segunda-feira, 30 de março de 2009

"Te peço desculpas, me abraça meu filho."

Ela recebeu uma notícia, uma notícia que poderia arruinar todos os planos não feitos para uma vida, quem sabe, possível. E naquele momento ela odiou tudo quanto existia. Odiou todas as suas amigas, que tinham como problemas notas baixas na faculdade- e ela que nunca conseguira fazer uma faculdade-, ou traição de namorados. Afinal, ela acabara de descobrir que a vida lhe traíra. Sua libido lhe pregara, então, uma peça demente, doentia... Ela estava incrédula. Resolveu caminhar. Tentar dividir com todo e qualquer transeunte o seu atual ódio. Toda a sua ira.

Passando por uma praça -fazia um dia agradável- ela observou os pais que brincavam com seus filhos, os filhos que brincavam com os cachorros, os policiais que caminhavam tranquilamente, e sentiu nojo. Queria gritar, queria dizer que aquilo era errado, que estavam todos cegos. Que se enganavam e enganavam aos filhos. Que escravizavam cachorros e crianças e as chamavam, sem ordem de importância, de meus amores. Sim, para ela a vida estava perdida, ainda que para nascer. Seu estômago embrulhou, ela se contraiu com toda a força de seu ser, segurou o vômito dentro da boca -o vômito era a confirmação da ruína-, e, por fim, fora, outra vez, vencida pelo mesmo algoz. Olhou para o almoço semi-digerido e resolveu que não mais comeria, que não ingeriria alimento que fosse: seria o fim do fim e a volta ao início. E continuou caminhando.
Ela nunca sentira tanta vontade de estar fisicamente sozinha. Queria que Ela fosse apenas Ela e mais ninguém, não queria que nenhum outro alguém estivesse com ela, dentro dela, precisando dela. Sentiu-se novamente enjoada, mas segurou o vômito: ele deveria provar o que amargava em sua garganta. Tudo aquilo era inexplicável e desumano. E perguntava a si mesma -naquela hora ela esquivou-se de Deus- 'Por que eu? Por que eu? O que foi que eu fiz?', e lembrou-se do que havia feito, e lembrou-se que o que ocasionou toda a dor que ela estava sentindo fora querido por ela, tentado por ela: ela era mais que o todo da culpa. De repente, algo mudou, seu coração acelerou... Outra mulher, uma mulher calma e meiga tentava tomar o lugar daquele ‘ela’ ‘fraco’ e ‘cruel’. Ela estava mudando, se transformando... descobrindo outra dela mesma, uma que queria o que estava acontecendo, que desejava aquilo, que via vida e futuro com o motivo de tanto nojo. Lágrimas descompassadas rolaram por seu rosto, sua face se contraia entre risadas e espanto; ela sentiu naquela hora que já não mais era ‘filha’, que, a partir daquelas lágrimas, ela se tornara mãe. Não se arrependeu dos rompantes em romper com o Rebento, apenas sentiu-se confortável com a situação: um filho no ventre aos vinte anos de idade. Um rumo inesperado, mas ela sempre esperou por algo imprevisível, agora era a tradução do seu acaso. E ela tornou-se mãe, não apenas por carregar no ventre uma criança, mas por depois de tê-lo culpado e odiado, vencer o ódio egoísta juvenil, e se superar: agora ela o amava, vencera a si mesma, e era digna de guiar uma criança: suas mãos foram limpas.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Que o horror seja meu túmulo...



"Tremes, carcaça? Tremerias muito mais se soubesse onde te levo..."



Não consigo dizer há quantos dias acordo com as estrelas ardendo no céu sobre mim. O tempo aqui, como em todo lugar terrivelmente real, não faz muito sentido. Também não sei dizer quantas vezes acordei com o mordiscar dos peixes na pele da minha mão, desmazeladamente roçando a água gélida. Preciso me lembrar de atar as mãos antes de dormir. Mas se o fizer, e minha frágil jangada naufragar, irei ao fundo com ela. Mas já sou um náufrago, o que seria para mim um outro naufrágio? O que é para um homem à deriva o girar constante do redemoinho que lhe rouba o rumo? Navego sem norte, e o atracar em uma terra qualquer já não faz mais parte de meus pensamentos ou aspirações.




A fome é tão grande que a dor que ela provoca faz sumir a dor de meus ossos quebrados. Quando foi a última refeição? Há eras eu creio. Um resto de peixe que caiu do céu pela briga de duas gaivotas. Ri da providência divina, lançada do céu com cheiro de peixe carcomido e capaz ainda de atingir-me, eu, um ponto de horror negro no meio do oceano. A sede é de desesperar. Precisei tomar água salgada. Minha urina acabou há alguns dias e por mais revoltante que seja a lembrança de tomá-la, seu gosto parece abençoado quando bebo esse pérfido licor leitoso de água e sal. A desidratação já me provoca delírios. Não foram poucas as vezes que acordei com o bafejar do Leviatã sobre meu rosto ou com o toque escamoso do maldito Netuno.




