terça-feira, 20 de outubro de 2009

Discos malditos - Simples de Coração

Antes de começar a escrever, bateu uma dúvida: poderia um disco tão bem produzido, e que tem pelo menos dois hits, ser considerado "maldito"? No caso deste "Simples de Coração", a resposta é sim, pelos seguintes motivos: É um disco de ruptura, não só por ser o primeiro dos Engenheiros do Hawaii após a saída do virtuoso guitarrista Augusto Licks e a entrada de três novos integrantes, mas também porque representa uma mudança considerável no teor das letras do grupo, 99% compostas pelo líder Humberto Gessinger. A presença de uma letra composta pelo então baterista Carlos Maltz era outro sinal de ruptura. "O Castelo dos Destinos Cruzados", inspirada no livro homônimo de Ítalo Calvino era a novidade. Foi também pivô de algumas das maiores divergências, que culminaram inclusive com a implosão desta formação logo após a turnê de lançamento. Os dois membros fundadores da banda já não se entendiam. Além dos dois, completavam a banda: Ricardo Horn, colega de Humberto dos tempos de colégio, escolhido a dedo para substituir Licks e bastante questionado quando a seu nível técnico em relação ao antecessor. Fernando Deluqui, ex-RPM, juntou-se à banda, trazendo mais peso às guitarras, e Paolo Casarin completou a formação. Casarin, tecladista que já tocou com Moraes Moreira e Pepeu Gomes, entre outros, tocou também acordeom no disco, em faixas com toque regionalista gaúcho. O contestado Horn foi o músico que tocou mais instrumentos no álbum, ficando responsável por guitarras, violões, viola e bandolim. Deluqui se limitou às guitarras. O disco começa com "Hora do mergulho", que retoma a harmonia de "Problemas... sempre existiram", do disco GLM, auge da formação clássica. Desta vez, a voz de crianças dá o tom. O arranjo lembra bastante "Comfortably Numb", do Pink Floyd, inclusive no solo. A letra cita a máxima romana "Se queres paz, prepara-te para a guerra", e vai por aí, desfilando referências. Logo em seguida, "A Perigo", que sutilmente fala em separação. Pressupõem-se algumas crises na vida de HG, mas como o próprio costuma dizer, nem sempre o artista precisa viver o que está cantando. Mas as referências estão lá, para todo mundo ver. A levada rock combinada com acordeon lembra "Vou deixar que você se vá", do Nenhum de Nós, e "This is the day" do The The. Não sei se houve esta intenção, mas lembra. "Simples de coração", a faixa título, é outra que combina solo de guitarra com regionalismo gaúcho. Separação é o tema novamente. Nesta é que se nota nitidamente a mudança na forma de escrever. As aliterações, frequentes nos discos anteriores, dão lugar a um discurso mais direto (na verdade, elas não são abandonadas por completo, como no verso "volta voando, vinda do alto"). "Lance de dados" introduz o bandolim no som da banda, com letra retomando os questionamentos sobre o acaso. Logo em seguida, chega "A Promessa", a música de trabalho, parceria de Gessinger e Casarin, com direito a solos sincronizados de Horn e Deluqui e percussão do cubano Luis Conte, famoso por seus trabalhos com Santana, Elton John, Roger Waters, entre outros. "Por Acaso", ode à vontade de voltar às origens, retoma mais uma vez o tema "voo", muito presente nas letras. Sinal de que o Rio de Janeiro não satisfazia mais o engenheiro-chefe. Porto Alegre o chamava de volta. Quem nunca teve uma sensação semelhante à descrita em "Ilex Paraguariensis"? "Tô no meio da estrada e nenhuma derrota vai me vencer", diz a letra da música, com o título inspirado no nome científico da erva-mate. "O castelo...", já citada no início do texto, parceria de Maltz e Horn com Kleber Lucio, chega com guitarras distorcidas e vocais rasgados. Segundo o próprio Maltz, esta era para ser uma balada (como foi gravada por ele posteriormente em seu grupo "Irmandade" e em seu disco-solo), mas foi vetada neste formato, supostamente por já haver muitas baladas no disco. Nos shows, Gessinger não cantava o refrão e tocava seu baixo sentado, olhando para o chão (cenas de uma apresentação nos estúdios da TV Bandeirantes podem ser encontradas no Youtube, e comprovam esta informação). Em seguida, "Vícios de Linguagem" vem com partes da letra cantadas em inglês pelas Waters Sisters, cantoras também famosas por backing vocals em discos famosos. "Algo por você" é uma parceria Gessinger/Deluqui, com clima hard rock setentista e alguns vocais abafados. Finalizando, a quase religiosa "Lado a Lado", com participação de Kevin Cronin, do grupo pop REO Speedwagon no violão. Esta é mais uma com o bandolim de Horn. No final, cavalos trotando, segundo dizem, "homenagem" do grupo ao chefe HG, conhecido por suas "patadas". A turnê do disco e as participações em programas de rádio e TV mostraram que não só o disco era de ruptura, mas a banda também se encontrava dividida. Quase sempre, Maltz falava mais nas entrevistas do que o próprio Gessinger, autor da maioria das canções. Mesmo no release, é o baterista quem explica o conceito do álbum. Sinal dessa ruptura foi que, ao final da turnê, a banda se separou. Humberto partiu para os shows e um disco com o grupo que montou, o Humberto Gessinger Trio, que mais tarde seria base para uma nova formação dos Engenheiros do Hawaii. Maltz montou sua "Irmandade" na qual deixou a bateria para se aventurar nos vocais e violão. Deluqui partiu para a carreira-solo, e posteriormente participou de uma reunião do RPM (que também não durou mais que um disco ao vivo). Casarin voltou para sua terra natal, Erechim-RS, onde seguiu tocando teclados e guitarra com a banda Automóvel Verde. Já Ricardo Horn, o mais contestado, chegou a tocar com a banda gaúcha Aquaplay, mas em seguida largou a carreira de músico profissional, dedicando-se, segundo informações, à área de pesquisa de mercado.
No fim das contas, é um disco que envelheceu bem, continuando atual até hoje. Greg Ladanyi, famoso por seus trabalhos com Madonna, Fleetwood Mac e Toto, produziu o disco e trouxe um som límpido, onde todos os instrumentos são ouvidos com nitidez.
Pra terminar, um comentário pessoal, que pode causar horror aos puristas: é o meu disco preferido.

