Já tive muitos contatos com marmitas e filosofias ao longo da minha vida. Mais com as segundas do que com as primeiras é verdade, mas o receptáculo metálico de refeições não me é inteiramente estranho. E como na filosofia analítica é sempre bom definirmos as coisas, marmita não é marmitex, não é descartável e não é aquela coisa que você encomenda no restaurante da Tia Chica pagando tudo junto no final do mês. Marmita você prepara em casa e leva pro trabalho, e volta com a bendita pra acomodar a refeição do dia seguinte. Nunca fui bóia fria nem ajudante de pedreiro, mas meu pai foi as duas coisas e como na vida a gente nunca esquece o que é importante de verdade, ele nunca esqueceu o que aprendeu nesses momentos. Meus poucos amigos sabem que eu nasci e fui criado em uma cidade do inteior de Minas Gerais chamada Ouro Branco, perto de Ouro Preto, separada da antiga Vila Rica por uma das serras mais lindas do mundo, e que em um devaneio maluco eu queria pôr abaixo para misturar as duas cidades e criar a Ouro Cinza, mas acho que não ia vingar. Parte da minha infãncia foi vivida numa casa modesta construída basicamente pelo meu pai nos fundos da casa dos meus avós maternos. A morada estava longe de ser boa, mas pensando nos barracos que se vê hoje nas cidades grandes, e não estou falando de favelas, era ótima. Lembro dos cães que tivemos, da horta da minha avó, do pé de ameixa, lembro quando meu bisavô morreu, do leite que a dona Lena vendia, lembro do emprego do meu pai na Açominas, hoje Gerdau, e das conversas eternas dele com minha mãe sobre construir uma casa melhor. Não vou contar aqui como compraram o lote porque pra certas histórias até a internet fica pequena, mas comprado o bendito começou a construção. Claro que teve todo aquele lance de terraplanagem, tira morro daqui, acerta ali, coloca fundações e tal, mas o que interessa mesmo começa com o levantar das paredes. Como eu disse meu pai foi ajudante de pedreiro, e aprendeu muito, se tornou pedreiro semi-profissional depois (pedreiro profissional me soa tão estranho) e trabalhou com isso durante um tempo. E como o dinheiro que tinha, já na época da construção da nossa casa, mal dava pra bancar os materiais para a construção ele resolveu fazer as vezes da mão de obra, sozinho. Bom, sozinho não porque quem podia ajudar ajudava, eu inclusive, mas não tem parede ali que ele não tenha colocado a mão para levantar. A casa demorou mais de cinco anos pra ficar pronta. Crises financeiras atrapalharam tudo, crise do petróleo encareceu o cimento e tal e coisa e coisa e tal, e era um cara fazendo praticamente tudo, não podemos esquecer disso. Contando assim parece aqueles contos do Borges em que o um labirinto se constrói do nada, mas é bem mais complicado que isso. Mas o que tem a marmita com isso tudo? Eu disse que ajudava meu pai na construção. Como estudava de manhã, geralmente ia depois do almoço, e levava a marmita que minha mãe preparava pra ele. Não gostava de andar com ela pela cidade, porque o cheiro de comida era muito forte e eu não gostava de chamar atenção. O ônibus ficava com um cheiro muito gostoso, mas muito presente, como se ele mesmo fosse uma grande marmita com rodas. Nas férias eu ficava o dia inteiro com ele, e trazíamos as marmitas de casa preparadas pela manhã, e as esquentávamos num fogão improvisado com tijolos que a gente mesmo fazia. Não tinha mesa, obviamente, e ainda lembro do cheiro do cimento e do barulho da botina do meu pai no chão grosso enquanto a gente comia. Eu confesso, como nunca fiz a ele nem à minha mãe, que nunca gostei de comer na marmita. Não sei explicar bem porque, mas pra mim, independente do que se colocasse dentro da latinha tudo tinha gosto de linguiça (sem trema agora, né?). E eu nunca gostei de comer de colher, e marmita se come de colher, por uma questão muito simples. A marmita é o único recipiente que, ainda que seja redondo, tem cantos inexcrutáveis, arestas e orifícios dedálicos onde o alimento vai se esconder e que um garfo, com seu formato próprio para fincar as coisas e não para colhê-las, não consegue recolher, é