O dia é um verdadeiro inferno. O calor, a luz cegante do sol refletido nas ondas. As gaivotas que se abatem sobre mim como abutres malditos esperando seu repasto necrofágico, a consciência do isolamento soberano em que me encontro. Sim, o dia é um verdadeiro inferno. A secura das minhas carnes somada ao fustigar do astro maior abriu feridas horríveis em meu dorso. Não gosto de pensar que estou apodrecendo em vida, mas o cheiro gangrenoso que exalo me impede de esquecer tal fato. As tábuas que compõe minha maldita embarcação começam a ter o mesmo destino que minhas carnes. Estão podres, se decompondo depois de tantos dias no mar.




Uma tempestade, ondas enormes, um negro Malestrom que me fita sedutor. Institivamente ato minha perna na madeira deprimente que chamo de mastro com um pedaço da minha calça esfarrapada e espero. O funil se encontra ali, na minha frente. Irá me engolir, irá engolir o mundo todo. E nas suas mandíbulas de glutão eu descansarei. Vou morrer, sem chorar, vou morrer e tudo vai se acabar, como num abraço cálido ou um salto do despenhadeiro. O barulho dentro do redemoinho está além da audição. O choque das águas provoca relâmpagos dentro abismo. Eu rio alto e loucamente, até a garganta doer em toda sua desértica e salgada secura. Olho para a última janela que me revela o céu, e espero pela tonelada de água que me libertará, depois de me prender por tanto tempo. Tudo escurece no abismo e eu ouço um bater tranquilo. Acho que é meu coração.




Acordo...




Vejo paredes de pedra iluminadas por tochas. Estou numa espécie de túnel. Teria eu sobrevivido? Meu sofrimento irá se prolongar? Aonde me econtro? Em qual inferno agora, sátiros endemoniados me torturarão? Passo a mão sobre os olhos, me apoio no chão de madeira e me sento. Na minha frente uma figura toda em negro me encara, como o abismo havia me encarado há poucas horas. De repente percebo sua mão estendida em minha direção, num sinal de cobrança. Não entendo. O que ele quer? O que lhe devo? Então percebo tudo. É Caronte, o barqueiro. O Maelstrom fez seu serviço. Estou morto. Ele está me levando pelo Estige, para o Hades, e está cobrando seu óbolo, seu pagamento. Mas eu não fui velado, não tive meus olhos cerrados por amigos queridos que ornaram minhas órbitas com as moedas do barqueiro. Advinhando meus pensamentos ele recolhe a mão. Dá as costas para mim e diz numa voz não ouvida há eras: "sem pagamento...então acomode-se meu amigo. Temos uma eternidade inteira para navegar..."

Os pólos invertidos*

O rei está nu. E está triste. Cansado. O rei queria ser plebeu. Não sabe o que fazer, não sabe o que pensar. Não tem vontade de baixar decretos, de se deliciar com um banquete, ou de se satisfazer com alguma criada. Não vai declarar guerra a um país vizinho, não vai mandar cobrar taxas extras da população. Um passeio pelo campo, talvez seja disso que ele precisa.


A formiga quer ser cigarra. Cansou-se de carregar grãozinhos de um lado para o outro. Quer sumir. Cantar até explodir, o que parecia tão absurdo, é agora uma idéia aceitável. Mas ela não sabe cantar. Não tem voz. Resolve sair para passear. Escapar da fila de formiguinhas, cada uma com um grãozinho de terra acima da cabeça. E foge. O caminho é um tanto diferente do verde habitual. Bem no alto, quase no topo, a pequena formiga encontra uma grande haste, que no final chega a mais cinco pequenas hastes separadas. Vai até um ponto próximo das hastes menores. É aí que ela sente o cheiro da ameaça.

O rei sente cócegas na mão. Olha para ela e percebe o pequenino inseto se movimentando. Tarde demais para se livrar, sente uma picada.


A formiga não pensa duas vezes antes de cravar as presas no inimigo gigante. No entanto, em uma fração de segundos, percebe uma grande sombra vinda do alto, se aproximando. O tapa é tão forte que a dilacera.

A mão do rei arde. Um fragmento do que foi uma mandíbula está entranhado em sua pele. Ele se senta no chão e chora de dor, pensando na fragilidade do ser humano diante de algumas coisas pequenas da vida.


***
*Nota: tudo bem que não é um texto inédito. Postei anteriormente em outro blog, no ano passado, mas na época ele passou um tanto despercebido, e eu achei que seria uma boa oportunidade de "dar mais uma chance" ao texto. Espero que gostem.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Ao mestre com carinho