O bando, ops, a banda, em 1995.








sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Outro Mojo...

Sei que é chata essa auto-propaganda, mas acaba de sair mais um single (mandei por atacado para a Mojo). Tá aqui.

P.S.: tem integrante do blog na fila pra ser publicado, e com certeza tem mais gente preparando seus mojos. Aguardem que vem coisa bacana por aí.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Por merecer um poema...

Pra Joy
Ela fechou o livro sobre os joelhos. Acariciou a capa de couro e não disfarçou um pequeno beliscão na lombada. Adorava livros assim. De graça, de uma forma quase submissa, como se ela fosse o objeto e não o contrário. Amava os livros a ponto de querer agradá-los, querer fazer as fibras e os pedacinhos organizados de celulose vibrar. Queria dar prazer aos livros, como uma amante que quer fazer o amado sorrir. Pra isso era importante viver os livros. De que "adiantava acompanhar um personagem até sua morte senão se morre junto?"ela perguntava. E sabia sofrer, e sorrir, sabia viver e morrer com os livros, se auto-constituir como se passeasse nas páginas, se apoiando nas letras, beijando as interjeições, rindo dos acentos e tropeçando nas vírgulas. Não era algo mágico, fora do mundo, simplesmente era assim...e, por isso, era perfeito. Como todo viver verdadeiro. Por isso beliscava as lombadas, pra manter aquele mínimo diáfano de vida bela, único resquício de um livro fechado.
Sua mão suava sobre a capa que ela não queria soltar. O caminho até à prateleira foi propositadamente mais longo e mais erradio. Abaixou-se pra ver dicionários, coçou a cabeça diante de pilhas de filósofos orientais, riu alto de tratados de física, fez seu próprio labirinto entre as prateleiras. Era uma dança de criança a que fazia ali. Uma dança entre brinquedos. Afinal, o que são os livros pra quem os ama além de brinquedos sérios e importantes demais?
A dança terminou num passo em falso em frente ao espaço vazio onde seu amigo de capa de couro deveria repousar. Correu os olhos quase aflitos pelas lombadas vizinhas. Pareciam um tanto pedantes e orgulhosas demais perto do livrinho marrom nas suas mãos. Ficou na ponta dos pés pra ver se não tinha nada na vaga que pudesse ferir o livro. Passou, destemidamente, a mão no vazio da prateleira, jogando poeira nos próprios olhos. Encaixou o livro em sua casa recém-faxinada, leu devagar as sílabas do título: "A-ca-sa-de-pa...", dirigiu um último e suspirante afago ao livro, virou-se e partiu...
Na verdade nunca partiu realmente...ficaria ali pra sempre, em partículas de unhas marcadas numa lombada de couro. Em fios de cabelo caídos entre as páginas. Ficaria ali pra sempre, entre sonhos encapados. E um dia alguém sorriria pra ela, numa carícia singela, dessas assim...de graça...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Jabuticabas, medos e meninos.