preciso uma pá, uma colher. Meus pais tiveram uma infância muito difícil, sobretudo meu pai, chegou a passar fome. Fomos criados com a ideia de que era pecado mortal deixar sobrar comida no prato, se tá no prato é pra comer, mesmo que seja algo que não se goste ou que esteja ruim, e o mesmo princípio se aplicava, por uma analogia in mallan parten à marmita. E eu comia tudo, engolindo bolos enormes e sempre com o mesmo gosto. Nem me importava de trabalhar pesado (na verdade achava mais chato do que pesado o trabalho), mas a tal da marmita me perturbava. Mas meu pai contava rindo histórias da época em que ele e outros pedreiros preparavam a comida numa lata velha e lavada de tinta e eu engolia outro bocado em silêncio, quase agradecido. A casa ficou pronta, uma senhora casa diga-se de passagem, e por uma dessas ironias da vida meus pais nem moram mais lá. Fui pra faculdade aos 19 anos e não morei mais com eles depois disso, quase dez anos já, apesar de visitá-los sempre, inclusive para contar uma história de marmita do meu primeiro emprego como advogado (é, carrego essa maldição) em Belo Horizonte. O primeiro escritório em que trabalhei era horrível, trabalho escravo mesmo, uma exploração dos diabos. Tinha uma cozinha com um micro ondas e um fogão pra quem tivesse vontade de almoçar no escritório o fizesse. E iam lá, os advogados recém-formados e suas marmitinhas. Um de meus colegas, hoje meu amigo, foi o protagonista da história. Ele foi levar ou buscar uns processos no fórum, mas ao sair percebeu que não tinha dinheiro para o ônibus. Foi ao banco sacar uma grana, mas ao tentar entrar foi barrado pelo detector de metais. Quando abriu a sua solene pasta de advogado, o que tinha acionado o dispositivo? Sua nada solene e já vazia marmita. Ele passou pela porta, mas estava tão constrangido com a situação (na cabeça de muita gente marmita é uma coisa indigna) que deixou a bendita cair no chão, num estardalhaço salpicado de feijão que fez o garfo, quardado dentro da latinha, voar longe, para uma fresta entre a parede do banco e os balcões dos caixas onde ele jaz até hoje, inalcançável. Ainda rio da história, mesmo não vendo mais tantas marmitas como antes (até com a dignidade muda de se levar o almoço de casa e economia de mercado acabou) e lembro que quando lia um livro sobre Bachelard, há poucos anos atrás, em que a gaveta era retratada como o símbolo do segredo, do mistério, do que guarda algo, pensei comigo mesmo (porque não tenho muitos botões para dividir pensamentos): é porque Bachelard nunca comeu em uma marmita...
só p'ra avisa que eu tô comendo do que tem na marmita!
ResponderExcluirrs
A dois anos atrás eu comia marmita! E nossa, lendo esse texto deu até saudades!!
ResponderExcluirEu estagiava em um banco, e só tinha 15min de almoço (estágio = escravidão) então minha mãe mandava minha marmita todos os dias pra mim. E eu adorava, porque ela caprichava na comida. Arroz, feijão, bife, batata-frita, verdura cozida e ainda mandava um docinho como sobremesa, rsrsr.
Mas alguém pode ter pensado: " Mas arroz, feijão, bife e batata-frita é capricho?"
Bom eu tenho uma certa rejeição em comer feijão, desde criança. Hoje só almoço depois que deixo o trabalho às 14:00 sempre sozinha, a raramente coloco feijão no prato.
Até que a uns 40 dias atrás adoeci e o diagnóstico foi uma anemia das "braba", falta de ferro e proteina animal, excesso de glicose, meus pés incharam cheguei a achar que estava com uma doença muito grave. Isso me fez perder o show de Lenine em Recife :'(.
Nunca tive vergonha de comer na marmita, 12:30 era sagrado, a marmita chegava no banco naquela clássica sacolinha plástica perfurada pelos dentes do guarfo, rsrs.
Magda Rocha.
*garfo, rsrsr.
ResponderExcluirSorry.
Magda Rocha.
Magda, esses 15 minutos me fazem pensar que temos uma empresa em comum...
ResponderExcluirDurante uns quatro anos, dependi do velho RU (Restaurante Universitário) na hora do almoço. Se chegasse um pouco mais tarde, já viu! Coxinha na cantina do campus. Foi saboreando aquele bandejão que fixei indelevelmente o significado da palavra rotina.