Era um cortiço, quartos amontoados, vidas misturadas, sonhos esquecidos. Sentada num canto barulhento de meu quarto, refugiava-me na internet, com meus amigos mudos. Conversávamos e riamos sobre vontades secretas, e nossa ‘pseudo-esquizofrenia’, sabe, sobre nossas vidas paralelas. Quando, de repente, vejo uma pequena mão empunhando uma arma, e entrava pela imensa janela de meu quarto (posta para economizar tijolos e cimento, talvez). Desespero-me: era o meu vizinho de 12 anos (nunca o achei um garoto muito normal, mas ele nunca me importara... até aquele dia).
Ele bradava palavrões que eu (uma amante do sentido poético das obscenidades) não ousava, jamais, pronunciar. Dizia-nos a todos que mataria... mataria... mataria. O mandei calar a boca, claro, não dei importância alguma àquela cena. Como eu pude não dar importância àquele menino de 12 anos e sua arma em punhos? Coisas da pobreza, coisa do acostumar-se aos lances e situações estranhas, porque não dizer, bizarras da vida.
O tinha no msn (O que seria de nós que não sabemos viver com o mundo ‘físico’ sem o msn? Ou o que seria de nós que não suportamos olhos mentirosos, e bocas trêmulas: vozes honestas?), e pedi que ele parasse com aquilo, pois eu não agüentava mais gritaria, e já me era suficiente um bando de moleques jogando, ao longe, futebol. Ele não me respondera, e também não me incomodara. Mas aquela dupla (mente e arma) insistia em não me dar paz.
Entrara por minha janela, outra vez (pelo destino, talvez, éramos vizinhos de barraco), mãos de 12 anos, e arma mortífera (ou seria a mão a arma mortífera?): mas naquele momento me estremeci. Eu que já era acostumada às mais irônicas e estranhas situações, senti um pavor, antes jamais experimentado: queria arrancar da forma como desse a vida daquele garoto, mas o medo não era este, o medo era eu saber que jamais o faria, o medo era medo de ter medo, e por medo não fazer nada. Ele se retirara de meu quarto. Sossego, por instantes.
Uma voz aterrorizante, agora, ecoava por inúmeros cantos daquele meu maldito cortiço. Vozes desesperadas somadas a uma insistente voz debochada, maléfica: o garoto havia dado um tiro. Mas, inexplicavelmente, voltara a invadir meu canto, armado.
Ele olhou para mim, e em silêncio disse-me “não matarei você.”. Mas, como confiar em alguém que lhe diz sem motivos aparentes: “não matarei você.”? Simplesmente não dá. Às vezes a verdade NÃO É O SUFICIENTE. Quando ele se ‘distraiu’ (aquele garoto nunca se distraia), eu corri do meu quarto para fora, o local era um ponto cego para sua arma, sua mão e suas secretas intenções. Corri até meu pai e pedi que telefonasse à polícia, ou faria eu. Ele nada fez.
Desesperada com toda aquela situação, eu não sabia o que fazer. A única reação a que tive chance de expressar foi o sarcástico desespero. Sentei-me ao chão e pus-me a rir de todo aquele acontecimento. Era tudo tão idiota que me era incrédulo acreditar. Parece atestado de burrice ter fé em tudo aquilo. Enfim, me atestei burra: acreditei. Esperei alguns instantes, enquanto ouvia, ainda, toda a movimentação por causa do garoto. Confiante daquela confiança que só é dada aos jovens, retornei ao meu cubículo. Encontrei vozes, gritarias e uma mãe desesperada, mas com tom de voz firme. Alguém precisa iludir-nos que era possível por limites àquele menino.
“Meu filho, saia já dessa sacada (sacada? E lá cubículo, cortiço tem sacada? No máximo uma falta de dinheiro pra completar o telhado.). Você não vê que as pessoas estão com medo? Para o seu quarto... já.”. ‘Medo’, aquela era a palavra que atiçava as vontades do pequeno garoto, ele sentia prazer ao ver o medo, ao senti-lo. Virei-me para ele e lhe disse que saísse de onde estava, que não mais me irritasse com as suas vontades, pois eu nada me interessaria se ele continuasse provocando. Erro fatal. Não devia eu, ter pedido que ele deixasse as ameaças, e as concretizasse.
A polícia não chegava, e ele não largava a arma e posição de ‘atirador de elite’. (Pense bem: um garoto de 12 anos como atirador de elite. É como imaginar um gato filhote ameaçando inúmeras ratazanas... É, mas o gatinho não teria arma. Coisas dos humanos, impossível exemplificar com outro ser.). Resolvi falar novamente com meu pai: “pai, há horas pedi que ligasse para a polícia. Aquele moleque dos infernos está às vésperas de matar alguém, e eu não agüento mais este barulho. Barulho maldito. As pessoas são muito chatas, tudo as fazem pensar que o mundo se mobiliza para olhá-las, para sentir pena.”. E ele me respondeu, acreditem se quiser, que havia ligado para a polícia, mas que estava difícil encontrar um helicóptero, e que só viriam de helicópteros. Ah! Irritei-me muito. Sempre querendo holofotes, todos.
