quinta-feira, 11 de junho de 2009

Você é o que você come...

poster de Cannibal Holocaust (clique na imagem para ampliar)
Capas do Cannibal Corpse (clique na figura para ampliar)

pães no formato de pés necrozados


Tudo bem, provavelmente não poderia existir um título mais clichê para um texto que envolve de alguma forma canibalismo. Mas o tema de hoje pode ser tudo, menos sutil. É justamente na falta de sutileza que ele pretende sobreviver e encontrar adeptos. Não estou falando do canibalismo em si, mas de uma espécie de arte que podemos chamar de "arte canibal". De fato, o mal e a violência não são temas novos dentro da arte. Como a arte primitiva tinha uma forte inspiração nas dinvidades adoradas por aqueles povos, sempre havia algo de cruel e assassino, porque, ao contrário da maioria das religiões monoteístas, existiam também deuses cruéis e assassinos. Então isso não é uma novidade. Mas existe algo de terrivelmente inovador no tipo de arte que irei mencionar aqui: um desejo obcecado pelo mais extremo realismo. O importante é que o que esteja sendo representado o seja com a maior carga de verdade possível. Um caso emblemático é o do artista/confeiteiro Kittwat Unarrom que esculpe pães e bolos como partes do corpo humano. Tudo com um realismo impressionante, representando a textura da pele, a cor do sangue, tudo. Algumas peças tem a forma de órgãos ou membros deformados ou necrosados. Essas "delícias" são vendidas a preço de ouro, e muitos compradores fazem questão de devorar suas relíquias para apreciação pública.

Na música não existe exemplo melhor que a banda de metal Cannibal Corpse. É evidente que o canibalismo aqui não está presente no nome apenas. As letras da banda tratam com uma constância até monótona de atos necrofágicos, tudo carregado com uma dose imensa de um erotismo perverso. Desde um "vício por pele vaginal" (addicted to vaginal skin) até atos de vilipêndio explícito a cadáver (Sever the limbs/ DecapitateYank out the teeth/ Then masturbate/ Pounding the face/ Ejaculate, diz a letra de Dismembered and molested) a obra do Cannibal Corpse é recheada de momentos não recomendáveis para a maioria das pessoas. As capas são um insulto à parte, retratando cenas de morte e canibalismo de forma impressionante.

Mas poucas coisas superam o festim macabro de Cannibal Holocaust. Esse filme italiano de 1979, dirigido por Ruggero Deodato é considerado o mais extremo filme de horror já produzido. Ao invés de monstros e fantasmas, Deodato se utilizou de tribos indígenas canibais, ao invés de lugares escuros e abandonados, a selva amazônica durante o mais brilhante dos dias. Os efeitos são tão realistas que o diretor foi preso após a premiere do filme, acusado de realizar um snuff movie, filme em que os atores são realmente mortos durante a gravação. Somente após apresentar os atores vivos e bem as acusações foram retiradas. Depois de Cannibal Holocaust a carreira de Deodato acabou. Conseguiu somente alguns filmes para a tv e nada mais. O filme se tornou um cult e muito de seu estilo foi copiado por produções posteriores. A Bruxa de Blair é um exemplo. O filme de Deodato foi o primeiro a trabalhar com aquele clima de documentário. O mais ofensivo do filme, em verdade, são as cenas em que animais reais são mortos. Um porco do mato, uma cobra, uma aranha, um gambá, um macaco de cheiro, e na cena mais horrenda de todas, uma tartaruga que é decaptada e decepada enquanto seus membros continuam a se mover para no final do sacrifício um dos personagens brincar com as vísceras da mesma. Seguem-se terríveis cenas de estupro, empalamento ritual, morte por lapidação, aborto forçado e, claro, canibalismo. O filme se utiliza de milhões de clichês sobre o certo e o errado e mais um sem número de informações equivocadas sobre as tribos nativas da amazônia. Mas, como foi dito no início, sua pretensão não é ser sutil.

E é aí que está o centro do problema. O nível de realismo de cannibal holocaust, contendo inclusive mortes reais de animais, é realmente necessário? Até que ponto a arte pode chegar? Podemos mesmo dizer que aqui há arte? De fato, o problema real de cannibal holocaust não é ser um filme extremamente violento. O problema é o realismo tremendo com que tudo é feito, forçando os limites entre realidade e representação. Pense bem, você compra um ingresso para assistir a uma peça de teatro, chega lá, as cortinas se abrem, e os atores no palco não fazem nada além de imitar, da forma mais real possível, o comportamento de pessoas reais, em suas vidas cotidianas. Seria isso arte? Por mais que uma concepção única de arte seja impossível arrisco-me a dizer que não. Falta a representação aqui. A representação não é uma mera repetição do real, mas sim uma sublimação simbólica do mesmo. Era o que Artaud fazia com seu teatro da crueldade. Ao invés de colocar uma lua no palco representando a noite, colocava um pássaro com os olhos fechados, uma representação da noite no teatro japonês. Quando a linguagem da representação é rompida, não existe mais arte, existe vida real. E nós não precisamos de duas dela. O que se devora em cannibal holocaust é o simbólico, necessário a toda arte. Isso é tão ofensivo quanto os sacrifícios animais no filme, por mais que muitos não percebam.



2 comentários:

  1. Kra muito interessante esse post pois mexe com as pessoas q se dizem fãs da arte cinematografica....Na minha opnião todo arte tem seus limites, aliás tudo na vida tem seus limites (talvez o ser-humano não tenha).

    ResponderExcluir
  2. Acho que essa representação pesada é uma forma de simbologia mesmo, ou até certa demasia na representação para colocar em voga o que querem colocar em voga. Acho melhor dizer: auxese,hipérbole! Um exagero intencional, sensibiliza o mais insensivel, mas não sei se a intenção é sensibilizar, hehe

    Algo que muito tem a ver com o post: Literatura Contemporânea. Um escritor pouco famoso, brasileiro, caracteriza essa escola como "Escola Urbana": tratam de temas mórbidos, chocantes, ou monótonos, que mostram o vazio humano. Tipo Mersault, de O Estrangeiro! É arte, mas cansa, né? A arte pode ser TUDO, menos previsível! (texto sobre a "escola urbana": http://www.sobresites.com/alexcastro/artigos/urbana1.htm )

    Abraço, texto legal.

    ResponderExcluir