quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Sobretudo à fantasia...


Na foto uma ânfora grega onde Fobos (o deus do medo) cavalga junto com seu pai Ares (o deus da guerra) em batalha).




"Porque o homem tem medo das alturas celestiais e dos abismos do inferno, do lado esquerdo agourento e do espaço infinito, do para sempre e do nunca mais; mas também do escuro e da loucura, dos inimigos e da traição, da censura e da tortura; porque se teme o Mal da natureza e "o que o homem faz ao homen".(...) Porque a natureza é ameaçadora quando não controlada, porque o presente é contigente e o futuro incerto, mito e razão respondem a essa necessidadede vencer a angústia, protegendo a auto-conservação:"do medo o homem presume estar livre quando não houver mais nada de desconhecido"

Olgária Chain Feres Matos em T. W. Adorno: notas biográficas. (furtei essa citação de um comentário a um texto do blog http://www.argumentodeleterio.blogspot.com/ , sei que a propaganda não desculpa o delito, mas...)

Sêneca disse que o objetivo principal do pensamento filosófico é preparar o homem para a morte. A morte como o que limita a vida é, ao mesmo tempo, o que lhe confere seu real e definitivo sentido. Nossa vida só tem sua razão de ser porque ela acaba. Mas ainda tememos a morte. A nossa, a de nossos amigos, parentes...Tememos o seu desconhecido, o seu negrume absoluto, sua desrazão, seu inexplicado. Como o outro lado da moeda da vida, a morte, quando temida, nos leva a temer também viver. O medo de fazer, de arriscar, de tentar, é, em muitos termos, uma espécie de medo da morte. Medo da morte física, real, com seu penhor irresgatável. Medo da morte social, substanciada em olhares venenosos e palavras amargas. No gosto de absinto do sentir-se só. Medo da morte existencial, do não mais se reconhecer, do se perder, do nausear-se à mera percepção de si mesmo.

Tememos nossas mortes, e esquecemos que para morrer antes é preciso viver. Borges escreveu um conto em que uma senhora, preocupada com sua morte que julgava próxima, ia todos os dias ao cemitério cuidar de seu túmulo. Com tal esmero se doou a essa função que sacrificou até os mínimos prazeres de uma vida social. Em pouco tempo todos começaram a dá-la como morta. A morte em vida: o zumbi escatológico que se arrasta pelas telas dos cinemas B desafiando a razão com sua não-morte. O zumbi cinematográfico representa muito mais do que corpos decrépitos buscando por cérebros humanos. Em muitos termos ele representa nossa existência real, nossa gula real e irracional que destrói aos poucos tudo, inclusive a nós mesmos. O sofrimento sempiterno do que não morre mas também não vive, o homem vegetal, entrevado, a pele devorada pela inércia gangrenosa.

O psicopata Jeffrey Dahmer, que inspirou o personagem Hannibal Lecter, tentou lobotomizar algumas de suas vítmas, para transformá-las em zumbis sexuais. Na casa de Dahmer foram encontrados vários pedaços de corpos com os quais ele se masturbava antes de os devorar. Devido ao avançado estado de decomposição de alguns deles a remoção só foi possível com os policiais se utilizando de máscaras de oxigênio. Mas Dahmer não era um homem amedontrador, ao contrário, funcionário de uma fábrica de chocolates, era um cara gentil, novo na vizinhança, recém-chegado da casa onde morava com sua avó. O canibal amável. Não há medo aqui: uma vizinha idosa o agradece todos os dias por ajudá-la a carregar o lixo, seus colegas gostam dele, ele é afável, gentil, asseado, temente a deus. Não há o que se temer...

O medo transcendental, metafísico. O medo maior que o mundo. Que se cristaliza no céu para os bons e no inferno para os maus. O mundo negado e corrompido pelo medo e que termina projetado na alegoria binária do paraíso e da danação. Ao homem bom, temente a deus, o céu, ao mau, destemido (?) o inferno. Jeffrey Dahmer era um canibal amável, temente a deus, todos os presidentes republicanos eram tementes a deus, assim como os membros da Ku Klux Klan. O deus na cruz, pregado, pregando em nossas mentes a morte de deus, nosso assassinato. Deus, o credor que perdoa a nós, os devedores, eternizando nossa dívida com o verniz mau cheiroso da culpa e do medo. Os braços nodosos do Estige. Os trovões são os gritos de deus bravo com o mundo. Córtez soube explorar o medo que os homens sentem dessas bem pensadas ficções. Por ser louro e barbudo, foi identificado com o deus Quetzacoatl e com um punhado de homens pôs de joelhos uma civilização inteira. O medo de deus, o medo do pai, o complexo da castração.

