sexta-feira, 6 de maio de 2011

No Requiem

Heidegger dizia que um dos caminhos para uma vida inautêntica é o falatório sem razão. Talvez por acreditar nisso minha participação nesse blog e no twitter tenha diminuído consideravelmente. O mais provável é que meu falatório tenha se dirigido para outras paragens, como minha dissertação de mestrado que finalmente terminei. O fato é que estou afastado daqui há um bom tempo. Mas todo esse falatório sobre a morte de Osama Bin Laden me fez retornar a esse espaço propício para falatórios. Um texto de André Forastieri, que pode ser lido aqui me motivou a isso. Forastieri escreve bem, sempre escreveu, seu uso das palavras é inteligente, concatena ideias que a princípio parecem não combinar com uma facilidade impressionante, mas muitas vezes ele escreve sobre coisas que desconhece totalmente. Política internacional parece ser uma delas. Dizer que o texto sobre o caso Osama é ingênuo é pouco. Essa coletânea de clichês liberais disfarçados de defesa dos direitos humanos beira aquela má-consciência própria dos colonizados, que vivem como os colonizadores, querem as mesmas coisas que eles, mas ainda assim os condenam. Por partes: não era possível julgar Osama Bin Laden. Um tribunal americano que o julgasse teria que seguir regras penais muito restritas, que não abarcam seus atos terroristas. Ademais, às ameaças e chantagens terroristas que pipocariam pelo mundo enquanto o processo se desenrolasse se somaria a pressão internacional de países que teriam razões para julgá-lo também e de países que chamariam a prisão de ilegal, por violar a soberania do Paquistão e não se adequar aos procedimentos internacionalmente reconhecidos. Chamar Bin Laden de criminoso é uma simplificação irresponsável da questão. Como ele transcendia a posição de criminoso, um julgamento seria inútil. Se condenado à morte, o ínterim entre sua prisão e execução só faria crescer a mística ao redor de seu nome, e uma vez executado, sua posição de mártir estaria garantida, muito mais do que a ação fatal dos americanos no último domingo poderia garantir.
O caso aqui não é de escolha, o trágico aqui é que Bin Laden não poderia ter um outro destino. Como um refém dos próprios atos ele era um morto em vida e sabia disso. Um tribunal internacional, como queria Forastieri, não teria competência jurisdicional para julgá-lo, ele não era um criminoso de guerra. Não havia guerra, não havia o confronto entre unidades políticas reconhecidas internacionalmente. Havia a tentativa de extinção de um modus de vida por um lado, e uma reação igualmente violenta do outro. O Partisan, o guerrilheiro, o terrorista, não é um soldado, não responde a nenhuma pátria, não age sob nenhum pálio de legitimidade a não ser a própria crença de que faz o melhor para seu povo, o que impede que seja julgado por um tribunal fundado para lidar com crimes de guerra. O fim das guerras de conquista tradicionais abriu espaço para esse tipo de massacre que Osama impetrou, e a pseudo religião da humanidade cria a ilusão de que um processo, um julgamento e procedimentos públicos seriam a forma ocidental de lidar com isso e resolver o problema ao mesmo tempo que se mostraria superioridade. Falácia purinha, dos que acham que política é mera administração de finanças públicas, que todos merecem o mesmo tratamento, mesmo os que lançam aviões contra civis, que tudo se resolve pela lei e pela constituição. Bom, no mundo real não. Com a vitória do conceito de humanidade, os inimigos que existem se tornam inimigos da humanidade, desumanos, e a eles somente o trato desumano pode ferir. O lado fundamentalista do islã pensa assim, ao tentar desmoralizar o ocidente como "o grande Satã", o lado fundamentalista ocidental também pensa assim, ao identificar esse fundamentalismo como "o Mal", nas palavras do incompetente George W. Bush. O terrorista é "o Mal", não é só um inimigo, e por isso qualquer método contra ele se justificaria, o americano é o "grande Satã", também não é só um inimigo, e a vitória sobre ele passa necessariamente pela humilhação e o massacre. Aqui não cabem processos, direitos e garantias, não é um caso jurídico, é político, e político em seu sentido mais existencial, na sua inevitabilidade. Mais do que necessária, a ação americana contra Osama Bin Laden foi inevitável. Ele pairava sobre as jurisdições e poderes constituídos como um espectro, a lei e a ordem não chegavam até ele. As invasões americanas ao Iraque e ao Afeganistão merecem todo tipo de reprovação, ali, unidades políticas legitimadas (seja da forma que for) por seus povos foram desrespeitadas, mas o caso de Bin Laden não cabe nesse discurso humanista, não cabe na inércia liberal do vamos discutir e criar uma lei para resolver o caso. Como se uma prisão, advogados e um processo pudessem resgatar o resto de inocência que o mundo perdeu entre os escombros das torres gêmeas. Bin Laden tornou o mundo pior, Obama não é um herói com o poder de desfazer isso. Ter ordenado a morte do terrorista é admitir isso, heróis conseguem fazer mais do que é possível, Obama fez o que era possível fazer, nada mais. O trágico é que não havia escolha, não havia caminho, para nenhum dos lados. Beira a irresponsabilidade tentar lidar com esse caso como se fosse um crime de guerra, ou um crime na compreensão geral do termo. Tudo o que ocorreu transcende o direito, somente uma necessidade muito grande de se condenar a ação americana impede que se admita isso. Mas isso é próprio de falatórios, algo que mais pessoas além de mim deveriam tentar evitar.

Um comentário:

  1. Bem-vindo de volta ao bloco dos falastrões, Ramon. Confesso que ainda não formei opinião sobre o caso, mas concordo contigo que o Forasta mandou mal. Um fato: Bin Laden aprisionado serviria como "moeda de troca" para atentados e sequestros.

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