Caríssimos, não sei se é do conhecer de todos, mas o tio da caneca, vulgo doutor Márcio Viana, casou-se há poucos dias e esperamos que neste momento esteja na fase mais deliciosa do casamento. Todos os leitores já devem ter percebido que somos tendenciosos, chatos e pseudo-intelectuais; e todos nós (menos o chefe) temos algo muitoooooooo contra o casamento, que não cabe explicar aqui, mas aos que pretendem se casar e gostam do significado: não se sintam ofendidinhos, tá? Não é nada pessoal, e cá entre nós, nossa opinião não é tão relevante assim! Nos últimos dias, véspera do casamento, o chefe teve que "ouvir" várias piadas de mau gosto no momento mais ansioso e nervoso de sua vida; que subentende-se que seus "melhores amigos" deveriam apoiar. Pois é, sacaneamos. [Morrendo de rir] Agora queremos nos redimir, ok? É, minha gente. Abominamos o casamento, mas isso porque em todos os outros matrimônios o noivo não é o Márcio e a noiva não é a Débora.
Tínhamos que dar presente e não demos. Tínhamos que desejar boas coisas e não desejamos. Nem queremos desejar, ok? Chefe querido, continue com os bordões glamourosos que ajudam tantas pessoas a tomarem um rumo em suas vidas, mantenha esta joça aqui ativa para massagearmos nosso ego [disfarçamos frustração com arte]. Que a Débora te aguente a vida toda, afinal, não sabemos o que seria de você caso isso não acontecesse. E que a fanta-laranja da sua caneca na foto do avatar nunca termine. Queríamos dizer coisas bonitinhas, mas resumimos no seguinte texto de quarenta linhas após os dois pontos a seguir: VOCÊ É FODA! Todo mundo imitando o Dinho: Dooooooooooooooooooooo caralhoooooooooooooo! Quem vos fala é a Maísa, que tomou a liberdade de escrever no plural mesmo sem comunicar ninguém, para que fique clara a homogeneidade (odeio esta palavra!) deste blog e o quanto é importante para a pentelha compartilhar este sentimento nobre com vocês. Tio Márcio, te amamos, porra! Vai uma Bohemia aí? =D

terça-feira, 24 de março de 2009

O limite da negação

Há muito tempo Anna não conseguia se entregar a nada, não conseguia seguir os seus projetos, ou gostar do que já criara. As poucas coisas que ainda a agradava estavam expostas nas prateleiras de um bar e nas bibliotecas. E por mais que tentasse ‘tirar’ do pensamento certas idéias, ela não conseguia.

Um amontoado desordeiro de palavras, vez por outra, surgia em sua mente, e desviava todo o curso do dia. Ela passou horas incontáveis lutando contra si, contra aquela ‘idéia fixa’; e não queria ouvi-las, nem escrevê-las... Mas foi em um bar, sentada dentro daquele ambiente onde as verdades nunca se mantêm em segredo, que ela fraquejou. E numa mesa suja de um bar sujo, de uma vida suja Anna esperava incansável por algo, por algum momento, uma chance de mudar, de se vingar, ou de apenas conseguir seguir em frente sem precisar vencer o passado. Abriu sua bolsa velha e rasgada, tirou de dentro dela um caderno onde anotava frases soltas em sua mente e na sua vida –ela dizia que tudo o que há de sincero na vida é dito sem ordem, pois as poucas verdades que aceitamos a ouvir são aquelas que nos obrigam o acaso- e escreveu, sem muita certeza do que ouvia de si para consigo, as seguintes palavras: “Às vezes sinto os meus ossos se arderem, sinto o meu corpo todo num frenesi, numa explosão indiferente a todos os que me observam, a todos os que me ignoram, que ignoram meus sonhos. Num gole intragável de satisfação, faço deste tempo doente meu leito esterilizado de tudo o que não deveria ser; a menos que eu desejasse, com todos os sons que poderia proferir os meus anseios amedrontados pelo pavor de perdê-lo.”. E Ela dá um último gole no conhaque barato, apaga o cigarro no copo, levanta-se cambaleante e vai embora.

Ao cruzar a porta do bar, dá de cara com o mundo, com a rua: a indiferença. Ouve, do som de um carro que passava, “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho.”, mas não prestou atenção ao resto da música, apenas riu de si para consigo um riso debochado, descrente e auto-irônico; arruma a gola amarrotada de sua blusa e segue, acompanhada da solidão. Ambas seguem o mesmo caminho, têm o mesmo destino: um apartamento calmamente escuro. E lá não há ninguém à espera. Apenas livros e bebidas. O amor era, à época, uma tatuagem que ela encobrira, que ela tampara, escondera de si mesma. E a noite seguiu quase que de costume, pois ela percebeu que muitas vezes vencer a si mesmo é se machucar, é dobrar o óbvio necessário e enxergar que muito além da crença da vitória, existe a necessidade de enterrar vivos passado e medo, e decidiu jamais tatuar no seu corpo amor que fosse. E aquilo que pudesse prender ela libertaria: nunca, outra vez, se daria ao que desejasse grades e cadeados.

