quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Rhodes



Na escola me ensinaram que as pedras crescem para dentro. Que seu tamanho exterior é sempre o mesmo, mas a medida que envelhecem ficam mais duras, densas. Vi num museu de mineralogia uma espécie de quartzo ainda em formação. Era uma pedra mole. Quando era sacudida ela se movimentava como borracha, flexível. Mas se apertada era dura. Aquela pedra ainda iria "crescer" para dentro, se tornar mais densa. Com o passar dos anos meu conhecimento sobre geologia não aumentou muito. Talvez seja equiparado ao meu conhecimento sobre aviões, enguias, culinária mongol ou taxidermia. Talvez por isso não sei falar sobre pedras e não farei isso aqui. Falarei de coisas que crescem para dentro, como anões da caledônia, histórias mal escritas, uma ilusão do Escher. Falarei daquele dia na faculdade, ocupado com os assuntos sem sentido da política estudantil, de uma chapa de centro acadêmico, de uma reunião confusa e agitada. De quando, em meio a ombros, cadeiras, costas e queixos eu a vi. Ela parecia acreditar naquilo ali e assim eu quis parecer também. Cerrei os olhos em direção ao orador do momento que tecia um rol de problemas do curso. Mal sabíamos ele e eu que não há solução para um curso de direito. Tudo que se faz é em vão. Como colocar uma coleira bonita num cachorro morto e esperar que ele ande por isso. Estava decidido, eu seria o presidente da chapa responsável por colocar a coleira no cachorro morto. Ela seria a tesoureira. Fomos finalmente apresentados. Apertei sua mão, solene e envergonhado, e só percebi que ela avançava para beijar meu rosto quando já tinha me posicionado fora de seu alcance, vendo o pequeno carinho morrer no ar, como uma pétala de dente de leão que perdemos de vista sob o sol forte. Não conversei mais com ela durante o restante da reunião. Mas saímos juntos da sala e juntos fomos embora. Foi ótimo. Cheguei em casa com uma felicidade ofensiva nos lábios. Dessas que te deixam com medo de parar de pensar em seu objeto, com medo que ele se esvaia. Esperei meus amigos de república chegarem e contei tudo a eles de uma forma inconvenientemente sincera, retribuída com as costumeiras gozações de aprovação. Durante a campanha da chapa nos encontramos muitas vezes, e em poucos dias nos tornamos amigos. Bons amigos. Toda essa história de que homens e mulheres não podem ser amigos é uma tremenda furada. Por que não? Por que podemos acabar gostando da pessoa mais do que como amigo? Ela deixaria de ser amigo então? Isso a rebaixaria, a promoveria? Éramos amigos e eu queria pouco mais da vida do que aquilo. Houve um congresso, um EMED senão me engano, que não pude ir. Grana curta, estudante pobre e fudido. Ela foi. Voltou contando como tinha sido legal e tudo, nenhum detalhe. Não esperava detalhes. Sei que o tempo em que ela passou fora me almadiçoou com uma urgência de tê-la, de cheirá-la, abraçá-la. Me fez olhar para o abismo. Eu olhei, olhei e caí. Disse tudo o que eu sentia, como se faz num livro vitoriano ou numa novela ruim. Era como se, naquele momento Isaac tivesse se deitado na pedra do sacrifício mesmo com Abraão livre da obrigação. Ainda sinto o gosto daquele desconforto. Idiota, imaturo, senil. Sincero. Conversamos como conversaríamos muitas outras vezes. A princípio ótimas conversas, esperanças, planos até, reciprocidades. Depois mais fugidias, esquivas, com uma cor incerta, um carmim falho e cansado. Fui saber o que tinha mudado quando me disse que não poderíamos continuar porque estava namorando. Um carinha que conheceu no congresso que não pude ir. Desde esse dia, destino, coincidências, explicações não fazem mais parte de como eu vejo o mundo. Não vale a pena contar o resto da história aqui. Sofri por ela como os cartaginenses por seus olhos. Não sabia que era possível sentir aquilo e continuar vivendo. Era como uma pedra crescendo por dentro, se tornando mais dura, mais densa, mais pedra. Não tentei suicídio mas quase morri. E tudo o que fizemos, eu e ela, tudo o que dissemos depois, tornou tudo tão pior. Hoje, depois de anos de um silêncio amargo como o silêncio de uma calúnia já desmentida, sinto uma saudade impossível dela. Como um cavalo aleijado sente falta da perna. Aliás, eu desenhava muito nessa época, e a imagem de um cavalo aleijado, olhando pra frente com aquela dignidade muda dos que querem morrer era uma constante. Senti medo de enloquecer, de morrer de fome, senti medo de não dormir nunca mais. Aprendi que estrelas morrem, porque a cada noite eu percebia a ausência de mais uma delas no céu. Depois de tantos anos seu rosto e cabelo ainda me visitam em sonhos despertos e eu sofro tudo outra vez, a ponto de desejar nunca tê-la conhecido. No seu último aniversário mandei um email de felicitações, o "felicidades" de sempre que retornou um mês depois com o "mesmo pra você" de sempre. Mentiria se dissesse que estou bem agora, que passou, que secou. A pedra cresceu, está mais dura no peito. Mas há muito o que crescer. E a cada medida que se adensa, mais dor eu sinto. Fazer o quê? É da natureza das pedras crescerem para dentro. E o inexplicável é: uma pedra dentro de uma pedra, como um deserto dentro de um deserto.

Eu erro pelo deserto sem saber...

Com o cachorro morto no colo e procurando, com a ponta dos pés, a coleira que deixei cair....

3 comentários:

  1. Oi
    Adorei o texto, as comparações que usou.
    PArabens. bjo

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  2. Caramba...
    Sincero e cruel ... hj eu entendo pq vc diz : "Que no céu não tem os ursinhos carinhosos"
    um abraço

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