segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Memórias de um leitor analfabeto, ou como desaprender de tanto saber

Nada provoca tanta devoção e ao mesmo tempo tanto tédio quanto um monte de livros. Todo cara metido a intelectual e mesmo os intelectuais de verdade são consumistas enrustidos. Podem não comprar sapatos, enfeites automotivos, pornografia barata, mas gastam seus poucos tostões em livros e mais livros. Existe uma indulgência que envolve o consumo bibliófilo, muito parecido com a imunidade tributária incidente sobre os insumos na produção de livros, revistas e periódicos (sim, sou advogado e devido a isso, chato pra caralho). Gastar dinheiro com livros não é tão pecaminoso quanto gastar jogando sinuca ou comprando um tênis com molas laranjas à mostra (ainda escreverei um texto sobre a decadência sensível na percepção estética dos designers de calçados...melhor, não escreverei não). De qualquer forma, parênteses de lado, temos para nós que a compra de um livro é algo inocente e mesmo edificador. O fetiche do "livrista", com sua biblioteca abarrotada. A questão aqui é que a devoção anda de mãos dadas com a frustração e o tédio, e mesmo com o pedantismo intelectual. Construímos uma realidade em que ler é uma habilidade de cada vez um número menor de pessoas. Falo de ler e entender o que se lê. De se entender e se viver o que se lê. Estamos cercados de analfabetos funcionais e pessoas incapazes de compreender dois parágrafos escritos sobre o mais estúpido dos assuntos. Se Nietzsche estava certo e hoje o Espírito se tornou populaça, é esse espírito que nos faz identificar tudo que é inteligente como chato e buscar no superficial a qualidade anestesiante que nos faz sobreviver ao cotidiano insuportável que criamos.
Da leitura fetichizada do intelectual acadêmico, que lê Levinas em três línguas antes de encher a esposa de porrada, à leitura atropelada do jornaleco de 25 centavos no trânsito ou na fila do banco, passando pela corrida de olho caduca nos contratos de adesão e manuais de instrução, lemos coisas que não viveremos e que têm sua importância cada vez mais reduzida perto de nossa indiferença diante do que ler significa. Sobretudo diante da distância que colocamos entre aprender e viver algo, da separação falaciosa entre teoria e prática, do saber e do viver. Da busca medíocre por um produto a cada esforço, ainda que seja o de ler um livro. Vivemos uma realidade que não quer pensar a si mesma e por isso uma realidade que despreza a leitura. Não é preciso mais queimar livros, afinal eles não fazem mais nenhuma diferença.
Não há mais o risco de alguém amolecer as ideias lendo romances de cavalaria ou sonhar em "mineirês" ao ler Guimarães Rosa. Não se corre mais o risco de alguém achar que pode mudar o mundo porque leu Marx ou jogar o jogo do contente porque leu Poliana ou o Pequeno Príncipe. Já não temos mais olhos de leitores. Talvez de leitores de códigos de barra. Olhos decodificadores, que enxergam o livro como mais uma barra num mundo que aprendemos a simbolizar como um grande supermercado, um templo de consumo irracional e iluminado por luzez fluorescentes e com cinzeiros nas saídas.
O livro e o tênis, Mike Tyson e Albert Camus, Mark Twain e barquinhos de papel-jornal, tudo processado por nossos olhos e sentidos de moedores de carne, transformados na mesma massa amorfa e de cheiro forte que chamamos de vida. Não fazemos mais jus aos livros que temos, não temos mais a nobreza do ruminante, do homem-touro que digere tudo duas, três vezes, e transforma o que digeriu em sangue. Não temos a nobreza de um dos minotauros de Borges. Não merecemos os livros que temos, eles estão melhores quando fechados ou abandonados às traças silenciosas que lhe dão o devido valor, vivendo das suas páginas inutilmente sábias.
Feche o livro, meu filho, e vá ver TV!!!!!!

4 comentários:

  1. Feijoadas diets, cafés descafeinados, sexo sem contato, literatura e arte sem transformação, relacionamentos leves, paixões flúidas, esportes radicais cem por cento seguros, religiões tolerantes... Não seria diferente com esses cadernos de papel impresso que tenho desordenados em uma estante.
    Porra, Ramon, nesse você se superou.
    Fernando Schettini

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  2. Sociedade do consumo desenfreado... consumimos em demasia para suprir nossas carências e acalentar nossas frustrações. Pena que nem a leitura escape ao processo da ingestão sem simbologia. Até os livros viraram sinônimo de status, ítens de consumo de luxo para pessoas solitárias, carentes e portadoras da síndrome de astronauta. Ou seria da síndrome do pedantismo intelectual?

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  3. Não consumi (se é que um dia o farei) livros e significados suficientes para fazer comentários ou discursos de arrancar aplausos do mais surdo dos alienados, mas (perdoem sempre minhas hipocrisias, jamais saberei viver sem elas. Elas se tornaram minhas grandes experiências, e são vidas que outros viveram dentro da vida de livros... ou filmes), mesmo que muitos não gostemos de contas e matemática, estamos (espero que um dia eu possa viver minha experiência) vivendo uma época de leitura-resultado. Sim, como uma conta: lê-se para obter um fim econômico, com certeza. Outros tantos leem outros tantos, pois é preciso manter o nerd atrás dos óculos. Afinal, para alguns, não há inteligência fora de um nerd-clichê.

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  4. É Ramon, neste texto eu senti um rancor. Longe de ser um dos melhores textos de sua autoria, no entanto, um dos que não têm nenhuma referência bibliográfica gigantesca. Ou tem?

    Além dos livros, jornais, jornalecos, podemos inserir nesta lista de leituras imediatistas e de "código de barras" os blogs! Ora, há algo mais imediatista do que esta ferrametna que qualquer nerd, intelectual pedante ou retardado possa ter? Hoje a leitura tá aí, pra qualquer um degustá-la, de que forma lhe convier... Eu ainda choro com os livros, ainda os compro... Ainda os deixo largados pelas estantes da casa...

    Este texto me remeteu ao livro 'A casa de papel', em que o personagem mais procurado fora perseguido por aqueles que dedicou uma vida inteira: os livros. Angustiante... MEDA

    Tem ainda Bartleby, o Escrivão. Mas, uhn..., "preferia não comentá-lo", se é que me entende...

    Bom, seguindo Carlos Maria Dominguez, como "toda" mulher, gostaria de morrer atropelada lendo um livro de de poemas de Emily Dickinson (boas lembranças)... Desculpe o pedantismo..

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