sexta-feira, 24 de setembro de 2010

As crônicas de ninguém - volume 2

Continuando a série iniciada na semana anterior, aqui está a versão criada pelo companheiro Ramon.
Perfeitamente...

por Ramon Mapa

- Comece de novo.

- Mas por quê? Pra mim tava tudo certo!

- Não, é melhor recomeçar, você deu uma vacilada logo no início.

- Certo, tudo bem, você é quem manda. Mas eu não percebi nenhuma vacilada.

E ele não estava mentindo quando disse que não percebia nada de errado. Refez todo o processo, todo o caminho, todas as proposições, hipóteses, problemas e métodos, mas o resultado insistia em ser o mesmo. Já era o terceiro mês, e, se não fosse só trabalho aquilo poderia ser visto como uma obsessão. No fim, não era tão diferente da rotina que sempre levara, salvo o fato de que ele sabia que em alguma parte de tudo aquilo ele estava errando, mesmo que não percebesse onde. Não precisava perguntar aos seus superiores se o trabalho precisava ser refeito, como o processo era sempre o mesmo, já sabia disso. E sabia também que não havia outro modo daquilo ser feito, então, refazia. No quarto mês os dedos ficaram nodosos e amarelos de fumar um cigarro atrás do outro enquanto trabalhava. Precisava repetir o processo original em todos os seus detalhes, cada móvel numa determinada posição, cada quadro torto do jeito que estava naquele dia. No quinto mês começou a se preocupar com o tempo em que gastava realizando aquele trabalho. Cronometrar teria se tornado outra obsessão se um cronômetro não afetasse o cenário original. Mas uma coisa lhe preocupava: porque não vinham dizer que seu trabalho ainda estava errado? Porque não apontavam e reapontavam a vacilada inicial que dera início a tudo aquilo? No fundo sabia que aquele diálogo com o patrão havia disparado um gatilho oculto, que revelava um transtorno, uma perturbação, uma obsessão pela repetição constante e fiel daquele dia, do dia em que falhou. No fundo sabia que sempre alimentara uma vontade inconfessável de errar, vontade essa que a barba bem feita e a gravata sempre novinha não deixavam aparecer. Sabia que soterrava suas imperfeições e que um dia elas sairiam. O fato de terem aparecido como uma doença só tornou tudo melhor, agora sim ele podia dizer que vacilava, que errava. Agora sim ele podia se assumir falível. Perfeitamente imperfeito, todos os dias.

4 comentários:

  1. Perturbado mesmo fiquei eu, ao perceber tanta semelhança com meu dia a dia! Às vezes a gente se pega contestando a razão de uma atividade que poderia ser feita com muito mais tranquilidade, se não houvesse tanta pressão por um "acerto", que às vezes é irrelevante. E ficamos aqui, promovendo competições corporativas, guerras entre pessoas da mesma organização, prêmios e punições, sem se lembrar de fazer o mais simples.

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  2. e erro formalizado libertou, né?
    é um cenário bem empresarial, mesmo. mas, fico pensando... é só isso? a organização imita a sociedade ou a sociedade imita a organização? porque as relações trabalhistas e todas as regras em nome dos negócios são tão apropriadas pra explicar a vida! a sensação que temos é a de que existe um fantasma na empresa, né? e não é o chefe, não é o proprietário. é uma onipotência que não enxergamos e está sempre nos vigiando e então precisamos fazer mais e mais e mais. o fantasma não pode nos pegar errando, colocando o nome daquele projeto na lama ou em risco. mas não é assim na vida tb? não temos medo o tempo todo como se houvesse algo que nos vigiasse incansavelmente? então criamos uma competição silenciosa e tensa com o mundo, mas não temos ideia do que fazer ao começar de novo. porque a gente se perde em ser as expectativas do fantasma que nem conhecemos, e ser o que tiver que ser. somos o medo materializado. medo sabe-se lá de quê.
    enfim, acho que viajei demais, haha.

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  3. e mais: é este silêncio, na vida ou na empresa, que dá vida ao fantasma quando quebrado, quando o erro se formaliza; pronto, estamos livres do fantasma.

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  4. A perfeição nos obriga à perfeição. Vivemos para mantê-la... o erro é fatal, mas pode ser o começo da vida.

    Errar e se permitir ao erro é como não ter expectativa nenhuma por ninguém, ao meu ver, o único jeito de se viver...

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