual voltada para um coletivo. Há artistas com objetivos e finalidades diferentes, e não é esta a questão. Comercial ou não, é arte. E o que inspira a criar são as verdades de cada artista, e neste caso, o termo "verdade" não pode ser interpretado como arrogante, porque se refere a verdade subjetiva, a motivação interior que o dono da obra manifesta para o exterior em forma de arte. É uma obra a ser contemplada por quem se identifica com tais propósitos ou não. Por trás de cada criação existe um ser humano. Um livro, uma música ou um filme não nascem a partir do momento que você o lê ou ouve. Existe um homem que durante muito tempo imaginou aquilo, se isolou, produziu, transformou suas inspirações em técnicas pra se tornarem reais. Os fãs são só receptores e têm todo direito de não gostar, mas não o direito de sentirem-se donos do ídolo a ponto de tornar a paixão tão irracional que chega a ser obscena. Como diz um amigo meu, o cara mais entendido de música que conheço, "fã é a camisa de força da arte". Mas, como a arte é feita para um coletivo, este coletivo influencia um outro coletivo dentro dele próprio. Ou seja, um pequeno grupo de fãs determina algo e outra legião deles segue como mandamento. E aí chegamos no ponto muito bem observado pelo Claudinei de que toda grande banda tem algum disco maldito. E disco maldito é aquele que os fãs elegem como o disco que envergonha a classe, o que trai o movimento, entendem? Não sei se é tão genérico assim, mas depois que li a sugestão do Claudinei, fiquei pensando em muitas bandas e realmente, sempre tem uma injustiça criada e alimentada... por quem, mesmo? Ah, tinha que ser os fãs! No Pink Floyd, banda progressiva muito famosa nascida nos tempos da psicodelia, renegam o The Final Cut. Alguns porque Roger Waters se tornou uma espécie de ditador, usando a marca Pink Floyd para criação solo, deixando o conceito de banda a desejar e obscurecendo o brilhantismo de David Gilmour. Outros pelo ressentimento que cultivaram pela polêmica desta época e das discussões que implicaram na saída de Roger. O disco em que, descaradamente, os outros integrantes da banda foram creditados como meros músicos de apoio. Talvez o resumo seria este: Roger Waters fez o disco de seus sonhos com a banda de apoio dos seus sonhos: Pink Floyd. Pior que ele, só os músicos brilhantes, porém submissos, que aceitaram isso.Tirando as maneiras nada convencionais e não muito honestas com que as coisas foram feitas, The Final Cut é um lindo disco, que perde um pouco o brilhantismo, porque os seguintes discos do Roger são "iguais" a ele. Pegando carona no megalomaníaco Roger - e eu não uso estas palavras pejorativamente, porque o cara é isso, mesmo - o Gessinger que sempre se declarou fã do Waters, e diga-se de passagem se influenciou muito, até mesmo nas questões burocráticas de banda e os mesmos defeitos relativos ao "egoísmo" na produção de sua obra. Como Engenheiros do Hawaii é uma banda com vários discos produzidos, não poderia ser diferente, o Minuano é o disco injustiçado. Talvez trauma na época de lançamento, em que nenhum fã que se prezasse ouviu o disco sem desconfiança, após incluírem o HG3 na discografia da banda; foi pré-requisito incontestável para a não-aceitação primária do disco. Pessoalmente, costumo dizer que é um disco que envelheceu bem, porque hoje gosto bastante - com exceção de "9051", que eu engoli sem mastigar. Mas acho que talvez tenha sido eu que amadureci, ou as produções posteriores da banda tenham me feito entender as coisas de uma outra forma.
Só que a maioria esmagadora, a voz fanática que ecoa pelo mundo tortuoso dos que admiram as bandas citadas, não aceita os discos em questão e sempre dirá que são ruins. Aliás, depois de certo tempo isso vira uma questão de honra: todo grande fã deve seguir alguns mandamentos, e entre eles está amaldiçoar o disco escolhido pela grande classe. Pois é, o fã é a camisa de força da arte...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Ridi, Pagliaccio!



Pra Mah e pra quem ainda pinta palhaços....


