terça-feira, 23 de junho de 2009

Nada mais, nunca mais...

O diagnóstico de depressão parecia incrivelmente leve em sua mão. Parecia que estava lendo algo dirigido a outrem, na verdade, a ninguém específico. Parecia estar lendo um diagnóstico fictício, de um personagem fictício, de algum livro de ficção ruim. Muito ruim. Sorriu amarelo para o psiquiatra e esperou ele entregar a receita. Juntou os dois papéis na carteira, apertou a mão do dr. e saiu. Estava se sentindo incomodada por estar aceitando aquilo tão bem. Uma sensação estranha, como se já tivesse certeza de seu estado, e do que aconteceria dali pra frente. Deixou o prédio tentando acomodar esse incômodo. A rua estava impressionantemente limpa e o sol de inverno lançava uma luz aconchegante sobre tudo. Ela não percebeu isso, estava deprimida oras, não tinha obrigação de perceber coisas sutis assim. Passou na padaria e comprou dois pães e um maço de cigarros. No caminho acendeu o primeiro cilindro pensando que deixaria os pães estragar, como fazia há algumas semanas já. Detestava fumar do jeito frenético que estava fumando. Mas fumava, contorcendo os lábios com desgosto. Chegou em casa e demorou a destrancar a porta. Aquilo a deixou angustiada, triste mesmo. Entrou e lançou o pão com displicência sobre a mesa, não sem correr os olhos sobre a lixeira onde os pães de anteontem e ontem foram descartados. Foi para o quarto, ligou o computador e a tv, acendeu outro cigarro. Não deu atenção nem à tv nem ao computador. Apagou o cigarro e se deitou. O travesseiro estava frio, a cama também. Não dormiu, não ia dormir. Nunca dormia mesmo. Seu sono não passava de uma necessidade biológica, não descansava, não relaxava, não levava nada embora. Passou o polegar sobre as unhas roídas. Olhou para o porta retrato, com a foto dos seus pais. Não gostava deles, não naquele momento. Naquele momento não gostava de nada. Eram seis da tarde e ela precisava comer. Se dizia isso como quem se cobra uma dieta na segunda-feira. Levantou da cama. O mundo parecia muito grande fora dali. Preparou a mesa e colocou algo no microondas. Lembrou que tinha retirado o telefone do gancho na noite anterior, simplesmente por retirar. Colocou-o de volta. Tirou o prato do microondas e olhou pra ele com cara de desgosto. Comeu pouco, quase nada. Deixou tudo como estava e se despiu. Foi até o banheiro, e abriu o chuveiro. A água estava quente, seus seios ficaram vermelhos rapidamente. Ela se sentou no chão do banheiro e chorou, chorou muito. Esperava espíritos negros que a levassem embora. Esperava o som de catástrofes e o juízo final. Esperava assaltantes, quedas de aviões, tudo que pudesse terminar com sua vida ali, naquele momento. Não queria ter a responsabilidade por um suicídio, então não se matava. Ficou ali chorando, sob a água quente, sentindo a depressão pesar, independente da leveza do diagnóstico no papel. Não seria feliz, nunca. Sabia disso. Se sentia má, ofensiva, doente e culpada. Não era nada mais que uma suicida incapaz de se matar e com os seios vermelhos pela água quente. Não era nada mais, sem ironia, sem nada no meio...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Você é o que você come...

poster de Cannibal Holocaust (clique na imagem para ampliar)
Capas do Cannibal Corpse (clique na figura para ampliar)

pães no formato de pés necrozados


Tudo bem, provavelmente não poderia existir um título mais clichê para um texto que envolve de alguma forma canibalismo. Mas o tema de hoje pode ser tudo, menos sutil. É justamente na falta de sutileza que ele pretende sobreviver e encontrar adeptos. Não estou falando do canibalismo em si, mas de uma espécie de arte que podemos chamar de "arte canibal". De fato, o mal e a violência não são temas novos dentro da arte. Como a arte primitiva tinha uma forte inspiração nas dinvidades adoradas por aqueles povos, sempre havia algo de cruel e assassino, porque, ao contrário da maioria das religiões monoteístas, existiam também deuses cruéis e assassinos. Então isso não é uma novidade. Mas existe algo de terrivelmente inovador no tipo de arte que irei mencionar aqui: um desejo obcecado pelo mais extremo realismo. O importante é que o que esteja sendo representado o seja com a maior carga de verdade possível. Um caso emblemático é o do artista/confeiteiro Kittwat Unarrom que esculpe pães e bolos como partes do corpo humano. Tudo com um realismo impressionante, representando a textura da pele, a cor do sangue, tudo. Algumas peças tem a forma de órgãos ou membros deformados ou necrosados. Essas "delícias" são vendidas a preço de ouro, e muitos compradores fazem questão de devorar suas relíquias para apreciação pública.