Freud deu um novo sentido a nossos medos. Fobos sai da mitologia grega e se aninha em nossos preconceitos, nossos atos falhos, nossas neuroses diárias. E nosso peito sente explodir com a adrenalina, e as pupilas se dilatam enquanto a respiração acelera e dói e o suor escorre frio. A identidade física do medo, que joga por terra a separação entre corpo e mente tão cara ao ocidente e sua mania de separar tudo em gavetinhas.

O Poltergeist, aquela emanação fantasmagórica que movimenta objetos, abre portas, tem como um dos alvos preferidos gavetas. Melhor aquelas com fotos de familiares que já se foram, ou em que a esposa guarda escondida aquela carta do ex-namorado que não conseguiu esquecer.

O casamento por medo da solidão. O café da manhã juntos. Os filhos inesperados, crescendo e engordando. Cáries e medo do escuro. E não se tocam mais, quase não conversam. Depois de um tempo esconder a mancha de batom no colarinho não é mais uma preocupação. Depois de um tempo dormir no sofá não incomoda mais. Nem perder a hora do jantar. Depois de um tempo ela ocupa um lugar grande demais na cama, na sala de Tevê, nas gavetas do banheiro. Mas ela não está realmente ali. Você olha pra ela e só enxerga o incômodo, maior que o mundo. E, de repente, você se sente só e com uma aliança vagabunda no dedo.

Os dedos que apontaram para o oeste hoje acusam o leste de ser a ameaça. Seja o leste europeu, o leste da caledônia, o Irã, a favela. São sempre eles, sempre os de lá, os do outro lado. Os governos sabem que pra se fazerem necessários é preciso temor: "Tema o inimigo invisível, inodoro, insípido, mal amado, mal alimentado, mal vestido. Somente EU, o seu benevolente líder, posso proteger-te. Está tudo bem, podes voltar a dormir. Não há bicho papão que eu não enfrente. O teu medo do outro te farás me amar. Que língua estranha a deles, que cor estranha a deles, que deus estranho, que comida estranha. Lutamos pela tua liberdade de odiá-los. Por tua liberdade de rir da fé deles. Da tua liberdade de condenar seu cheiro e seu jeito de olhar. Lutamos pela tua liberdade de construir uma fábrica de remédios lá, mesmo sabendo que eles não sentem depressão. Lutamos pela tua liberdade de torná-los tristes e deprimidos, e leprosos, e aidéticos. Até que não precises mais temê-los. E então encontraremos outro demônio, negro e malicioso, sorrindo sorrateiro sob sua cama. Chamaremos sua saliva de veneno, faremos cordas de seus pelos e cabelos. Mas não vamos te machucar. A ideia aqui não é essa. Vamos só mostrar o que fizemos, e diremos que foi aquele demônio devorador de gado. E afagaremos tua cabeça, te apertaremos contra o peito, e diremos que está tudo bem, que não deixaremos ele te fazer mal. Que ele crave seus dentes antes em nossa carne do que na tua. Dormirás abraçado ao travesseiro e abençoando o sono recém-conciliado. Nunca descansarás de verdade, porque tua fragilidade é preciosa pra nós. E olharás através dos olhos dos satélites e ouvirás pelas fibras óticas o que queremos que vejas e o que queremos que ouças. E o medo que sentes agora te acompanhará como um perpétuo calafrio. Mas terás sempre nossos braços, pra proteger-te de conhecer o mundo. De viver. E nos amará como quem ama algo velho e sem graça mas que não pode viver sem. Como quem ama o menos pior. E assim te afastaremos sempre do mal que existe em tua liberdade, e te daremos uma linda bandeira pra que te aqueças. Precisas de nós, e te daremos a mão sempre que quiser. Os inimigos somos fortes. Mas não tenhas medo...


2 comentários:

  1. Como diria Heidegger, sobre o DASEIN:

    "...de nenhum modo é um ente já fixo tal como o sentido comum se representa o ser da pedra ou de uma mesa. Ele se caracteriza por uma relação permanente de instabilidade que mantém em si mesmo. Nunca o ser da existência do homem é coisa acabada; resultado adquirido, sucesso já realizado (salvo quando deixa de ser). O Dasein é um existente cujo ser está sempre posto em jogo. Fundamentalmente ele é um poder-ser. Ele é sempre mais do que é e sua condição de ser-mais depende dele. Ele possui necessariamente a liberdade (...) de superar-se. Esta liberdade necessária não é uma propriedade do Dasein, mas do ser mesmo de sua existência".

    Darei uma mão ao meu Dasein e outra ao mundo e que o desconhecido não me gere medo, mas curiosidade; que a solidão não me gere desespero ou acabe em casamento por ser conveniente, mas que me inspire e projete palavras; que a fé no transcendente não me domine, mas que eu aproveite minha ínfima existência com o real e paupável...

    Delito perdoado pelo belo texto. Parabéns.

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  2. "Você olha pra ela e só enxerga o incômodo, maior que o mundo. E, de repente, você se sente só e com uma aliança vagabunda no dedo."
    'Eu tenho medo de casamentos assim' [2]

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