Quando criança eu tinha uma dificuldade enorme em pintar palhaços. Não sei explicar bem o porquê. Acho que eu gostava de tudo muito simétrico e ordenado e palhaços pareciam um pouco confusos pra mim. Muitas cores misturadas, muita coisa brilhando, enfim...Num dos momentos mais surreais da minha vida peguei carona com uma Van de palhaços. Calma, não era um desses carros de circo onde saem mil palhaços de uma vez. Era uma Van que iria levar uma trupe de palhaços pra se apresentar numa escola de Ouro Preto. Quando entrei alguns deles estavam se maquiando, um reclamva com o amigo que tinha pego frieiras nos pés, outro, já maquiado, fumava um cigarro barato, soltando baforadas pela fresta de uma janela quase aberta. A cena era meio bizonha, meio bizarra. Sei que viajei quarenta e cinco minutos em completo silêncio, vendo como era um palhaço sem maquiagem. O bom palhaço é aquele que nos faz acreditar que nunca limpará o rosto, que o sorriso apatetado e o nariz falso são dele mesmo. As cambalhotas, piruetas e macacadas são o que menos importa em um palhaço talentoso. Um bom palhaço traz em si uma alegria quase transcendental. Uma alegria da qual ele é mero objeto. Se você consegue imaginar que aquele cara de sapatos enormes e suspensórios de bolinhas também chora ele é um péssimo palhaço. Muitos dos enfeites e trajes dos palhaços vem das formas de se ridicularizar os loucos na Renascença. Até a loucura se tornar uma doença, os loucos conviviam diarimente com os "sãos". A partir do momento em que é considerada uma patologia, com o fortalecimento das idéias modernas sobre a razão, a loucura e o louco começam a ser um problema. Descartes estabelece o Penso, logo existo, como máxima universal. Acreditava-se que o louco não pensava, portanto era importante encontrar um meio para que o mesmo não existisse. A primeira forma foi a Nave dos Loucos. Navios de piratas ou comerciantes que recebiam um certo valor para retirar os loucos de uma determinada cidade. Não demorou muito pra que a atividade se especializasse, obrigando cidades a proibir a entrada de pessoas que não fossem devidamente interrogadas antes, para evitar o ingresso de loucos. Muitas vezes para distinguir, outras para ridicularizar os loucos eram vestidos com andrajos espalhafatosos e ridículos, algumas vezes maquiados. No festival dos tolos, na França, algum louco célebre da cidade era tratado como rei por um dia, e vestido com roupas escandalosas, muito parecidas com de palhaços. Ao final do dia o "rei" era destronado e ridicularizado. O rei mômo do carnaval vem dessa tradição, do ridículo sendo coroado. O palhaço se tornou uma forma engraçada e doméstica do louco. Acabou virando profissão. Chegou ao Brasil há uns duzentos anos, trazida por ciganos e ganhou uma identidade própria aqui. Os palhaços brasileiros falam mais do que outros palhaços, que concentram a maior parte do espetáculo no gestual. Mas o que mais me impressiona no palhaço é que nele a alegria anda sempre perto de uma aura melancólica, como se ao final da apresentação o palhaço fosse retirar a cor do rosto e com ela toda alegria que ele representa fosse embora também. Por isso a presença constante do palhaço triste no nosso imaginário. De um Chaplin, de um Canio, de um Carequinha. Por isso é importante que o palhaço não cubra os olhos, ainda que os orne com pinturas em seu entorno. Pra que possamos ver essa melancolia através do brilho do olho quase lacrimoso. Ele é um funcionário, um objeto da alegria alheia e não importa o que aconteça, o show deve continuar, como diria Canio, ou melhor Pagliaccio. A ópera de Ruggiero Leoncavallo mostra quando Canio descobre a infidelidade de sua esposa, mas continua se maquiar para sua apresentação como Pagliaccio, porque o show deve continuar, ainda que seja preciso transformar soluços e lágrimas em sorriso e dor em uma cara engraçada. O Tetro Mágico traz essa aura também, de uma melancolia quase mística, quase espiritualizada que todo palhaço carrega. E ainda que as pinturas sejam um aspecto cênico o que importa não é o branco e o vermelho do rosto, mas essa alegria melancólica que ele sempre traz. Porque o show tem que continuar, ainda que o palhaço tenha frieiras. http://www.youtube.com/watch?v=Ky271W94VHA

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

é nóis na fita...