Na música não existe exemplo melhor que a banda de metal Cannibal Corpse. É evidente que o canibalismo aqui não está presente no nome apenas. As letras da banda tratam com uma constância até monótona de atos necrofágicos, tudo carregado com uma dose imensa de um erotismo perverso. Desde um "vício por pele vaginal" (addicted to vaginal skin) até atos de vilipêndio explícito a cadáver (Sever the limbs/ DecapitateYank out the teeth/ Then masturbate/ Pounding the face/ Ejaculate, diz a letra de Dismembered and molested) a obra do Cannibal Corpse é recheada de momentos não recomendáveis para a maioria das pessoas. As capas são um insulto à parte, retratando cenas de morte e canibalismo de forma impressionante.

Mas poucas coisas superam o festim macabro de Cannibal Holocaust. Esse filme italiano de 1979, dirigido por Ruggero Deodato é considerado o mais extremo filme de horror já produzido. Ao invés de monstros e fantasmas, Deodato se utilizou de tribos indígenas canibais, ao invés de lugares escuros e abandonados, a selva amazônica durante o mais brilhante dos dias. Os efeitos são tão realistas que o diretor foi preso após a premiere do filme, acusado de realizar um snuff movie, filme em que os atores são realmente mortos durante a gravação. Somente após apresentar os atores vivos e bem as acusações foram retiradas. Depois de Cannibal Holocaust a carreira de Deodato acabou. Conseguiu somente alguns filmes para a tv e nada mais. O filme se tornou um cult e muito de seu estilo foi copiado por produções posteriores. A Bruxa de Blair é um exemplo. O filme de Deodato foi o primeiro a trabalhar com aquele clima de documentário. O mais ofensivo do filme, em verdade, são as cenas em que animais reais são mortos. Um porco do mato, uma cobra, uma aranha, um gambá, um macaco de cheiro, e na cena mais horrenda de todas, uma tartaruga que é decaptada e decepada enquanto seus membros continuam a se mover para no final do sacrifício um dos personagens brincar com as vísceras da mesma. Seguem-se terríveis cenas de estupro, empalamento ritual, morte por lapidação, aborto forçado e, claro, canibalismo. O filme se utiliza de milhões de clichês sobre o certo e o errado e mais um sem número de informações equivocadas sobre as tribos nativas da amazônia. Mas, como foi dito no início, sua pretensão não é ser sutil.

E é aí que está o centro do problema. O nível de realismo de cannibal holocaust, contendo inclusive mortes reais de animais, é realmente necessário? Até que ponto a arte pode chegar? Podemos mesmo dizer que aqui há arte? De fato, o problema real de cannibal holocaust não é ser um filme extremamente violento. O problema é o realismo tremendo com que tudo é feito, forçando os limites entre realidade e representação. Pense bem, você compra um ingresso para assistir a uma peça de teatro, chega lá, as cortinas se abrem, e os atores no palco não fazem nada além de imitar, da forma mais real possível, o comportamento de pessoas reais, em suas vidas cotidianas. Seria isso arte? Por mais que uma concepção única de arte seja impossível arrisco-me a dizer que não. Falta a representação aqui. A representação não é uma mera repetição do real, mas sim uma sublimação simbólica do mesmo. Era o que Artaud fazia com seu teatro da crueldade. Ao invés de colocar uma lua no palco representando a noite, colocava um pássaro com os olhos fechados, uma representação da noite no teatro japonês. Quando a linguagem da representação é rompida, não existe mais arte, existe vida real. E nós não precisamos de duas dela. O que se devora em cannibal holocaust é o simbólico, necessário a toda arte. Isso é tão ofensivo quanto os sacrifícios animais no filme, por mais que muitos não percebam.



terça-feira, 9 de junho de 2009

"Recompondo..."

Ele só queria sentir o que poderia ter do nada, ter de expectativa alguma, de obrigação mínima. Queria provar a sua própria companhia: precisava sair. Decidiu, então, levantar-se naquela manhã triste e trivial e não pensar. Não tomar nota de si, daquele si de todos os dias infelizes. Ele virou-se para o lado e o viu, estava tão medonho, tão íntimo, tão só; não agüentou vê-lo descaradamente compreendido, e relevantemente não enigmático; a vida tinha se transformado em, apenas, uma seqüência de dias iguais. Ele lembrou-se de que eram o que não deveriam ser, que eram contrários e eram contra. Tornaram um ao outro um casal comum, um casal chato, sem graça, sem particularidades, sem desbravamentos. Ele não mais suportava. Vestiu-se apressadamente, como de costume, e pôs-se a cantarolar algo indecifrável. Foi até a cozinha, preparou o café, como de costume, colocou os pães, o suco, o bule de café, o bolo, as xícaras, como de costume, sobre a mesa. Deu um gole a seco no café forte, e saiu.