Sua meia-idade, já com vistas turvas já não reconhecidas mais se pela falta de visão real ou os óculos empoeirados, encarou pela primeira vez em longos trinta anos de espera, o pé de jabuticaba. Mais precisamente na casa de campo onde hoje habitava seu filho e família. Lembranças que sempre estiveram ali, mas por algum motivo ele não quis mexer. Não foi necessário, até então, cutucar nos tesourinhos do passado - hábito inconveniente pra desmerecer toda a beleza sombria que sua nova condição aclamava.

Na verdade, nunca desejou aquele saudosismo que sentia ao estar diante deste fato. Nunca houve algum momento em que precisasse lamentar sua vida e refugiar-se no passado para suportar o presente e as possibilidades do que esperar do futuro. O instante era tão oco e silencioso, tão sublime... Avistava o topo da árvore insana como se voltasse aos oito anos e todas as suas traquinagens borbulhavam em seu sangue novamente.

Se tivesse o mínimo de coragem - ou falta de senso de responsabilidade, diriam os mais conservadores - subiria ao menos nos galhos mais fáceis. Tão tranquilizante como apaziguador era relembrar de sua coragem, do quanto já foi mestre em alcançar galhos perigosos e apanhar as frutas mais doces em dias de verão. Matar a sede com saliva doce de jabuticaba era, entre outras coisas, seu passatempo favorito. Sentia o cheiro de bolo de fubá que sua mãe preparava em todas as tardes de sábado. Inquietava-se ao recordar sua mãe, a mais eterna deusa de sua vida, porém, estar de frente à árvore, sua companheira fiel dos tempos de risos, trazia também o gosto amargo da crueldade que sua mãezinha, tão protetora, o aplicou para seu próprio "bem". Que culpa ela tinha, pobre mulher? Houve um tempo desconfortável que sua educadora-mór o castigou da maneira amena com que toda mãe zelosa o faz, convencendo-o de que aqueles malabarismos eram fatais para sua vida. Que se caísse dali poderia morrer, ficar paraplégico, ser tirado de seu lar para morar com desconhecidos maldosos, receber um castigo dos céus com duzentos anos de azar, ou qualquer tragédia maior que sua mãe se lembrasse no momento do discurso. Não se convenceu fácil, não se conformava com os empecilhos que sua vida tão infantil já trazia. Queria que tudo fosse diferente, mas, pra não magoar sua tão amada mãe, desistiu da árvore.

Ah, se soubesse o que isso o causaria hoje! Depois de desistir do seu primeiro grande feito, qualquer adversidade que a vida o impusera, pensava nas recomendações da mãe. O medo passou a fazer parte da sua vida de tal forma que não existira até ali. Se contorceu durante muito tempo para abafar gritos que poderiam prejudicá-lo. Tornou-se um homem bom, porém passivo, porque temia a cada árvore como se a morte não fosse mais a pior das consequências. Embora pensasse nisso agora, reconhecia sua vida estável, suas boas escolhas, seus bons feitos e orgulhava-se de quase tudo. Menos dos riscos que deixou de correr, da falta de humanidade que infiltrou-se em sua lógica. Diante de todas estas lembranças esquisitas e que julgava imbecis, avistou o netinho sentado, brincando de bolinha de gude. Sorriu com o canto da boca, cheio de esperança e uma espécie de redenção saía do ar que respirava; sentia alívio sem saber. Rendeu-se a ingenuidade de sua velhice transformando-se em menino. Segurou a mão do neto com a força que jamais imaginou que ousaria de tanto sentimentalismo; engoliu seco uma porção de lágrimas que não entendia de onde vinham e com o vento batendo em sua face e refrescando seu momento de transformação, ensinou pacientemente o neto a subir na árvore e encorajou a alcançar a mais alta fruta. Quando a criança no alto da árvore segurou a maior jabuticaba e levou aos lábios, uma lágrima caiu de seu rosto e então se perdoou...