terça-feira, 17 de março de 2009

À sombra das influências

O caminho da ambição não se esconde. É um escândalo por si só. Hipocritamente ou pelos nossos valores cristãos (que para muitos fazem parte do mesmo jogo), construímos uma barreira quanto ao ato de gostar, satisfazer-se ou querer - planejar a longo ou curto prazo alguma melhora considerável de vida. E esta melhora nem sempre está ligada a capacidade de sobreviver, mas aos prazeres. O fato é que instintivamente estamos aptos a desejar, mas a falta de lógica tem se alastrado em nossas vidas com escolhas duvidosas. Atos tais que se resumem a insanidades, como trabalhar a vida toda num emprego que odiamos para termos o que não precisamos. Uma verdade tola ou bruta há de ser dita, que o termo precisar, como inúmeras outras coisas no universo, é subjetivo. Acontece que, em certa fase ou etapa da vida olhamos para o que temos, queremos ter ou planejamos adquirir em breve, e nos confundimos com a distância que nos move daquilo.
Não sabemos exatamente quando foi que bendizemos obter certas coisas, e então nos descobrimos no caminho destrutivo da ambição. O que é preciso, portanto, limita-se ao necessário pra sobreviver, e então, o que temos depois disso são satisfações (nem sempre próprias) e a escolha cruel ou infeliz de qual preço pagar por esta satisfação. Em dado momento, se não estivermos atentos a nós mesmos, a vida passou e não sabemos exatamente como planejamos e onde foi que tudo deu errado. Assim, insuportavelmente, ter tudo significa ter nada, porque o que seria essencial não está ali diante dos seus olhos e entre as quatro paredes que nos divide do mundo. Sufocamos, sem noção alguma, nosso maior delírio humano: a realização de nossos sonhos. Somos manipulados e encorajados a trilhar o caminho do sucesso, mas há uma estupidez na unanimidade que ignora que as pessoas são diferentes uma das outras, portanto, não há uma fórmula mágica de felicidade. Só que realizar sonhos e ser feliz está tão obviamente ligado, que a frustração de não conseguir nos aprisiona numa utopia de compra e venda do abstrato.
Procuramos nossa realização nas capas de revistas, nos anúncios publicitários, nas receitas de sucesso mais incríveis que lemos e nos frustramos todos os dias com o fracasso, mas voltamos a acreditar. Somos influenciados a entrar neste ciclo e nunca mais sair, sendo parte de uma máfia controlada por interesses que desconhecemos. Um dia desejamos ter um emprego com salário considerável, e então nos colocamos à disposição do mercado, enfrentando filas de vestibulares como animais famintos dispostos a canibalizar, se for o caso. Enfrentamos o que é desumano para conseguir a honra de humanizarmo-nos. Estudamos anos a fio, para um emprego que nem desejamos, de fato. Tudo isso para conquistar a tão sonhada liberdade, que, depois de um bom emprego, um bom nome, um bom status, poderemos usufruir dos benefícios. Mas na maioria das vezes, nunca conseguimos parar de trabalhar e apesar do bom salário a vida se torna cada vez mais cara e o grito de liberdade fica pra depois, outra vida, quem sabe. Sabemos que é assim, mas persistimos. Sabemos como será o fim, mas idelizamos um filme pessoal e acreditamos nele. Não totalmente. Acreditamos cinquenta por cento, pois inconscientemente sabemos exatamente qual será o nosso destino. Infelizmente, quando admitimos a dependência involutiva, e não química, neste caso, ela já está acentuada. Não há mais nada que possamos fazer, porque as consequências são sempre doenças emocionais, infelicidades, suicídios, ou no mínimo, o sentimento de fracasso eterno.
E o mundo está aí para nos reforçar cada vez mais a certeza de que somos sozinhos. Que ao chegar em casa, depois do trabalho, cansado, só o que temos é nosso microondas, nosso canal a cabo e a insônia. Não sei qual a época ideal para questionarmos nossos valores e o que estamos colocando à nossa frente na nossa lista de prioridades. Talvez a pergunta para o jovem que irá prestar vestibular não deva mais ser "o que você quer ser?", talvez a nova questão seja avaliar o que não querem se tornar.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Prolegômenos sobre o amor que não sentimos mais


Há algum tempo atrás escrevi um texto sobre amor. Nele eu iniciava uma pequena investigação sobre a história desse sentimento. Não é um texto acadêmico por isso mesmo não pretende explicar nem demonstrar tudo o que é dito nele. Na verdade era um texto que seria publicado num jornal de Belo Horizonte. Por algum motivo que nunca me foi explicado o jornal preferiu publicar um outro texto meu sobre uma lei estadual que prevê a castração de cães da raça Pit Bull (o texto só não era pior que a lei). Mas, aproveitando que redescobri esse escrito, abandonado, como diria Marx, à crítica roedora dos ratos (no caso, dos vírus de computador), vou publicá-lo aqui. Como ele é um pouco grande peço ao leitor paciência: todo amor tem seu tempo.


Prolegômenos sobre o amor que não sentimos mais


Pensar o amor, hoje, é como escovar a contrapelo o cavalo da história[1]. É contar ao revés o tempo de um mundo que há muito se demitiu de suas promessas de paz e segurança e abriu, sorridente, as portas para a dominação da mais cruel e dura barbárie. Falar do amor hoje é como falar de uma boa cama depois de dormir anos no chão frio. Como um espectro, um fantasma, o que nos atinge é somente sua aura, seu resquício, meio ectoplasma, provocando aquele sentimento de estraneidade e desconforto, como se tivéssemos pisado, inadvertidamente, numa poça de lama.


Em verdade, pensar o amor não é uma atitude filosófica muito comum, apesar de grandes pensadores, de Aristóteles a Lima Vaz terem dedicado parte de sua genialidade a isso. Mas em tempos de tecnicismo exacerbado e frio narcisismo pensar o amor, por mais necessário que seja, não é algo muito visto. O amor romântico, o amor fraternal, o amor cósmico, o amor divino, o amor infantil, o amor. Em suas diversas concepções e variáveis, ele se alimenta e alimenta contextos históricos e sociais muito específicos, ele constrói realidades e pode muito bem desfazê-las.