Resolvi eu mesma dar o telefonema, e apressar a polícia, mas não fora preciso. Ela chegara, e ao ouvir os sons muito ‘silenciosos’ (ah! A cautela da polícia foi imprescindível para os desfechos.) da ‘chegada’, o garoto se irritara e dera tiros em algumas pessoas. Com uma mira invejável, acertou a todos a que mirou pra matar. Uns quatro morreram. O garoto tem um dom. (oquei, desculpe-me pela piada. Mas ele tem um dom.). Não fora preciso esforço algum da polícia, o próprio garoto, levado pelas mãos de sua afrontada mãe, se ‘entregou’ à polícia. Ele tinha planos. Sim, Os planos.
Fora levado ao hospital, para exames, pois estava sangrando. Algum outro vizinho, não com o mesmo talento dele, lhe acertara um tiro de leve no braço. Fora posto numa sala para exames. E eu, até agora não entendo, fui junto. Aquele garoto me intrigava. (Não farei uso algum do que fora dito pelas pessoas, com certeza elas pensaram e disseram o mesmo que estás pensando, então poupá-lo-ei de ler o que diz teu próprio julgamento.).
Alguns policiais vigiaram seu quarto. Ninguém podia entrar, ou sair: e isso era toda a segurança. A imprensa estava ansiosa e derretida pelo garoto. Procurava a quem culpar, menos a cabecinha doente daquele moleque: ele já não me dava medo, mas enchia de perguntas minha cabeça: que assassino viraria aquele homenzinho, aquele ‘Oompa Loompa’ do mal? Quem seria o sortudo psiquiatra a entrevistá-lo, a aprofundar naquela mente muito além da nossa? O que será que aquele garoto via?
Não sei o motivo, eles nunca explicam seus fracassos, o ‘Oompa Loompa’ assassino havia fugido do quarto. Passeava agora, um garotinho de 12 anos, pelos corredores do hospital. Mas creio que ele não mataria moribundo. Perda de tempo. Ele queria quem estava ‘vivo’. Estes sim, corriam perigo. Depois de muito procurar daqui, procurar dali... concluíram que o ‘Oompa Loompa’ havia sumido, saído do hospital: ah! Isso seria um banquete para aquela mentezinha iniciada pro mal.
Detive-me em pensar por onde aquele garoto ia. Eu não acreditava que ele houvesse saído do hospital. Fui passear pelos cômodos da casa de saúde. - A polícia não evacuara o prédio, não queria alarmar a imprensa e a sociedade. Na verdade não queria deixar que soubessem que um garoto de doze anos, assassino de quatro pessoas, fugira da segurança policial... daria até manchete de jornal.
Descreverei, agora, o que acontecia num quartinho do hospital que servia como cozinha para os funcionários (por favor, não me perguntem como eu sabia do que se passava, e o motivo de não alertar ninguém sobre o que vi): o garoto estava sendo segurado por dois homens, estavam trancados nesta cozinha. Os homens tentavam injetar um sedativo no ‘Oompa Loompa’, mas, (não conheço os diálogos, pois eu só vi o que acontecera, eu não ouvi.) o garotinho conseguiu com que os homens o soltassem sem, sequer, dar-lhe o sedativo (podia ser político esse prodígio do crime). Quando saiu do quartinho, com uma cara tranqüilamente debochada, trancou os dois homens lá dentro. E, como era um local ‘inacessível’ ao público que freqüentava o hospital (aquilo virara um show), os botijões de gás ficavam expostos, presos numa parede lateral, mas com entradas para a cozinha. E como nada é perfeito, havia um botijão, cuja entrada não entrava em lugar algum, apenas estava dentro do quarto, mas não ligava-se a nada. O garoto esperto, como só a maldade é possível, já o havia reparado, e tramara um ‘ataque’. Ele abriu uma espécie de registro do gás, e este começou a entrar no quarto. Após fazer isso, saiu com cara de criança-não-assassina, pela porta que dava acesso ao lugar permitido a todos: os corredores do hospital.
Os homens que haviam sido presos com o garoto, mas que agora estavam sós, gritavam desesperadamente, pediam por ajuda. Um homem que passara próximo à porta reparou no desespero, e olhou pela janelinha de vidro da porta. Coitado, estava no lugar errado. A cozinha explodiu, e explodiu parte do prédio, parte do hospital. Eu saí desesperada, gritando, pedindo ajuda a todos e qualquer pessoa. Quando vi vários médico deitados na grama, olhando a cena: o prédio em chamas. Ninguém fazia nada, quanto mais eu gritava, menos pareciam me ouvir. E eu pensava “aqueles putos não farão nada?”. Foi quando eu despertei do sonho... ou será que eu estava morta?