Há um poema aqui hoje...eu sei que ele está aqui, não foi embora, apesar dessa aura diáfana me dizer o contrário...ele sopra algo dos cantos, como um demônio doente ou uma criança pequena criando um mundo seu...o nome se perdeu, isso eu sei, e lamento...fugiu pela janela e não fez muita questão de ser furtivo...deixo no ar algum cheiro estranho, almiscarado e doce, mas sem cor, transparente como um cristal...enquanto ao poema ainda vejo marcas de seus passos na poeira alta do chão, dá pra ver que ele anda descalço, mas pisa leve e altivamente...afasto os móveis, encosto o ouvido no chão, confiro os bolsos e sacudo as revistas. Acho restos de sua pele abandonada, se metamorfoseou há poucos dias. Estava grande demais, não cabia em seu antigo couro...teria serpenteado porta afora e eu não percebi?
Vou procurar na cozinha. Na geladeira não está...acho uma canção bem antiga, perdida entre cabeças de alface e queijos diversos...olho pra ela com cara de quem não quer comer aquilo, fecho a porta e continuo minha busca. Percebo uma cadeira fora do lugar: ele esteve aqui. A janela fechada mostra que ele não saiu por ali. Menos mal. Não quero que ele vá, de alguma forma sinto algumas de suas palavras lançadas no ar. Quando respiro fundo ouço melhor. Ouvi "não" e "nada" mais de cinco vezes. Tenho medo de ser um poema niilista, desses que te fazem chorar e esperar na cama. Mas vou procurar mesmo assim, tem que estar em alguma gaveta ou caixa de charutos.
Estranho é que esse não responde quando eu chamo. Pego-me gritando alto. Mas como o título dele foi embora grito palavras soltas. Acho que não vai adiantar. Saco. Se não estiver no banheiro ele se perdeu definitivamente. Mas somente poemas escatológicos gostam de banheiros, mesmo que estejam limpos. Abro a porta desanimado. É, não está lá. Sento-me sobre o sanitário tampado e olho os peixes-palhaço na cortina do banheiro. Que mal gosto, meu deus. De repente ouço um barulho e corro para a sala. A porta da frente aberta, escancarada. Ainda vejo sua silhueta esguia ao longe, e escuto suas últimas palavras. A despeito de todo carinho, cuidado ou coleiras, o poema fugiu. Agora estou mal, não posso perder mais poemas. Sento em frente a uma folha branca e desenho uma pata de dragão. Descanso o lápis sobre a folha, suspiro como um velho desgostoso e me levanto. Parado na janela já nem me lembro mais do poema perdido. Mas ainda sinto o vazio que ele deixou. Acho que por isso, farei um poema.
Maravilhoso...
ResponderExcluirAs vezes eles costumam fugir mesmo..são mais atrevidos que os poetas.
É... os 'poemas' não foram feitos para os que acham que há apenas um significado a encontrar, ou, melhor, não há significado há encontrar. Talvez eles, apenas, nos sejam as palavras que nossa língua não traduz. Não se prende o que precisa ser livre. Ou aquele 'poema' já não faz sentido algum, e quando isso ocorre, é melhor deixar que o ‘poema’ se vá. Não se força sentimentos.
ResponderExcluirAmeeeeeeeeeeeeei que você colocou o poema como um ser independente, de personalidade própria, de vontade própria e ainda imperfeito - ele tb foge quando sente medo, insegurança ou sabe-se-lá-o-quê.
ResponderExcluirEu gosto de pensar que a arte, seja ela qual for, é separada de quem a cria, é uma parte do criador, lógico! Mas uma parte escondida, uma parte que ele próprio desconhece e se surpreende por ser ele a fazê-la.
Sinto que a inspiração nos foge, ou o transformar inspiração em palavras, por algum motivo. Talvez não queiramos encarar, inconscientemente, o que está ali. Talvez não estejamos preparados. Ou simplesmente desconhecemos, somos imaturos ainda para aquilo que veio, mas se foi.
É certo que há um sentimento de frustração. Quando vc sente que tem algo te rondando, te pedindo ajuda e este algo se vai sem transformar-se. A questão é: o algo não quis mostrar-se ou você não quis vê-lo?