O amor romântico é, em verdade, um sentimento relativamente novo para o homem ocidental. Surge como uma desculpa para as relações sexuais fora do matrimônio na Idade Média, toleradas devido à necessidade de repovoamento da Europa depois da peste negra. Sem a peste não teríamos o amor romântico, o que, por infame que soe a anedota, não nos permite inferir que o amor é uma peste, nem que o amor é uma doença. Apesar de ter sido considerado assim durante o ultra-romantismo, em que o spleen desolador dos que amavam demais levava à loucura, à embriaguez delirante do absinto, às noites devotadas à lua, a febre do desejo pelo roçar do rosto da amada e a poemas doídos, muitas vezes, artificialmente doídos. Questão de estilo. A tuberculose era o signo, o anátema dos fatalmente apaixonados, que sonhavam com messalinas, donzelas e tabernas que, qual como a ilha barataria em que Sancho é rei, nunca existiram. O amor convertido no sugar terapêutico do pneumotórax, no jejum profano, vez que impenitente, na sacralização da amada.


Werther, o personagem de Goethe, suicida-se devido a um amor impossível. Tal foi o sucesso do livro que centenas (alguns números se referem a milhares) de jovens imitaram o exemplo. Lembro que uma vez, acompanhando uma amiga a um culto espírita (eu me meto em cada uma) li um texto de uma carta supostamente psicografada em que o espírito de Goethe pedia perdão por ter incitado, ainda que sem intenção, a morte de tantos jovens. Bom, mas é próprio fantasiar quando o amor é o assunto.


Numa tarde fria em Ouro Preto eu li Do amor, de Stendhal. Na época me dedicava a ler os autores que influenciaram o estilo de escrever de Nietzsche, e o francês era um dos mais notáveis. Do amor presenteou-me (a função de todo bom livro) com uma das mais belas alegorias sobre o sentimento do amor romântico. Numa passagem o autor descreve o amor como um galho de árvore lançado em uma mina de sal. Com o tempo os pequenos cristais de sal iriam se grudando à madeira, formando uma escultura de cristal, clara, caótica, bela. Com Stendhal aprendi que o amor acrescenta, mas também transforma. Se depois de amar você ainda persiste incólume, em verdade, você não amou. Amor é, e Stendhal sabia, cristalização.[2]


Na Grécia Antiga o amor romântico ainda não existia, e, portanto, um homem amar uma mulher não era algo tão comum quanto hoje. Não que não ocorresse, mas a relação do homem com a mulher era mais uma relação de propriedade do que uma relação de afeto. Alguns filósofos diziam inclusive que o amor verdadeiro só existiria entre homens, uma vez que seriam iguais e dedicados a contemplar as coisas verdadeiras e eternas da existência, enquanto a mulher teria a função de cuidar somente dos negócios[3] familiares e dar filhos ao homem.


Mas ainda assim a cultura grega é recheada de belas histórias de amor. Afrodite, a mais que notória deusa do amor, apesar de ser casada com Ares (Marte para os romanos), teve casos amorosos com diversos outros deuses e homens (o que nos faz pensar, levantando a ficha da moça, se o amor do qual ela era deusa não seria somente o amor carnal, o sexo), entre esses figurava um belo jovem de nome Adônis. Irritado pela traição de sua esposa, Ares resolve se vingar. Transforma-se em um imenso Javali e mata Adônis golpeando-o nos quadris. Afrodite ouve o grito do amado e corre para ajudá-lo, ferindo seus pés na corrida. O sangue da deusa caiu sobre rosas, que até aquele momento eram brancas (não existia até então rosas vermelhas) e se tornaram vermelhas com seu sangue. O sangue vertido por Adônis foi transmutado por Afrodite na anêmona, para que ela não se esquecesse dele. Levado ao Hades, o reino dos mortos, Adônis se torna objeto da paixão de outra deusa, Perséfone, o que provoca a ira de Afrodite, que queria a todo custo o amante de volta. A princípio Perséfone prometeu deixar Adônis seis meses com Afrodite, mas descumpre logo o trato. A quizília ( maldito curso de direito que me viciou em termos assim) só se resolve com a intervenção de Zeus, que determinou que Adônis ficaria quatro meses com uma, quatro meses com a outra e os restantes quatro meses livre. No culto a Adônis era comum as sacerdotisas fazerem desabrochar botões de rosa derramando sobre eles água morna. A água provocava a abertura da flor, mas também fazia com que ela murchasse rapidamente, numa referência à bela mas curta vida de Adônis.


Com o cristianismo o amor se universaliza e se torna o centro do problema humano. Com São Paulo se torna a razão de ser e com Santo Agostinho o único caminho para a salvação. Para Agostinho é o amor dei, o amor a Deus que garante a salvação, enquanto o amor sui, o amor a si, afasta a alma da luz divina. A cidade perfeita seria pautada pelo amor a Deus, a cidade sem esse amor tornar-se-ia, nas palavras de Agostinho, magna latrocina (algo como o maior dos crimes, e um ótimo nome pra um banda de Heavy Metal). O problema é que o pensamento cristão se distancia, muito cedo com Paulo, de uma práxis efetiva do amor, se focando mais no inquirir abstrato sobre o amor do que no agir a partir dele. Passa o cristianismo a ser um pensar sobre o ser e não mais sobre o fazer, como dizia Levinas. E não existe amor sem ação.O que me lembra de um belo texto da Lygia Fagundes Telles, chamado A Disciplina do Amor. Em que um cão passa todos os dias no mesmo lugar esperando a chegada do seu dono que foi lutar na guerra. O dono não volta, nunca, mas o cão espera, sempre. Espera até o fim. O amor enquanto dedicação suprema, o amor gratuito e inexplicável. O texto da Lygia é sintomático de nossa época: não se pode falar de um amor assim e citar o exemplo de um ser humano. É preciso o amor de um cão, porque nós desaprendemos a amar assim. No mundo atual o outro não passa de uma ação a ser trocada no mercado assim que começar a nos dar prejuízo. Não há amor que resista a esses tempos indecentes. Ao contrário do cão, nós nos cansamos.


