A cidade era Praga...bom, na verdade não era Praga, ela é que gostava de pensar que era Praga. Gostava de pensar que dançava tango nas ruas de Praga depois de uma chuva forte...Por que Praga? Tinha que ser Praga, dançar tango em Buenos Aires é muito comum, todo mundo sonha com isso. Pensando em Praga abriu a janela da sala. Sentiu o vento roçando os seios nus e o frio arrepiando os pelos dos braços. Riu do pequeno calafrio e acariciou com o dedo indicador direito o mamilo esquerdo, firme e róseo. Soprou a franja grande demais que insistia em cair sobre os olhos. Com eles procurou a vasilha de comida do gato. Ainda estava cheia. Rasputin não voltara nas últimas duas noites. Teria sido atropelado? Morto por moleques de rua? Não, não havia moleques de rua em Praga. Em Praga não se atropela gatos. Afastou-se da janela depois de contemplar os miosótis que cresciam na praça da frente. Sentou-se na cama, não pensava em se vestir. Na parede da frente viu-se no espelho grande, ainda encostado porque não teve ânimo de pregar. Reparou que ainda era bonita, dessas belezas leves cujas donas sabiamente pouco se importam. Brincou com a franja, fez malabarismo com os dedos. Acho que se masturbou, mas não saberia dizer. No relógio em cima da escrivaninha os ponteiros marcavam nove da manhã. Suspirou com uma preguiça levemente desolada. Entrou no banheiro coçando o braço direito com a mão esquerda. Olhou-se no espelho uma vez mais, apalpou e tocou os mesmo lugares que havia apalpado e tocado na cama. Gostava do banho bem quente, e costumava cantar canções muito antigas, canções que não lembrava onde tinha aprendido. Pensar no banho era algo que gostava muito também. Convesava muito comigo sobre esses pensamentos... bom, conversar não é bem a palavra, eu meio que imaginava o que ela pensava e acreditava no pensamento como se fosse uma verdade divina. Demorou no banho mais do que de costume. Lembrou de canções sobre o sol, sobre praias, luas e gente triste. Enxugou-se com displicência, e depois cheirou a toalha. Tinha cheiro de banho morno e sexo igualmente morno. Não quis pensar no que vestir. Vestiu qualquer coisa, sem roupa de baixo, pegou a bolsa, olhou mais uma vez pra comida que Rasputin não tocara e saiu. Desceu as escadas com a música do banho e a agenda do dia disputando espaço na cabeça. Sentiu cheiro de café vindo do apartamento vizinho, habitado por alguém que não conhecia. Pisou a calçada acostumando os olhos ao sol e o cheiro da praça e dos miosótis a fez sorrir. Sim, era Praga. Se as ruas estivessem molhadas dançaria um tango, mas estavam secas demais quando desceu da calçada e foi atropelada por um carro popular. Ouviu alguns gritos, e sentiu gosto e cheiro de sangue. Chegou a achar irônico como o sangue tinha cheiro de miosótis e café de vizinho. Lembrou que se masturbara mais cedo, lembrou em quem pensava no momento e sentiu vergonha. Sentiu muita dor enquanto lia a marca do pneu perto demais dela e entendeu o que tinha acontecido. Não sabia o que fazer, e por não saber preferiu fechar os olhos e morrer. Na rua as pessoas corriam para todos os lados, como se fugissem da morte que tinha acabado de levar aquela moça sem nome embora. O sol continuava lá, assim como os miosótis e a praça de pouca cor. Ela jazia sob as rodas de um carro popular, ano 99, segundo ou terceiro dono, e nada parecia mudar por conta disso. Ela esqueceu de sonhar uma Praga onde não se atropelassem nem gatos nem seus donos. Ao fim de tudo, não era Praga mesmo. Naquele instante, num apartamento pouco organizado, com um espelho grande encostado, uma toalha que cheirava a sexo morno e que agora não tinha mais dona, um gato chamado Rasputin entrava pela janela. Viu a comida na travessa e ronronou...parecia sorrir....
" (...) e uma vida não altera o cosmo."
ResponderExcluirAlguém sempre mata nossos sonhos.
Penso muito sobre a relevância da vida. Sempre me dou conta de que é quase nada, mas certas vezes parece tão imenso seu valor. Principalmente quando nos deparamos com a nossa fragilidade.
ResponderExcluir