sábado, 17 de janeiro de 2009

Com quais carneiros você sonha?


Histórias de homens e seus duplos são muito comuns no ocidente. Talvez pela importância que, na história do conhecimento, demos à lógica binária e à ideia de simetria. Talvez porque, dentro da tradição judaico-cristã o homem não seja muito mais do que um duplo de Deus: Imago Dei. Criado à imagem e semelhança de Deus, Adão foi animado do barro, do inorgânico. Duplo de Deus o homem já começa sua história agindo como o seu original, organizando, nomeando, ordenando. Deus cria o mundo com o verbo, Adão o faz funcionar com o mesmo recurso. Não demora para que o duplo queira fazer o mesmo que o criador e tornar-se, ele mesmo, criador. Criar vida a partir do inorgânico. Na mitologia judaica, na verdade até mesmo antes dela, era comum a figura do Golem, um ser animado que era criado por alguém a partir de matéria inanimada. O termo Golem é uma derivação da palavra gelem (גלם), que significa "matéria prima". Adão é tratado no Talmud como um Golem e assim como ele todos os golens nasceriam do barro. Assim como Adão os golens também são animados pelo verbo, pela palavra, mais propriamente pelo termo Emet (אמת, 'verdade' em hebraico), afixado em sua testa em uma folha ou placa de argila, e seriam destruídos quando a primeira letra fosse apagada, gerando a palavra Meit (מת, 'morto' em hebraico). A alquimia tem a sua própria versão do Golem, o chamado Homúnculo, pequenos seres humanos (Paracelso os descrevia com 12 polegadas de altura) criados por outros humanos através de processos artificiais, muitas das vezes envolvendo práticas animalcultistas como tentar fecundar um ovo de galinha com esperma humano, cobrindo o orifício da casca com sangue de menstruação ou através do aquecimento de semém fechado em um recipiente de vidro durante quarenta dias. As fórmulas eram as mais variadas, mas todas prometiam criar um ser humano sem a necessidade da reprodução sexuada. Somente no século XVIII o Padre Spallanzani acabou com a festa dos animalcultistas provando a necessidade da união dos gametas de mesma espécie para o surgimento da vida. A partir daí muitos ovos de galinha foram deixados em paz ou transformados em simples omeletes. A lenda dos homúnculos inspirou a escritora Mary Shelley em sua história mais famosa, o romance Frankenstein, ou o Prometeu Pós-Moderno (Prometeu foi um Titã_um titã da mitologia grega, que fique bem claro, não um integrante daquela bandinha horrorosa_ que também teria o poder de criar a vida a partir do inanimado, junto com seu irmão Epimeteu). No romance de Shelley, o Dr. Frankenstein cria um ser a partir de partes humanas mortas. Retratado inúmeras vezes como um monstro pouco inteligente, a criatura do livro original é inteligente e sensível, sucumbindo ao desespero trazido pela consciência de si mesmo. Numa época em que a racionalidade se fixa como o sentido preeminente do mundo, Frankenstein não só põe esse sentido em xeque, mas através do duplo, do ser criado, investiga uma humanidade que se esqueceu de ser humana. Frankenstein inaugura uma série de duplos dos homens mais humanos que esses últimos. A ficção nos dá exemplos dos mais variados. Para não desesperar o já entediado leitor me prenderei a dois. O primeiro, mais recente, é a criança robô de A.I. (no Brasil, Inteligência Artificial, ano de 2001, filme que começou a ser dirigido por Stanley Kubrick, mas que, em decorrência de sua morte foi realizado por Steven Spielberg). No filme um casal "compra" uma dessas crianças andróides, chamada de David, com capacidade cognitiva próxima a dos humanos. Vários acontecimentos levam ao abandono de David, que passa o filme tentando reencontrar sua "mãe". Num mundo dominado pela tecnologia e pela ciência, David se mostra extremamente mais humano que os personagens dessa espécie no filme. A feira de carne, onde andróides obsoletos e acusados de crimes são horrivelmente destruídos, denota bem a inversão de papéis. Na tela os humanos de verdade são aqueles feitos de circuitos e fibras sintetizadas. O mesmo ocorre num outro filme, Blade Runner, ano de 1982, do diretor Ridley Scott, em que um caçador de andróide (blade runner), aposentado, vivido por Harrison Ford, é obrigado a retornar à ativa para "aposentar" um conjunto de Replicantes rebeldes. Os Replicantes eram andróides criados à imagem do homem para trabalhar nas inóspitas condições das colônias espaciais. Com o tempo eles começam a desenvolver um temperamento agressivo, devido ao curto prazo de vida de quatro anos levar a uma rápida deteriorização de suas capacidades cognitivas. O grupo rebelde busca seu "criador" para conseguirem uma vida"real", assim como David procura pela fada azul, com o mesmo propósito, em A.I. Os Replicantes demonstram sentimentos e desejos humanos mais plenos do que os humanos normais, vivendo em uma distopia arrunaida onde sonhos e esperanças não mais existem. Numa das cenas finais, o Replicante Roy Batty (Rutger Hauer), protagoniza uma das mais belas passagens do cinema, evocando as coisas que viveu e conheceu e que naquele momento estariam a se perder como as lágrimas que vertia sob a chuva torrencial. O filme é baseado num conto de Phillip K. Dick, Do Androids dream of Eletric Sheep?. Dizem que Dick detestou o filme. Mas os duplos que criou, os Replicantes, nos trazem a dúvida sobre o sentido da própria ideia de humano. Numa época em que o pluralismo é um caminho para a própria sobrevivência do homem na terra, repensar o mundo não como o berço dO Sentido, mas dOS Sentidos é fundamental. Por mais que duplos dos humanos que os criaram, os Replicantes criaram sentidos e interpretações que humano nenhum poderia criar para entender sua vida. O mesmo com o monstro de Frankenstein ou com o pequeno David. Nietzche dizia que se as moscas tivessem consciência de si se veriam como o centro voador desse mundo, e que se os carneiros tivessem um deus esse deus também seria um carneiro. O sentido antropomórfico do mundo, a colocação de nosso selo de humanos sobre o planeta que vivemos é nossa marca indelével. Contudo, muitas vezes ele é sobreposto por sentidos que se pretendem maiores e mais universais, como religiõs, culturas, interesses econômicos. Então ser cristão passa a ser mais importante que ser humano. Ser ocidental também. Ser branco, ser homem (masculino), ser desenvolvido. Externalidades maiores que a humanidade em si e que nos faz projetar nos nossos duplos ficcionais o humano que perdemos em nós mesmos. Se os replicantes sonham com carneiros elétricos, como são os carneiros com os quais você sonha?

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