[1] Expressão que, se não muito me engano, roubei de Walter Benjamin.


[2] Na verdade a alegoria de Stendhal é baseada numa prática dos namorados na Áustria, que vão às minas de sal em Salzburgo, lançar um galho no interior das minas, para, depois de cristalizado, presentear as namoradas.


[3] O termo “negócio” vem de negar o “ócio”, estado esse considerado essencial para a contemplação filosófica para os gregos. Como a mulher cuidada das coisas do lar (óikosnomia=economia) ela se dedicava ao efêmero, aos negócios, o que não era considerado digno para um homem.

Como amavam dois sonhadores

Eles queriam se casar, não por apenas se amarem, mas para provar outro sabor, um sabor de liberdade, de comunhão, de compromisso, de solidão. Eles queriam o limiar entre ser livres e estarem presos. Apesar de que presos não era a melhor definição para eles, eles definiam o futuro no casamento como ‘dividir o que não se divide: nossas particularidades.’. E por isso se casaram. Amavam um ao outro por amarem a mesma coisa: a liberdade.
Ele nunca concordou com o circo que é a cerimônia do casamento, nunca acreditou que estar casado é estar amordaçado, ou ser do outro, ou ser um só. Eram dois dividindo o que fosse possível. Ele nunca quis que ela fosse dele, ou vice e versa. Ele queria que ela vivesse, fosse livre, e partilhasse com ele o que pudesse. Quando resolveram se casar, decidiram ser diferentes, únicos. Fariam o casamento à moda deles.
Não precisavam de festa, de igreja, de padrinho, de amigos, de família... Fazia-se necessário apenas estarem lá, na hora marcada, e dizer 'SIM'. Resolveram não contar a ninguém; se casariam no civil, com quaisquer testemunhas, depois iriam ao cinema, adoravam filmes. E assim tudo aconteceu. Casamento no civil, e lua de mel no cinema com pipoca e refrigerante.
Quando saíram do cinema, o mundo parecia o mesmo: nem mais leve, nem mais pesado; era apenas o mesmo mundo. Eles se olharam, se abraçaram e seguiram em frente. Passaram por uma praça onde um grupo de amigos reunidos cantava, tocava violão e bebia. Resolveram juntar-se a eles; foram singularmente aceitos pelos estranhos. E durante toda aquela noite cantaram, se beijaram, conversaram... libertaram-se. Ele a viu como uma estranha, uma incógnita, sentiu um desejo por sua esposa que jamais experimentara. Ela estava linda, dançava sozinha, iluminada por uma lua encantadoramente medonha. Ela balançava-se como se o mundo fosse apenas ela, e nada mais. Seu corpo mexia em consoante com a música. Seu vestido traçava seu corpo, mostrava curvas que ele jamais vira: Ela era sublime. Levantou-se, foi até ela e pegou sua mão, puxou-a para perto de seu corpo, olhou-a nos olhos e sorriu. Colocou, então, sua mão direita sobre o peito dela. Sentiu os sons dos batimentos do coração. Fechou os olhos e os viu, viu seu peito pulsar, arrebentar a carne... explodir. Os sons de tudo o que era perto sumiu, apenas o silêncio era audível.
Ela o abraçou, passou seus braços pelo pescoço dele, chegou perto de seu ouvido e sussurrou algumas palavras: ‘enquanto você ouvir meu peito pulsar assim, toda e qualquer vez que chegar perto de mim, ainda seremos o que estamos sendo hoje: um sonho de liberdade. Eu o amo, Baby.’. Os olhos dele encheram de lágrimas, ele a pegou em seus braços e se deitaram na grama. Por um momento, a Terra girou por eles, pela força deles.
O homem que tocava violão, e estava singularmente bêbado, chegou perto dos dois e lhes entregou duas fitas, duas fitas vermelhas. Depois saiu. Eles se entreolharam, e riram-se... gargalharam. Ela então reparou no que carregavam em suas mãos, as alianças. Ela a tirou de seu dedo e disse: ‘se este for o símbolo de um casamento que fracassa, eu não as quero conosco. O quero livre, quero que me ame como quiser, e quando puder. Não carregaremos isto conosco. Sejamos como estas fitas vermelhas: leves e ardentes. ’. E assim eles colocaram as duas alianças numa caixinha, e a entregaram ao homem que lhes deram as fitas. E estas eles lançaram sobre um rio, que corria sob uma ponte. E ali, naquele instante, a comunhão se fizera. Eles conheceram o peso de amar, o peso do amor: apenas uma fita que voa. E enquanto se manterem fiéis às diferenças, a vida será uma dança sentimental, onde todo o som possível é o grito de desejo de um corpo que ama livre da prisão e amante do desconhecido.

