Continuando a série de textos de convidados, nosso chapa Michel Gomes escreveu, a meu convite, um texto especial para nossa Marmita Filosófica. Como de praxe, ele se apresenta no final. Curta aí esta "Cafeteria" que não é café pequeno!
Cafeteria
por Michel Gomes
“Um cappuccino, por favor,” pedi no balcão, e enquanto eu esperava fui me sentar em uma mesa no canto, próxima à grande janela de vidro que tinha sido cuidadosamente limpa pela moça da limpeza. Toda vez que venho aqui, neste estimado café no centro de Maringá, me sinto como o observador dos poemas de Gonçalo Tavares e reparo em cada mesa, em cada pessoa. De frente comigo, por exemplo, o senhor que lê o jornal vem aqui duas vezes por semana, mas na verdade o jornal não lhe interessa, seu real foco é a garçonete de pernas grossas e seios fartos. Ele manuseia o jornal como se fosse uma bíblia, não consegue se conter nas calças. Ou então a jovem, bela jovem, que espera o namorado todos os dias pela manhã para irem à escola. Ela não sabe, mas ela tem em si todos os sonhos do mundo, como uma vez Fernando Pessoa explicou. E tem também toda a capacidade para realizá-los, mas quando descobrir isso será tarde demais, os sonhos terão acabado.
Olho para a próxima mesa, para uma próxima reflexão enquanto o café não vem. Sentada, de costas, uma moça. Cabelos caídos sobre os ombros. “Porra, ela parece a Janaína”, eu penso. Uma antiga namorada, do tempo em que os sonhos ainda estavam por aqui. Mas ela havia ido embora pra São Paulo e terminei com ela porque não queria namorar à distância. Será que ela havia voltado? Será que era ela?
Entro em um devaneio e me imagino caminhando até lá. Sentando na sua frente. Imagino que ela irá se surpreender ao me ver. “Nossa, você não mudou nada” ela vai dizer e eu vou sorrir e dizer que ela está ótima também. Vou falar dos anos que não nos vemos, das coisas que me aconteceram e que agora eu tenho uma coluna no jornal local sobre literatura e música. Vou dizer que sinto muito pelo que fiz e que sei que a magoei. Ela vai dizer que está tudo bem, que já faz tempo. Que agora ela está casada e tem um Atelier na Av. Riachuelo. Que conheceu o cara em São Paulo e por sorte ele foi transferido para Maringá, para gerenciar a agência do BB no centro. Vou perguntar se ela acha que teríamos dado certo, ela vai dizer que talvez, quem sabe, que era outra época e que éramos outras pessoas. Vou dizer que eu não mudei, que sou o mesmo, e ela vai dizer que todas as pessoas mudam, e eu vou saber, ali, naquele momento, que eu sempre estive fadado ao fracasso pessoal. E eu vou chorar por dentro, e vou querer dizer que estou sozinho e infeliz, mas vou me segurar e acabar não dizendo.
Ao sair dos meus pensamentos, me levanto e vou embora sem o meu café e sem saber se era ela, sentada, ali tão perto, lendo “O Amor Nos Tempos do Cólera” do García Marques.
Michel Gomes, de profissão, trabalha desenvolvendo projetos de interiores e móveis. De coração, quer mesmo é escrever enquanto o mundo desaba ao seu redor. Traduzir em palavras o que certas pessoas nem conseguem imaginar.Links do autor:
A ferrugem está na moda
Projeto Polaroid
Esse Michel sabe das coisas! Eu adoro cafeterias, e adoro pensar em como as coisas teriam sido ou em como serão... Logo, o texto me arrebatou. As citações no lugar certo, como obras de arte que ilustram uma parede. Vontade de pegar uma câmera e filmar, quadro a quadro. Cumpriu o papel de me prender e esquecer de tudo enquanto lia e relia. Parabéns Michel! Maravilha de texto!
ResponderExcluirvivo dizendo que sou perita na arte de desistir sem tentar. acho que é excesso de vida que faz isso com a gente, né? pensei no texto como um curta com narrador. lembrou 'sobre café & cigarros'. o trago está escondido.
ResponderExcluirEu, viciado em café, sou frequentador assíduo destes ambientes, e confesso que às vezes fico observando as outras mesas, tentando conjeturar quantas histórias estão nascendo entre as xícaras, açucareiros e guardanapos...
ResponderExcluirQue maravilhoso. Juntou tantas coisas estimadas, café, Fernandito, Gabo e expectativas pré-frustradas. Adorei demais essa crônica cafeinada.
ResponderExcluir