sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Reflexo do terror

Mulher de meia idade, cabelos grisalhos e um vestido habitual cinza andando pelas ruas. Deserta de si e dos outros. Não era necessário descrevê-la assim, pois escondia a idade física envolvendo-se em cotidianos que a denunciavam e forçava esta falsa segurança do saber no tom autoritário que as cores de sua roupa traduziam. Usava um véu invisível na vergonha de declarar sua viuvez. Era possível enxergar em seu olhar que era viúva de todos os seus ex-casamentos. Viúva de qualquer emoção. Deixou pra trás todos os resquícios de prazer e felicidade que sentiu em algum momento da vida, dando espaço àquela amargura passiva que a tornava cruel. Uma mulher sem um nome que fosse possível lembrar, mas que deixou marcado seu rosto nos dias de tortura para com aquela criança inofensiva, que mantinha num galpão em espécie de abandono. Ainda que escondesse, era audível e nítido o que conversavam, porque um eco trazia todo aquele segredo para direções confortáveis, observadoras e palpiteiras. A viúva de dedos apontados indicando a direção e empinando o nariz como se soubesse de tudo, e acreditava saber. A menina chorava as feridas que doíam e a mulher a condenava pelos erros, julgava sem piedade e dizia ter compaixão; provava dando ouvidos aos lamentos da pobre criança que gemia seu sangue escorrendo dentro da pele pálida de dor. Havia em sua dor futura toda a certeza, enquanto a velha duvidava da sua, doía no passado e substituía suas perdas por pequenas doses de felicidade ao constatar que a pequena criança também chorava pelos mesmos desprazeres. Foi tomada pela suposta razão ressentida, dominada por um ódio que de tão gigante era irreconhecível. Abraçava a menina carente e dizia: "veja seus vizinhos, você tem vizinhos!" Com os cachos dos cabelos desfeitos pelas lágrimas que grudavam nos fios sem que ela percebesse, a pequena inocente que seguia seu coração, e só por isso tinha dúvidas e medos ao encontrar dificuldades, ao considerar seus vizinhos, deparava-se mais uma vez com a solidão que havia escolhido para si. Precisava ouvir a voz daquela experiente dona para se auto-afirmar e ter certeza das coisas certas a fazer, mas nunca se entendiam. Nunca era possível convencer a idade que, apesar dos seus machucados que a confundiam, sabia que não terminaria igual à velha se seguisse o que era necessário para si. Uma imensidão de palavras que perturbam davam razão a sua incontrolável sede de viver cada segundo de todas aquelas estranhezas que invadiam sua vida sem licença. Entre os lençóis sujos de sangue que ela secava e limpava as feridas, soluçou brandamente. Apesar de toda força e coragem que havia dentro da menina desamparada, ela não sabia disso, e dava esta certeza a cada vez que lamuriava seus sons de cinza para a voz da experiência que encontrava na construção da rua que escolhera como seu refúgio. Por um instante bobo, refletiu e concluiu que nunca chamara pela velha em seus mais profundos desesperos. Ela sempre aparecia por acaso. Acordou, como num pesadelo, apressadamente voltou à construção que nunca acabaram e ela nunca mais teve notícias. Sem querer pisou na poça de água que a chuva havia deixado de lembrança e olhou de súbito, seu reflexo na água não poderia ser mais monstruoso e fazer doer tanto de uma forma tão mais intensa que todas as suas anteriores feridas, todas juntas. O reflexo era o juíz de sua sentença e seu maior pecado era ter se condenado ao próprio inferno de si mesma. A imagem que aparecia acabava de ficar viúva mais uma vez, apesar de ainda não saber disso. Disparou no impulso de seus passos largos e correu. Correu o mais rápido que pôde. Correu rumo ao nada, ao desconhecido. Correu até seus pés sumirem no tempo e ela não mais enxergar qualquer rastro que reconhecesse aquela revelação. Não aceitava esta verdade mórbida. Não aceitava a ruína de todas as feridas mal-curadas da viúva de emoções que tirava dela a maior revolução de sua vida: seu pacto com o silêncio e a solidão apropriada - sua liberdade. A menina agora tinha asas que nenhuma viúva cinza poderia alcançar e alçava vôo a partir de agora sem nenhuma resposta. Quando sua dor foi substituída por um alívio, a menina que encontrava-se perdida e cheia de dúvidas, tirou os traços tristes do olhar, sorriu da própria ironia e sussurrou ao vento: - "melhor assim..."

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