Josué ganhava no grito. E se orgulhava disso. Cada discussão, cada conversa no bar, cada divergência no trabalho, ele terminava deixando o oponente sem ter o que dizer. “Você viu, Tobias, deixei o seu Vieira quietinho. Tava na hora daquele velho baixar a bola”.
Seu Vieira era o encarregado da produção. Ele tinha um caderninho, em que anotava todas as infrações dos empregados. Seu Vieira nunca dava advertência, verbal ou escrita. Mas anotava no caderninho. Um dia, alguém poderia pegar o caderninho dele e escrever a história daquela fábrica.
Em casa era a mesma coisa. Josué discutia com a Lavínia, morena bonita que ele conheceu na quermesse da cidade e em menos de um mês já estava na vida dele, como esposa e empregada. Lavínia era uma lutadora, sem saber. As olheiras tiravam um pouco da cara de menina, dezenove anos ainda. E era sempre assim. Josué chegava, perguntava da janta, reclamava. Dizia que ela não fazia nada direito. E ela se calava. Baixava os olhos e nada dizia. Isso para ele era uma vitória. “Quem cala, consente”, não era assim o ditado? Durante o dia, enquanto Josué trabalhava, Lavínia chorava. Um pouco antes de ele chegar, lavava o rosto e fingia normalidade.
E Josué continuava sentindo prazer em silenciar as pessoas. No bar, ele impunha sua opinião. Ferrenho defensor do regime militar, ele achava que só uma nova ditadura poderia consertar o país. E ai de quem discordasse! Ele levantava o tom de voz, falava até se cansarem de discutir, saía do bar na hora de fechar, com um ar vitorioso.
O que ele não sabia é que o silêncio das pessoas não era uma admissão de derrota. Era desistência.
Na segunda-feira, Josué chegou ao trabalho e foi procurar o seu Vieira, pra saber sobre o serviço: “E aí, seu Vieira, o que nós vamos fazer hoje?”. “Nada, Josué”, disse o encarregado, para surpresa do falador. “Hoje não tenho nada pra você. Mas fica aí, pode ser que apareça uma tarefa”. E o dia todo foi assim. Josué passeava por entre as máquinas, conversava com os outros funcionários, perguntava se precisavam de ajuda. “Não, Josué”, diziam. “Tá tudo certo, não precisa ajudar, não”. E ele não entendia: por que estava ali se não precisavam dele? Tentava engatar uma conversa com alguém, as pessoas se esquivavam, alegavam excesso de trabalho. Ele não entendia: se todo mundo tinha trabalho demais, por que ele estava parado?
No fim de tarde, passou no bar. Fechado. “Que estranho... o seu Pedro nunca fecha tão cedo... será que aconteceu alguma coisa?”. Resolveu ir para casa. “Tomara que a Lavínia já tenha feito a janta. Tô com fome”.
Ao entrar, estranhou a ausência do som do rádio, que a moça sempre deixava ligado, e que ele sempre desligava com um xingamento, uma reclamação pelo barulho. Chamou-a pelo nome. Nada. Olhou por todos os cantos. Ninguém. Ah, mas ela ia ver quando chegasse. Onde já se viu, sair assim sem avisar? Mas ela não chegava. Foi passando a noite, e nada. Amanhã ela ia ver, ia buscá-la casa da mãe, a puxaria pelos cabelos. E dormiu, no sofá mesmo, cansado de esperar e cansado do silêncio que imperava. Não tinha ninguém com quem reclamar.
Acordou atrasado, saiu correndo para o trabalho, ainda pensando na mulher, sem saber o que deu nela pra desaparecer assim. Foi recebido na porta, não pelo seu Vieira, e sim pelo Lima, do Pessoal. “Josué, venha comigo até o escritório”.
Lá, o Lima entregou um papel a ele. “Não precisamos mais do seu serviço”, disse o funcionário. No papel constava “demissão sem justa causa”. Josué pensou em perguntar a razão, mas achou melhor ficar calado. Eles não precisavam explicar.
Foi para casa. Tudo o que ele queria agora era encontrar com a doce Lavínia, abraçá-la e dizer tudo o que sentia. Ligou o radinho dela, mas faltava algo ali. Aquelas vozes não eram as mesmas sem ela. Ele sabia que ela não ia mais voltar. Telefonou para a casa da mãe dela, mas ela não estava lá. A mãe não deixou claro se sabia ou não do paradeiro da filha. “Você fala demais, Josué!”, disse a velha. Ele desligou o telefone sem se despedir, para não ter que concordar com a sogra.