Naquela manhã ele fez o mesmo trajeto de todos os dias, mas não percebeu nada ao seu redor. Ele não percebeu a menina que explodia em alegria brincando com um filhote de cachorro na porta de casa, não percebeu o cego que o fez parar antes que uma bicicleta o atingisse, não reparou no jornaleiro que anunciava uma nova contratação de um clube qualquer de São Paulo. Ele não percebeu que o ônibus estava lotado, que as pessoas estavam com aquela cara de sempre: a cara dele era a expressão de todos. Desceu do ônibus e, finalmente, chegou ao serviço; quando olhou para a entrada, pensou: “Eu poderia não ter vindo para cá hoje. Eu poderia ter entrado em qualquer outro ônibus e ido para algum lugar que me fizesse lembrar o caminho.”. E como se não houvesse mais tempo para isto, ele entrou no prédio. Cumprimentou fria e equivocadamente seus bastardos colegas de infelicidade. Ele desistira, outra vez naquele dia, de abandonar os reflexos do fracasso. Ele foi novamente apenas o ‘Ele’ que ele não agüentava mais. Naquele dia ele desistiu.

Na volta pra casa, para aliviar a própria consciência dos pensamentos francos e honestos, passou em uma adega e escolheu um vinho. Passou em uma livraria e escolheu um livro. Naquela noite eles se conheceriam, eles beberiam, leriam um para o outros, e desabafariam o peito em segredos presos na ponta da língua.

Quando abriu a porta de casa e entrou, sentiu algo estranho. Não havia cheiro de ‘banho tomado’. A casa estava vazia. Foi até o quarto e viu que somente as suas coisas estavam ali, e viu que todas as suas coisas estavam arrumadas, como se jamais tivessem, ainda que se conhecessem tão bem, misturado nada de suas vidas. Como se nunca tivessem dividido uma gaveta, uma estante, uma prateleira, um caderno: eles não se uniram, nunca. E em seu rosto lágrimas rolaram, rolaram numa desordem grata, num concerto de gratidão. Ele estava sozinho, e não precisara sujar-se com o fim.

Chegando à cozinha encontrou um envelope, ficou irritado, pois aquela carta distorcia todo o ambiente, era algo que não queria que estivesse ali, abriu-o e leu:


“Sabe o que é acordar todos os dias e sentir que estás apenas se levantando, ou que esperas, apenas, que chegue a noite para que possa, se Deus quiser, desperdiçá-la dormindo -acontecimento raro. Entretanto, mesmo que rasgue a noite em pensamentos lúcidos, ela não está lá, você não está lá. Nunca se vê, nunca a nota... Nunca ME nota. Triste e bela a Noite, apenas calça as sandálias, e desfila pelo corredor. Só em casa, trancada, a Noite pode exibir-se. Você esqueceu, desaprendeu a vê-la: ela não interessa, eu não interesso. E para você, então só resta fechar os olhos e adormecer, entretanto, você é muito fraco para sonhar, para criar. Está apenas mais uma vez esperando algo, esperando acordar para adormecer outra vez.
Eu não suporto mais isto.

O amei como talvez eu não tenha imaginado quando nos conhecemos. Ainda és o que me dói no peito, e o que me tarda da vida. Não me quero com você mais.

Daquele que jamais o quererá outra vez. Henrique.

E foi com estas palavras que ele agradeceu não ter tomado o rumo, mais cedo, de outro caminho. Que agradeceu ter ido ao trabalho, e não desviado a rota de costume. No entanto, algo o assombrava as idéias: “como seria a vida de Henrique, como ele se faria depois dali? Será que os novos caminhos dele o farão lembrar-se sempre dos trajetos?”. Mas como de costume, deixou-se levar pela cômoda preguiça cômoda e caiu no sofá. E assim, sentado no sofá com seu vinho, e seu livro ele recompôs seu futuro. Mas não havia nada lá. Não haveria nada de novo pela frente. Ele não seria capaz de tentar nada. O nada seria sempre sua mais intensa busca, seu mais intenso desejo e prazer. O nada era a conquista do fracasso.