segunda-feira, 25 de julho de 2011

O teatro e seu verdadeiro duplo...


Minha esposa é uma fã incondicional do Teatro Mágico. Eu não. Respeito a vontade e a dedicação deles,mas não vejo nada de especial no que eles fazem. Até já elogiei o resgate da estética do clown e tal, mas ainda assim, não vejo nada demais. Mas casado com uma fã é normal que nas discussões sobre música apareça a trupe de Osasco no assunto. O mais recente ponto de discussão foi o título do próximo álbum, "A Sociedade do Espetáculo". Na hora me veio à cabeça "O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel" e veio o facepalm imediato. Mas depois veio a explicação: o título é retirado da obra "A Sociedade do Espetáculo" de Guy Debord. O facepalm demorou a vir aí,mas veio bem mais forte. O livro de Debord foi escrito na década de 60, e inaugura, em conjunto com Lyotard e outros pensadores europeus a crítica da pós-modernidade. O que une os autores que estudam esse período histórico é uma visão um tanto desolada e pessimista da pós-modernidade. Uma época fluida, impossível de ser caracterizada totalmente, mas que gera a forte convicção de que o projeto da modernidade racionalista falhou e estamos à deriva num mundo sem razão, sem deus ou qualquer outra metanarrativa que marque nossa época. Debord, apoiado em autores como Marx, Bakunin e Lukács, enxerga nessa perda de 'sentido' da pós-modernidade uma abertura para a tal "Sociedade do Espetáculo", em que tudo e todos perdem em interioridade, em sentido, mas ganham e cultuam a exterioridade, o espetacular. De forma macro, Debord mostra como o capitalismo de mercado ocidental se transformou num gigantesco espetáculo, onde a liberdade de comerciar é encenada como a liberdade tout court, onde o único valor do homem é aquele que pode ser medido através de sua contribuição para o espetáculo da produção e do consumo. Do outro lado, a tragédia soviética mostra a espetacularização do Estado. Estruturalmente falido, mas exteriormente assustador e impressionante. O homem, reduzido a peão do Estado. O espetáculo, como substituto do sentido, atrai tudo e todos, numa entropia que mata o religioso, o pensar, e a própria arte. Canetti e Baudrillard mostram como isso atrai as massas, cada vez mais avessas à qualquer mensagem ou sentido. Enquanto a religião se reduz a um espaço de teólogos, padres e especialistas, cada vez mais os rituais religiosos atraem as massas. O significado do ritual pouco importa, importa seu espetáculo. Na sociedade do espetáculo procissões e micaretas tem o mesmo sentido, a mesma função de papéis de pegar-mosca voltados para a massa. O corpo também é tratado de forma espetacular. Do esvaziamento pessoal que leva à hipertrofia do corporal surgem monstruosidades como a obesidade desnutrida dos países capitalistas, epidemia irmã da anorexia que vitima boa parte dos que buscam um corpo nos padrões de beleza. A "Sociedade do Espetáculo" exige modelos magérrimas, mas exige que se coma no Mcdonald's. A medida da arte se torna o próprio espetáculo. De Michael Jackson à Lady Gaga, passando pelo Cirque du Soleil, o que importa é o quão colorido, o quão barulhento e impressionante seja a coisa. Não sei se o Teatro Mágico usou o título do livro para se identificar como uma sociedade do espetáculo ou vão trazer no álbum uma crítica a ela. Mas isso pouco importa, realmente. Inconscientemente entregaram ali o que a mistura de "poesia", circo e música que eles pretendem fazer é em verdade: um espetáculo em que se embala de forma colorida e "poética" a ausência de sentido real. Por isso o que eles fazem funciona bem no palco, ou mesmo em um DVD, mas é sofrível num CD. É monótono, liricamente pretensioso, pobre, incapaz de se sustentar como música. Mas funciona como espetáculo. O ato falho da escolha do título vai passar desapercebido aos fãs, é claro. Tem luzinhas demais, maquiagens demais, cores demais para que eles vejam qualquer coisa. Deviam ter dito que o título se relaciona ao livro do Tolkien mesmo. Soaria pretensioso e engraçado, uma espécie de dinastia parangoleira, mas não entregaria o ouro tão facilmente.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mucama de ninguém

No parco lençol branco com cheiro de laranja, definhava deitada na cama que simbolizava ao mesmo tempo tanta vida, tanta morte, tanta vida-morte. 

Recordava o tempo, o seu tempo, ainda que negasse esta filosofia do próprio crepúsculo e tentava não vivê-lo com a alma. Boca humildemente seca, dedos desgastados pela labuta de tantos tanques de roupas desbotadas ganhando vida com sua força: o sacrifício do próprio corpo exercendo a sua função no mundo. A doença parecia um destino já aguardado, quase que pressentido, desejado. A doença era, como todas as outras coisas em sua vida, o conformismo em relação às suas ações perante a idade. 

Refletia sobre a sogra que cuidou até os últimos segundos do câncer, naquela mesma cama. Refletia sobre o marido que enterrou limpando o sangue com aqueles mesmos lençóis. Refletia sobre os filhos, metade responsáveis por sua desgraça, agentes deste universo de coisas vazias; outra metade perdida durante o parto. Os filhos que criou e que já não via há algum tempo - não os culpava, pois também não amava, embora jamais conseguisse verbalizar esta ausência de sentimento - e os filhos que nasceram mortos, estes amava mais. Refletia também sobre a ironia contida nestes filhos que não nasceram, nem morreram, porém existiram. Quão estúpida é a natureza em subverter-se. Quão insignificante é o que chamam milagre do nascimento, posto que a vida pode passar-se ao contrário, esquecer sua lógica e surpreender com um último suspiro antes do primeiro ser dado. 

Refletia sobre a irmã parteira que morreu segurando sua mão e lhe dera um livro. Livro este que ela, velha e analfabeta, segurava agora, com pouca indulgência nas mãos, mas que gostava de folhear. Sua página preferida esboçava um desenho de mulher parecida com ela: surrada, de olhos sofridos, rosto marcado e que, assim como ela, parecia esperar a morte chegar. Mal sabia que, naquela mesma página, a frase de letras mais escuras, talvez fosse uma premonição que sua alma experiente com certeza leu: "pelo menos não serei mais a mucama de ninguém".