Meus queridos companheiros Márcio e Maísa estrearam na Mojo Books com um pequeno texto baseado na canção No Surprises do Radiohead. Segue o link:
http://mojobooks.virgula.com.br/mojo_tx.php?idm=238
ficou ótimo, nunca mais ouvirei essa canção da mesma forma.

Parabéns amigos.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Tatuagem

Diálogo flagrado em uma rua de São Paulo, de um jovem falando ao celular:
- (...) Pois é, vai ser uma homenagem, não porque é minha namorada, mas sim porque é mãe da minha filha!
- (...)
- Ah, se eu me arrepender, eu faço um desenho por cima e tá tudo certo!
E quanto às tatuagens da alma? Dá pra cobrir com um desenho também?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Você não se move, você não faz barulho...

Madrugada adentro, o dia amanheceu e eu ainda aqui, pensando friamente com toda morbidez que um sentimento merece ser pensado. Ah, a amizade... esta forma de amor incondicional mais profunda e bela que existe. Faço altas perguntas sobre o que deve se sobrepor a amizade. Mau caratismo? "Vou te enganar, mas te amo, tá?" "Espero que entenda se eu te abandonar..." O poder, o dinheiro, o ego. Qualquer coisa assim se justifica pra congelar uma amizade? Meu maior medo é me dar conta de que, ao final de tudo, a amizade era o que menos importava. É, aquela cumplicidade de duas pessoas que se identificam e se gostam e se respeitam acima de tudo, também foi banalizada. Não é mais acima de tudo. Mas isso não é descrença, eu juro! No fundo, sabemos exatamente quem vai ficar pra sempre. E aqueles que iam ficar no meio do caminho, já s entíamos que os valores destes não eram tão "banais" quanto os nossos. Sim, porque se importar é quase que um constrangimento, hoje em dia. E vocês estão pensando: o que esta louca tá fazendo aqui falando tudo isso sobre algo tão subjetivo e tão pessoal pra ela? Pois é, eu não sei. Mas será que é tão pessoal assim? Não querendo ter a pretensão de ser dona da verdade, mas tenho encontrado pessoas que dá vontade de parar e dizer: -Por favor, não faça isso. Não estrague mais o mundo com suas indolências. Por que a gente tem que fingir ser melhor amigo do colega de trabalho? E por que quando somos promovidos usando uma idéia dele, dá-se um tapinha nas costas e diz: "vamos separar as coisas, somos amigos"? Por que esta falsa idéia de humanidade? Desculpem-me os questionamentos frívolos, mas a maior certeza é aquela que permanece intacta: continue não se contaminando com as doenças do mundo; mas faça uma escolha, tome um caminho, não fique parado, se mova, faça barulho! Certa vez, em um momento de sinceridade alcoólica e espontânea, disse em presença de vários amigos: "eu amo quase todos vocês!" Pausa dramática, e tudo continuou como era. Eu preferia que as coisas fossem assim. Sem hipocrisia, sem fingimento. Sonho com um mundo em que a sinceridade seja um suprimento e objetivo a ser alcançado. Um mundo em que "não te amo mais", apesar de doer, seja admirado pelo teor de verdade. Sonho com um mundo de pessoas que não gostem de ser enganadas. Sim, porque quem engana, não engana sozinho. Na verdade, trocam traições. E não vou desprezar esta noite mal dormida pensando neste todo, pois dessa aprendi que sentimentos não podem mesmo ser prometidos; porque não dependem da nossa vontade. Não diga que ama alguém quando não está disposto a estar junto. Afinal, em breve perguntaremos: o que deve se sobrepor a nossa palavra?

"No final nós deixaremos tudo isso para trás
porque a vida que eu acho que estou tentando encontrar
Está, provavelmente, toda no meu pensamento"