Meses se passaram. Josué passava a maior parte do tempo em casa. O bar do seu Pedro nunca mais abriu, e ele nunca soube por que. Um bico aqui e outro ali, geralmente um trabalho pesado, bruto. Ele mesmo impunha a si próprio um ritmo acelerado. Não conversava com ninguém, nem mesmo consigo próprio. Na hora do almoço, se afastava, mal comia. Não puxava papo com quem quer que fosse. Monossilábico, fazia o que mandavam e pronto.
E foi na volta de um desses trabalhos que se deu o encontro. Ela vinha pela calçada, com um vestido chique, maquiagem, cabelo arrumado. Bem diferente, sem as olheiras que tinha quando moravam juntos. Ele correu até bem perto dela, quis abraçá-la, beijá-la e perguntar por que ela fugiu. Não sabia se sorria ou se chorava, se brigava com ela ou se ajoelhava aos seus pés. Queria contar a ela tudo o que passou neste tempo em que ficou longe dela, pedir que ela voltasse. Ela olhou para ele e disse algumas coisas, mas sua voz não emitia som algum. Ele não conseguia ouvi-la, e se desesperava. E foi aí que ele percebeu. O silêncio, que ele tanto buscava nas pessoas quando queria impor sua opinião, agora o acompanhava definitivamente. Ela, notando o insucesso em argumentar, tomou seu rumo. Ele foi para casa, desolado. Ligou o rádio e os sons saíram normalmente. O mesmo ocorria com a TV. Não estava surdo, portanto. Então, por que não ouvira o que ela dizia? Ligou para a casa da sogra. O telefone mudo. Uma passada no antigo trabalho, a pretexto de rever os companheiros. Os ex-colegas o trataram com cordialidade, mas ele, transtornado, não ouvia nada do que diziam. O bar continuava fechado, mas ele encontrou na rua um dos seus debatedores dos tempos em que era empolgado com as conversas políticas. O homem, aparentemente transtornado, parecia berrar. Mas ele não ouvia nada. Desviou do homem furioso, foi embora. Achou que era hora de tomar um outro rumo. Procurou trabalho na construção civil, logo encontrou. Começou como ajudante, mas logo deu um jeito de arranjar uma vaga como operador de britadeira. E não reclamou, mesmo exposto ao barulho de cerca de 120 decibéis. Tudo para escapar do silêncio, o qual não podia mais suportar.
Seu Vieira era o encarregado da produção. Ele tinha um caderninho, em que anotava todas as infrações dos empregados. Seu Vieira nunca dava advertência, verbal ou escrita. Mas anotava no caderninho. Um dia, alguém poderia pegar o caderninho dele e escrever a história daquela fábrica.
Em casa era a mesma coisa. Josué discutia com a Lavínia, morena bonita que ele conheceu na quermesse da cidade e em menos de um mês já estava na vida dele, como esposa e empregada. Lavínia era uma lutadora, sem saber. As olheiras tiravam um pouco da cara de menina, dezenove anos ainda. E era sempre assim. Josué chegava, perguntava da janta, reclamava. Dizia que ela não fazia nada direito. E ela se calava. Baixava os olhos e nada dizia. Isso para ele era uma vitória. “Quem cala, consente”, não era assim o ditado? Durante o dia, enquanto Josué trabalhava, Lavínia chorava. Um pouco antes de ele chegar, lavava o rosto e fingia normalidade.
E Josué continuava sentindo prazer em silenciar as pessoas. No bar, ele impunha sua opinião. Ferrenho defensor do regime militar, ele achava que só uma nova ditadura poderia consertar o país. E ai de quem discordasse! Ele levantava o tom de voz, falava até se cansarem de discutir, saía do bar na hora de fechar, com um ar vitorioso.
O que ele não sabia é que o silêncio das pessoas não era uma admissão de derrota. Era desistência.
Na segunda-feira, Josué chegou ao trabalho e foi procurar o seu Vieira, pra saber sobre o serviço: “E aí, seu Vieira, o que nós vamos fazer hoje?”. “Nada, Josué”, disse o encarregado, para surpresa do falador. “Hoje não tenho nada pra você. Mas fica aí, pode ser que apareça uma tarefa”. E o dia todo foi assim. Josué passeava por entre as máquinas, conversava com os outros funcionários, perguntava se precisavam de ajuda. “Não, Josué”, diziam. “Tá tudo certo, não precisa ajudar, não”. E ele não entendia: por que estava ali se não precisavam dele? Tentava engatar uma conversa com alguém, as pessoas se esquivavam, alegavam excesso de trabalho. Ele não entendia: se todo mundo tinha trabalho demais, por que ele estava parado?
