Aceitando a dica do Claudinei vamos ter alguns posts sobre discos malditos. De início eu pensei que seria legal cada um escrever sobre um disco específico, mas são tantos discos que tem uns três ou quatro que eu me sentiria um pecador de não citar. Pois bem, mas o que torna um disco "maledeto"? O que torna uma obra artística maldita? Ter o Tinhoso na capa? Fonemas satânicos que só podem ser ouvidos por aqueles com tempo o suficiente para girar um LP ao contrário? Covers da Xuxa? Bom, no último caso até deveria mas não é. Assim como o Papa é Pop e John Lennon é sacro porque o povo os fez assim, um disco é maldito quando sua receptividade junto ao público é tão ruim que qualquer citação ao mesmo leva a arrepios os fãs mais arraigados de determinado artista. Talvez como consequência de um instinto subrepticiamente (ufa) invejoso, os próprios fãs de um artista gostam de cultivar um olhar inquisidor sobre um momento pretensamente de baixa qualidade do trabalho de seu ídolo. Digo pretensamente porque não necessariamente um disco maldito é um disco ruim. Muito pelo contrário, às vezes a qualidade de um álbum será reconhecida muitos anos depois de seu lançamento. Geralmente ele se torna objeto de culto por alguns e vai resistindo ao teste do tempo até se consolidar como um grande trabalho. Em 1973 Luiz Melodia lançou seu primeiro disco, Pérola Negra. Para uma indústria fonográfica ainda muito acostumada ao padrão Bossa Nova o disco era no mínimo estranho. Na verdade o disco não se encaixava em nenhum estereótipo da época. Urbano demais por um lado, tradicional demais por outro, o disco é simplesmente inclassificável. Negro, apaixonado, cruel, desolado, tropical, outonal e tempestuoso. O disco é tudo. Talvez por isso sua receptividade incial não tenha sido das melhores. Não foi esquecido por que Melodia chegaria ao final do festival abertura da TV Globo com outra obra prima sua, a canção Ébano, que não é do Pérola Negra, mas que possibilitou que seu trabalho fosse constantemente revisitado pelas gerações que seguiram. Algumas mais belas canções do morro e do asfalto estão nesse disco. Da fenomenal Estácio, holly Estácio, em que o sobrenome Melodia se justifica linda e plenamente, à singelamente estranha Magrelinha (regravada depois por Caetano Veloso), com uma letra pop somado a um clima de valsa e samba canção emocionantes, passando por Farrapo Humano e outras pérolas que desfilam crueldade, sujeira, beleza, emoção. Hoje ele é um disco que encontrou sua redenção, reverenciado por todas as gerações de músicos que o sucederam. Precioso ao extremo. Um outro disco deslocado foi o Hot Space do Queen. Lançado na época em que músicas sintetizadas e vocais afetados dominavam (o disco é de 1982) Hot Space colocou o Queen na onda dos sintetizadores e batidas eletrônicas, com algumas canções que podiam estar tranquilamente em pistas de dança. Pra grande maioria dos fãs da banda na época foi um disco herege, uma traição. A crítica esqueceu de quem estava falando e os xingou de todos os nomes possíveis e imagináveis. Tanta ladainha quase encobriu belezas raras como Las Palabras de amor, balada pop ornada com vocais mais que perfeitos de Freddie Mercury. Life is real, uma comovente homenagem ao supracitado John Lennon, e ainda temos Under Pressure, uma verdadeira obra-prima, união dos talentos do Queen com o grande David Bowie, num dos duetos vocais mais arregaçadores da história da música pop, e os riffs sempre inteligentes de Brian May com sua Red Special em Put out the fire, a mais "setentista" do disco. Ao contrário do Pérola Negra, ainda é um disco pra ser redescoberto. Mas que vale muito a pena. Talvez a banda recordista de álbuns malditos seja o Metallica. Como assim? O Metallica? A banda mais bem sucedida do metal, com milhões e milhões de discos