quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Jabuticabas, medos e meninos.

Sua meia-idade, já com vistas turvas já não reconhecidas mais se pela falta de visão real ou os óculos empoeirados, encarou pela primeira vez em longos trinta anos de espera, o pé de jabuticaba. Mais precisamente na casa de campo onde hoje habitava seu filho e família. Lembranças que sempre estiveram ali, mas por algum motivo ele não quis mexer. Não foi necessário, até então, cutucar nos tesourinhos do passado - hábito inconveniente pra desmerecer toda a beleza sombria que sua nova condição aclamava.

Na verdade, nunca desejou aquele saudosismo que sentia ao estar diante deste fato. Nunca houve algum momento em que precisasse lamentar sua vida e refugiar-se no passado para suportar o presente e as possibilidades do que esperar do futuro. O instante era tão oco e silencioso, tão sublime... Avistava o topo da árvore insana como se voltasse aos oito anos e todas as suas traquinagens borbulhavam em seu sangue novamente.

Se tivesse o mínimo de coragem - ou falta de senso de responsabilidade, diriam os mais conservadores - subiria ao menos nos galhos mais fáceis. Tão tranquilizante como apaziguador era relembrar de sua coragem, do quanto já foi mestre em alcançar galhos perigosos e apanhar as frutas mais doces em dias de verão. Matar a sede com saliva doce de jabuticaba era, entre outras coisas, seu passatempo favorito. Sentia o cheiro de bolo de fubá que sua mãe preparava em todas as tardes de sábado. Inquietava-se ao recordar sua mãe, a mais eterna deusa de sua vida, porém, estar de frente à árvore, sua companheira fiel dos tempos de risos, trazia também o gosto amargo da crueldade que sua mãezinha, tão protetora, o aplicou para seu próprio "bem". Que culpa ela tinha, pobre mulher? Houve um tempo desconfortável que sua educadora-mór o castigou da maneira amena com que toda mãe zelosa o faz, convencendo-o de que aqueles malabarismos eram fatais para sua vida. Que se caísse dali poderia morrer, ficar paraplégico, ser tirado de seu lar para morar com desconhecidos maldosos, receber um castigo dos céus com duzentos anos de azar, ou qualquer tragédia maior que sua mãe se lembrasse no momento do discurso. Não se convenceu fácil, não se conformava com os empecilhos que sua vida tão infantil já trazia. Queria que tudo fosse diferente, mas, pra não magoar sua tão amada mãe, desistiu da árvore.

Ah, se soubesse o que isso o causaria hoje! Depois de desistir do seu primeiro grande feito, qualquer adversidade que a vida o impusera, pensava nas recomendações da mãe. O medo passou a fazer parte da sua vida de tal forma que não existira até ali. Se contorceu durante muito tempo para abafar gritos que poderiam prejudicá-lo. Tornou-se um homem bom, porém passivo, porque temia a cada árvore como se a morte não fosse mais a pior das consequências. Embora pensasse nisso agora, reconhecia sua vida estável, suas boas escolhas, seus bons feitos e orgulhava-se de quase tudo. Menos dos riscos que deixou de correr, da falta de humanidade que infiltrou-se em sua lógica. Diante de todas estas lembranças esquisitas e que julgava imbecis, avistou o netinho sentado, brincando de bolinha de gude. Sorriu com o canto da boca, cheio de esperança e uma espécie de redenção saía do ar que respirava; sentia alívio sem saber. Rendeu-se a ingenuidade de sua velhice transformando-se em menino. Segurou a mão do neto com a força que jamais imaginou que ousaria de tanto sentimentalismo; engoliu seco uma porção de lágrimas que não entendia de onde vinham e com o vento batendo em sua face e refrescando seu momento de transformação, ensinou pacientemente o neto a subir na árvore e encorajou a alcançar a mais alta fruta. Quando a criança no alto da árvore segurou a maior jabuticaba e levou aos lábios, uma lágrima caiu de seu rosto e então se perdoou...

Um comentário:

  1. existem coisas suas que eu 'odeio' ler; mas que me fazer viver em diversos prismas.

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