No fim de tarde, passou no bar. Fechado. “Que estranho... o seu Pedro nunca fecha tão cedo... será que aconteceu alguma coisa?”. Resolveu ir para casa. “Tomara que a Lavínia já tenha feito a janta. Tô com fome”.
Ao entrar, estranhou a ausência do som do rádio, que a moça sempre deixava ligado, e que ele sempre desligava com um xingamento, uma reclamação pelo barulho. Chamou-a pelo nome. Nada. Olhou por todos os cantos. Ninguém. Ah, mas ela ia ver quando chegasse. Onde já se viu, sair assim sem avisar? Mas ela não chegava. Foi passando a noite, e nada. Amanhã ela ia ver, ia buscá-la casa da mãe, a puxaria pelos cabelos. E dormiu, no sofá mesmo, cansado de esperar e cansado do silêncio que imperava. Não tinha ninguém com quem reclamar.
Acordou atrasado, saiu correndo para o trabalho, ainda pensando na mulher, sem saber o que deu nela pra desaparecer assim. Foi recebido na porta, não pelo seu Vieira, e sim pelo Lima, do Pessoal. “Josué, venha comigo até o escritório”.
Lá, o Lima entregou um papel a ele. “Não precisamos mais do seu serviço”, disse o funcionário. No papel constava “demissão sem justa causa”. Josué pensou em perguntar a razão, mas achou melhor ficar calado. Eles não precisavam explicar.
Foi para casa. Tudo o que ele queria agora era encontrar com a doce Lavínia, abraçá-la e dizer tudo o que sentia. Ligou o radinho dela, mas faltava algo ali. Aquelas vozes não eram as mesmas sem ela. Ele sabia que ela não ia mais voltar. Telefonou para a casa da mãe dela, mas ela não estava lá. A mãe não deixou claro se sabia ou não do paradeiro da filha. “Você fala demais, Josué!”, disse a velha. Ele desligou o telefone sem se despedir, para não ter que concordar com a sogra.
Meses se passaram. Josué passava a maior parte do tempo em casa. O bar do seu Pedro nunca mais abriu, e ele nunca soube por que. Um bico aqui e outro ali, geralmente um trabalho pesado, bruto. Ele mesmo impunha a si próprio um ritmo acelerado. Não conversava com ninguém, nem mesmo consigo próprio. Na hora do almoço, se afastava, mal comia. Não puxava papo com quem quer que fosse. Monossilábico, fazia o que mandavam e pronto.
E foi na volta de um desses trabalhos que se deu o encontro. Ela vinha pela calçada, com um vestido chique, maquiagem, cabelo arrumado. Bem diferente, sem as olheiras que tinha quando moravam juntos. Ele correu até bem perto dela, quis abraçá-la, beijá-la e perguntar por que ela fugiu. Não sabia se sorria ou se chorava, se brigava com ela ou se ajoelhava aos seus pés. Queria contar a ela tudo o que passou neste tempo em que ficou longe dela, pedir que ela voltasse. Ela olhou para ele e disse algumas coisas, mas sua voz não emitia som algum. Ele não conseguia ouvi-la, e se desesperava. E foi aí que ele percebeu. O silêncio, que ele tanto buscava nas pessoas quando queria impor sua opinião, agora o acompanhava definitivamente. Ela, notando o insucesso em argumentar, tomou seu rumo. Ele foi para casa, desolado. Ligou o rádio e os sons saíram normalmente. O mesmo ocorria com a TV. Não estava surdo, portanto. Então, por que não ouvira o que ela dizia? Ligou para a casa da sogra. O telefone mudo. Uma passada no antigo trabalho, a pretexto de rever os companheiros. Os ex-colegas o trataram com cordialidade, mas ele, transtornado, não ouvia nada do que diziam. O bar continuava fechado, mas ele encontrou na rua um dos seus debatedores dos tempos em que era empolgado com as conversas políticas. O homem, aparentemente transtornado, parecia berrar. Mas ele não ouvia nada. Desviou do homem furioso, foi embora. Achou que era hora de tomar um outro rumo. Procurou trabalho na construção civil, logo encontrou. Começou como ajudante, mas logo deu um jeito de arranjar uma vaga como operador de britadeira. E não reclamou, mesmo exposto ao barulho de cerca de 120 decibéis. Tudo para escapar do silêncio, o qual não podia mais suportar.