vendidos, tournês milionárias, um público enorme? Calma, vou explicar. Público de metal é chato. Muito, muito chato. Quando Kill 'em' all, o primeiro disco da banda, foi lançado, o cenário roqueiro americano era dominado por bandas como Cinderella, Journey e Foreigner, bandas que se preocupavam mais com a quantidade de laquê no cabelo do que com o som propriamente dito. O Metallica trouxe uma nova proposta, um som pesado, virulento, com riffs poderosos dominados pela corda E solta e palhetadas pra baixo ultra precisas. Estava criado o Thrash Metal, uma forma mais pesada do chamado heavy metal tradicional, de bandas como Judas Priest e Iron Maiden. A recepção do primeiro disco foi muito boa, tanto de público quanto de crítica. Pra uma banda de metal inciante o disco vendeu razoavelmente bem. Quando do segundo disco Ride The Lightning vozes dissonantes começaram a aparecer. A banda lança Fade to Black, considerada uma balada por alguns fãs, que riscavam com pregos e outros objetos a faixa do LP e viravam as costas em execuções ao vivo da canção. Um disco infinitamente superior ao primeiro, com melodias muito bem trabalhadas, influência clara da consolidação do trabalho do grande baixista Cliff Burton. Apesar do mimimi de alguns, foi outro sucesso. Logo depois da banda lançar o perfeito Master of Puppets, Cliff morre num acidente de ônibus durante a tour européia da banda. O baque foi estrondoso, a ideia de fim era muito forte. Mas, apesar de tudo, a banda convoca Jason Newsted para o posto vago e vão pra estúdio e gravam o monumental ...And Justice for All. Um disco de canções enormes, riffs escandalosamente complexos, vocal mais melódico e menos gritado, letras críticas, fortes. Novamente estranhamento de alguns fãs, que criticaram o vocal mais melódico de Hetfield, o baixo inaudível de Newsted (é um defeito sério do disco), os longos interlúdios acústicos. Foi um disco demonizado por anos, mas que além de ter rendido o primeiro clipe da banda (o magistral One, com cenas do filme Johnny Got his Gun) e uma indicação ao grammy de melhor disco de metal, perdido pros veteranos do Jethro Tull e seu Aqualung, mostrou uma competência e uma qualidade de composição até então inéditas pra uma banda de metal. A banda retorna ao estúdio e grava o que viria a ser seu maior sucesso. Metallica, ou o mundialmente conhecido Black Album. Um disco que soa primoroso, com riffs mais simples, músicas mais bem estruturadas, letras ótimas, um bom trabalho de graves. Uma coleção imensa de sucessos, praticamente todas as músicas foram hits radiofônicos e os clipes passavam incansavelmente na MTV. Mas pra variar, muitos fãs viraram as costas, dizendo que não era mais o Metallica, que não era um disco de Thrash, que Bob Rock, o produtor, não sabia produzir discos de metal e tal e coisa e coisa e tal. Críticas e chiliques que se repetiram e agravaram com os dois álbuns seguintes da banda, o menos metálicos Load e Reload. A banda apareceu de cabelos curtos, unhas pintadas e visual de cafetão. Pronto, foi paulada de todos os lados. Até dos amigos. No acústico do Alice in Chains, o baixista Mike Inez apareceu com o baixolão pichado com a seguinte inscrição: amigos não deixam amigos cortarem os cabelos. O defeito dos discos está justamente em ser "os discos". Por serem dois álbuns muita coisa desnecessária acabou entrando, mas são trabalhos muito interessantes, com algumas das melhores letras da carreira da banda e Hetfield provando uma vez por todas que sabe cantar. Apesar de tudo, ambos os discos foram sucessos. Mas em 2003 a coisa não estava nada boa pra banda: muito tempo sem lançar nada inédito (os discos que sucederam os loads, foram um disco de versões, o Garage inc. e um ao vivo com a San Francisco Simphony, o S&M), brigas internas que culminariam com a saída do baixista