segunda-feira, 9 de março de 2009

A arte da irrelevância

Não perca seu tempo comigo. Sou só um cachorro morto. Já não faço movimento algum, não vou morder ninguém. O único mal que posso fazer é, caso fique aqui por muito tempo, transmitir alguma doença. Fora o mau cheiro que irei exalar. Fora isso, não existe a menor razão em se preocupar comigo. Hoje, sou menos do que um objeto. Sou resultado da imprudência de alguém. Ou do motorista que me atropelou, ou de quem me deixou solto, ou da minha própria irracionalidade. De que vale agora esse seu chute raivoso? Sou só um cachorro morto. Ah, entendi. Você queria me tirar da estrada. Eu estava atrapalhando a passagem do seu carro. Eu poderia sujar seu pára-lama com meu sangue. E você não pode perder tempo comigo. Afinal, sou só um cachorro morto. Estranhamente, não sei a minha origem. Eu era um cão de raça? Se for, provavelmente pode haver um processo contra o meu agressor. Pelos danos causados, morais e financeiros. Talvez haja uma criança doente, sentida pela minha perda. Do outro lado, a defesa alegará que o motorista não pôde evitar o acidente. Se desviasse de mim, poderia atingir crianças que atravessavam a rua. Era área escolar. Havia mesmo crianças atravessando a rua? Não sei, não tenho como saber. Mas seria um álibi. E se eu não for um cão de raça? Se eu for apenas um vira-lata, um cão sem dono? O motorista processaria a prefeitura, pela falta de controle dos animais? A imprensa faria reportagem, tentaria entrevistar o secretário do setor de zoonoses, talvez o prefeito? Pra que tudo isso? Sou só um cachorro morto. A oposição provavelmente usaria os casos, tanto da falta de controle dos animais quanto da falha de segurança no trânsito próximo à escola, como pano de fundo numa campanha contra o prefeito, visando a próxima eleição. Transformariam uma coisa tão pequena, como foi a minha vida, em algo gigantesco, em nome de uma vaidade. E eu sou só um cachorro. Morto, ainda por cima.
E você, aí parado, olhando para mim, imaginando toda essa minha divagação, fica aí. Poderia estar fazendo algo mais útil da sua vida. Mas algo te atrai. Uma obsessão pela tragédia, talvez. Não deveria ser assim. Volte para o seu carro, não foi você quem me matou. Você já me chutou, isso já não tem volta. Agora, me deixe em paz. Afinal, sou só um cachorro morto.

sábado, 7 de março de 2009

Eis o homem...







Hipácia, pintura de Charles William, 1885.



Dedicado a Ju Almeida, que partilha do mesmo gosto ruim na boca que eu sinto quando penso nesses assuntos...








"Os homens fodem as mulheres;sujeito verbo objeto. É papel das mulheres deixar-se foder, assim como cabe aos homens o papel de foder (eles são os "fodedores"). Dessa diferença, dessa estrutura de interação do modo de atividade da sexualidade, surge uma dominação através da diferença: A diferença é a luva de veludo no punho de aço da dominação. O problema então, não é que as diferenças não sejam valorizadas; o problema é que elas são definidas pelo poder. Isso é tão verdadeiro quando a diferença é afirmada quanto o é quando ela é negada, quando sua substância é aplaudida ou desprezada, quando as mulheres são punidas ou protegidas em seu nome." (Catherine Mackinnon)





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Hipácia de Alexandria (370-415 d.C) foi a filósofa mais importante da antiguidade grega. Foi aluna de Plutarco e dedicou sua vida a ensinar e a escrever sobre filosofia e ciência. Como o ensino era reservado essencialmente ao espaço público dos mercados e das assembléias, espaço esse expressamente proibido às mulheres, Hipácia foi condenada por desobedecer às leis que organizavam a cidade e assassinada de forma brutal. Furaram seus calcanhares, passarem correias de couro pelos furos e amarraram as correias a um cavalo que a arrastou em praça pública até a morte. O pouco que sabemos sobre ela vem de correspondências e conversas registradas por seu aluno Sinesius de Cirene. Hipácia foi das primeiras de muitas mulheres violentamente silenciadas e suprimidas na história do pensamento e da construção do sentido do humano, vítima de um predomínio patriarcal na sociedade que estruturou e impôs um tipo específico de racionalidade. Um tipo que desvia propositalmente o olho do feminino, da mulher enquanto sujeito, de seu papel na formação histórica. Vemos o mundo com olhos masculinos, e as próprias mulheres, se quiserem fazer parte desse mundo, tem que se adaptar a esse olhar.




