quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Basilisco e Aristóteles: forma e conteúdo?


Rezam os bestiários que o Basilisco nasceria de um ovo posto por um galo e chocado por um sapo, ou rã (não me lembro bem a natureza do batráquio) e teria o poder de transformar em pedra todos que olhassem pra ele diretamente. Bom, apesar de algumas diferentes versões sobre o assunto, todas apresentam o bichinho com formas (por isso ele se encaixa no nosso tema) um tanto quanto interessantes. Dizem uns que ele seria uma serpente gigantesca com escamas de fogo e olhos amarelos, outros que ele teria cabeça de cobra, corpo de galo, asas de dragão, cauda de cobra (a cobra não seria inteiramente uma cauda?) e pés de galo (amedontrador, não acham?) A única constante na maioria das versões é que o Basilisco possuiria uma crista no formato de coroa. Daí o seu nome. Basilisco significa ‘Reizinho”. Mas o que mais me impressiona não são as formas um tanto quanto rocambulescas da criaturinha. Mas o fato dele ser uma das mais figuras mais constantes nos bestiários medievais, com descrições extremamente minuciosas, apesar da falta de lógica de sua história. Ora, se o bicho transforma em pedra aquele que o vê, como pode existir uma descrição física do mesmo? Quem o viu para fazer tal coisa teria se tornado pedra, não? Não tem lógica nenhuma. Alguém mais crente poderia argumentar que, segundo a história, o reflexo do Basilisco num espelho ou no metal polido não produziriam o górgone efeito petrificador. Mas como eu sou chato eu lembraria que na Idade Média a metalurgia, que havia se desenvolvido bastante com os romanos, tinha praticamente se perdido e que por questões econômicas e políticas poucas pessoas podiam ter espelhos, armas ou outros objetos de metal polido. Enfim, para decepção geral o Basilisco não existe. Mas temos um bichinho tão estranho quanto. O ornitorrinco é um mamífero que põe ovos, tem bico, pelos, membranas entre os dedos das patas, hábitos anfíbios. Em termos de forma ele também não se deu muito bem não. Mas a forma é uma questão filosófica muito antiga. Aristóteles desenvolveu o assunto profundamente. Para ele na ausência de movimento temos a matéria e a forma. A forma é a realização da essência de algo. A identificação de matéria e forma em Aristóteles é bem diferente da nossa. Pra ele a forma cama vem da própria essência da cama, ou seja, de ser um objeto sobre o qual dormimos, pouco importa, se, acidentalmente, essa cama seja de madeira ou metal. Se dermos uma nova forma à substância que compõe a cama essa (a cama) então deixa de existir, mas sua substância resiste sob outra forma. Toda matéria, segundo Aristóteles, caminha para o desenvolvimento de uma forma, podendo passar por diversas delas. Por exemplo, o teclado onde eu estou digitando isso e o monitor onde você está lendo já tiveram outras formas. Nesse exato momento estou digitando isso sobre as costas de um dinossauro, que morreu, se transformou em combustível, que virou plástico, que teve umas letrinhas impressas e veio parar aqui em casa. A forma dinossauro mudou, mas a substância que a compunha ainda persiste, pressionada pelos meus dedos. Pode parecer uma coisa boba mas quando me dei conta disso (obrigado Prof. Galuppo), nunca mais olhei pra uma caneta do mesmo jeito. Isso ao que chamamos forma seria o acidente, que não altera a essência das coisas. A palavra monstro, do grego teras, classificava justamente aquilo que não estava de acordo com uma forma, como no caso do Basilisco. Não é de se espantar que os recém nascidos com defeitos físicos fossem sacrificados, eles não poderiam atingir a forma que se espera de um homem. Cheguei ao ponto que eu queria. Eu acho. Quero falar de monstruosidades, de formas obscenas, de coisas tão irracionais quanto o Basilisco mas tão reais quanto o ornitorrinco. O mundo de hoje é o mundo do desenvolvimento irracional das formas. Da obscenidade constante. O obsceno é aquilo que ultrapassa seu espaço, os limites de sua cena. O obeso é obsceno porque ele é mais gordo que o gordo. Assim como a pornografia, mais sexo do que o próprio sexo. As formas que se extrapolam ao ponto de se tornarem disformes, teratológicas, monstruosas. Na nossa atual ciência, que Pierre Legendre chamou muito educadamente de ciência de açougueiros, o que importa é a forma, dissecar e classificar os pedaços. O amor e todos os sentimentos são reduzidos à ação de genes, hormônios e enzimas. Qualquer explicação que ultrapasse o biologismo e a ação das partes é considerada romântica e atrasada. Antes a imago dei, hoje um monte de células. Paralelo a isso cresce a burocratização e especialização do mundo. Não é a toa que a história das ciências biológicas sempre andou de par a par com a história das instituições. Assim como na biologia, com seus genes e células isolados, com se genoma mapeado, somos socialmente celulares, seres individuais, separados. Assim como na biologia, em que a guerra de todos contra todos, na seleção darwinista do mais apto é a tese mais aceita, nosso individualismo e egoísmo, nosso embate contra todos também é aceito como normal e necessário. Sempre a repetição obscena e fatal das formas. Como no câncer: a menor forma se multiplicando ferozmente até devorar o todo. A parte que se sobrepõe. As imagens de TV que mostram tudo ao mesmo tempo, num espetáculo em si mesmo também teratológico, nos embota de tal forma que os problemas da novela acabam se tornando mais importantes que os problemas da economia ou do conflito em Israel. Outra obscenidade: onde há informação demais não há informação nenhuma. Como nos canais de propaganda: nada a se dizer vinte e quatro horas por dia. Nesse jogo do contente, o outro não importa. Eu quero que sua alteridade não seja nada mais que uma projeção do que eu quero, que ele adote as formas que importam pra mim. Que conteúdo? Quero que seja bonito, que se vista bem, que fale direito, que estude numa boa faculdade, que tenha um carrão, que fale javanês e dance forró. Não quero o outro. Quero aquilo que eu gosto corporificado, formalizado, oficializado e carimbado. Falando em carimbo nossa fé nas formas é tão estúpida que ainda dependemos de cartórios, de cinco vias, de formulários, de autenticações e firmas reconhecidas. Como se um contrato formalmente reconhecido que retira centenas de pessoas de suas casas fosse melhor que um contrato de grilagem que faz o mesmo. Somos a representação formal dos perfeitos idiotas, com carimbo, firma reconhecida e tudo o que é de direito. Talvez por isso o Basilisco não nos meta medo como fazia com os medievais, porque o mundo que criamos é infinitamente mais monstruoso que ele. Falando sobre formas, fica a pergunta do chapeleiro maluco à Alice: qual a semelhança entre uma escrivaninha e um corvo?

23 comentários:

  1. Primeiramente tenho que dizer que, por incrivel que pareça, existe sim a diferença da calda da cobra para o resto de seu corpo. =P

    'Segundamente' vamos citar, que nos dias atuais, Basilisco's são encontrados frequentementes em todas as casas da nossa tão amada pátria progenitora. Não importa a casa, sempre são formadas imagens horripilantes do desconhecido, seja ele o vizinho, o catador de material reciclado ou o companheiro de residencia e o conteúdo é cada vez mais esquecido...

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