Jason Newsted, problemas do vocalista James Hetfield com bebida, que o levariam a enfrentar a jornada longa da reabilitação. O resultado de tudo isso foi o mais que controverso St. Anger, um álbum pesado e agressivo, mas recebido pelo público e crítica como um tiro no pé, um fiasco total. A princípio isso não interferiu nas vendas (tudo que os caras põem a mão vira ouro, incrível), mas as críticas eram cruéis. Na época o Metallica enfrentava as consequências de seu processo contra o Napster, o serviço de compartilhamento de arquivos. Massacrados pela MTV e pelos canais jovens por isso, a banda teve que conviver com imagens de seus antigos fãs quebrando cds em protesto contra a ação judicial. Tudo isso ofuscou um disco esquisito, desconexo às vezes, de difícil audição, mas que pra variar tem coisas muito boas. A começar pela faixa título, nervosa, espumando raiva pra todos os lados, com riffs simples mas rasgantes. Frantic é outra muito interessante, e que funciona muito bem ao vivo, como a banda tem mostrado, executando-a constantemente. The Unnamed Feeling, com seus mais de sete minutos, tem não só uma das letras mais fortes da banda mas melodias inesperadas e pouco lineares, é uma das faixas esquisitas porém fodas do disco. Some Kind of Monster talvez seja a canção que melhor resuma o disco, um amontoado de sentimentos, de partes, de pedaços, chumbados num disco que representa a sobrevivência da banda em seu momento mais difícil. Tudo registrado no belo documentário Some Kind of Monster, recomendado mesmo pra quem não gosta ou não conhece Metallica, é cinema bom, de verdade. Hoje a própria banda acha que o disco foi uma descida na montanha russa, mas sabe que sem ele não existiria o Metallica hoje, comemorando a ótima recepção do belo Death Magnetic. Pra terminar eu poderia citar o Racional do Tim Maia, em seus dois volumes, como um disco maldito renegado também pelo próprio artista, mas vou ser bonzinho e deixar o Márcio falar dele (rsrs). Esse mereceria um post só pra ele, de tão belo e controverso, mas por isso mesmo vou deixar passar. Os discos malditos são um exemplo, herético e forte, de que por mais que tentem reduzir arte a produto, a coisa lúdica e comovente sempre sobrevive, saindo pela tangente das ondas e momentos. Na cultura japonesa, os seres espectrais são chamados de Obakes, ou Obakês (já vi as duas grafias) e são, muitas vezes, seres malditos, que retornam pra vingar um sofrimento extremo que enfrentaram durante sua vida corpórea. Assim como os discos comentados aqui eles resistem, criando aos poucos suas razões, amedontrando, encantando e sobrevivendo a tudo.
Nossa! Eu volto aqui e vejo que levaram a sério minha sugestão. Li o texto e gostei muito, é sempre bom aprender mais sobre música e tentarei conhecer alguns destes discos mencionados. Este assunto rende mesmo. A definição do Ramon para o que chamei de "discos malditos" fico excelente!
ResponderExcluirO legal é que o Ramon me deu uma tarefa fácil, fácil... Falar do Tim Maia Racional vai me custar alguns dias de divagações. Mas "que beleza", topo o desafio. Aproveito para escrever também sobre o Technical Ecstasy do Black Sabbath e o Come taste the band do Deep Purple. Eo show do Luiz Melodia interpretando canções do disco Pérola Negra, ano passado no Teatro Municipal, em SP, foi um dos melhores que já vi na vida! (e foi o primeiro show que assisti com credencial! Hahaha!)
ResponderExcluirPense por esse lado Márcio, eu podia te dar a tarefa de elogiar um disco ruim, imagina. Falar lá do florzinha de jesus...rsrsrsrsrs
ResponderExcluirE não adianta mesmo,o texto da Maísa já vai ser melhor mesmo....
Ah, sim. Mas eu nem me esforço pra ser melhor do que a Maísa, porque é causa perdida mesmo. A mulher é uma avalanche!
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