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Em 1486, James Sprenger e Heinrich Kramer publicam o Malleus Malleficarum, um dos muitos manuais inquisitoriais publicados na época, mas com uma característica bem específica. O Malleus tinha como "objeto" primordial de estudo a bruxaria, reconhecida formalmente dois anos antes pelo papa Inocêncio VIII. O Malleus inaugura um longo período que Anne Lewelly Barstow chamou de "terror misógino", e que se estendeu de 1560 a 1760, ou seja, durante a modernidade e seu fervor racionalista. A caça às bruxas, ao contrário do que nos faz crer Holywood e os jogos de RPG, não foi um fenômeno social do medievo, mas sim da modernidade. Aqui se apresenta uma coisa muito interessante: o imaginário social sempre nos dá conta de bruxas, mas tirando o Paulo Coelho e mais alguns picaretas, poucas vezes falamos em bruxos. Simplesmente porque, antes de atacar a bruxaria, a inquisição pretendia eliminar As Bruxas. Cerca de 85% dos acusados em processos de bruxaria eram mulheres, os homens geralmente eram acusados por relações de parentesco e afinidade com essas mulheres. Estima-se que duzentas mil mulheres tenham sido acusadas, das quais cem mil morreram queimadas, enforcadas, torturadas em prisões. Grande também era o número de mulheres que eram induzidas ao suicídio por tormentos físicos e psicológicos dos mais diversos. A distinção física das bruxas não apresentava nada de particular, somente a descrição de mulheres velhas e feias, muito comuns numa época em que elas eram tratadas das maneiras mais grotescas e que as condições de vida, sobretudo do campesinato, não eram nada fáceis. Entre as que mais se encaixavam no esterótipo de bruxa estavam as parteiras e as curandeiras, por seu conhecimento de segredos medicinais, mas não há como negar que as vítimas preferidas dos inquisidores eram as mulheres que não seguiam os padrões sexuais da época. Um trecho importante do manual é dedicada à descrição das mulheres que se permitiam relaçõs sexuais com demônios e de que forma se davam essas relações. Um rol exaustivo de posições e segredos sexuais entre mulheres e demônios é estampado no livro, o que demonstra um sadismo exacerbado dos inquisidores. Uma citação do livro diz: "Uma prática comum a todas as bruxas é a cópula carnal com os demônios. As bruxas têm sido vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos bosques, nuas até o umbigo; e pela disposição de seus órgãos próprios ao ato venéreo e ao orgasmo, e também pela agitação das pernas e das coxas, é óbvio que estão a cúpular com um Íncubo" Existe aqui uma conotação não só sexual, mas sensual, narrativamente construída. Em verdade os inquisidores projetam nas bruxas seus desejos sexuais castrados pela castidade que a profissão religiosa os impõem. A orgia das bruxas é a orgia que eles queriam participar. "Os inquisidores perseguem e querem anular, queimando vítimas, os próprios desejos sexuais sádicos, incestuosos e perversos, intoleráveis neles, e que por identificação projetiva colocaram nos entes malignos e nas bruxas" (Amina Maggi Piccini). Não é a toa que a marca do Diabo, a prova cabal da bruxaria só podia ser encontrada num ritual que envolvia a penetração da vagina da acusada por objetos pontiagudos como agulhas e punhais. Pois é, Freud explica...




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Ciudad Juarez é um dos pólos industrias do México e uma importante cidade turística desse país. Um fenômeno interessante acontece no país pelo menos desde o início da década de noventa do século passado. Mulheres, em sua maioria jovens, solteiras e de estatura mediana, são estupradas e mortas, geralmente encontradas com o rosto deformado e as mãos decepadas. Estima-se que 340 mulheres tenham sido mortas até hoje. Mas elas não são mortas "simplesmente". Há toda uma ritualística e uma mensagem inscrita nos corpos das moças de Ciudad Juarez. Como placas de carne morta há um recado cravado ali, no oco de suas feridas. Os crimes não são meros crimes contra o costume, cujo objetivo principal é possuir e violentar a vítima. São crimes de segundo Estado, cometidos pela camarilha formada por grandes industriais e os cartéis de droga da cidade. Rita Laura Segato, estudiosa brasileira que foi ao México estudar os crimes de Ciudad Juarez, e quase foi morta por isso, diz que os crimes se iniciaram como uma forma de reprimir as revoltas sindicais dos trabalhadores de Juarez, mas depois se tornaram parte de uma linguagem social local, parte da própria estrutura de poder da cidade, e mesmo com o fim das manifestações sindicais os crimes continuam. Ciudad Juarez é o perfeito exemplo de uma estrutura patriarcal construída sobre a violência e que se almaga à estrutura misógina própria das sociedades ocidentais.




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Há algumas semanas Sebastião se inquietava na presença dela. A percepção de que ela havia mudado já lhe era bem clara àquela altura. Tinha crescido, incorpado, ganhado seios e coxas. Desfilava pela casa vestida com roupas largas que eram de sua mãe, já que suas roupas de menina não cabiam mais. De vez em quando um movimento mais largo fazia despontar um ombro, ou criava um vão no decote que permitia ver de relance os pequenos mamilos rosados. A mãe insitia em ensinar-lhe a se portar, a como andar e sentar para não se revelar tão despudoradamente. Mas era tudo uma brincadeira pra ela. Mas Sebastião se preocupava, se preocupava muito. Ao chegar do trabalho um dia, a flagrou de conversa com o vizinho, o Roque, filho da Dona Cláudia. Ficou mais preocupado, Roque já tinha idade pra reconhecer e se aproveitar de uma menina formosa como sua filha. Proibiu-a de falar com ele, e nas poucas vezes que soube de desobediência a espancou violentamente. As brincadeiras e a proximidade com o irmão o preocupavam também. O jeito que se roçavam e rolavam no chão não poderia terminar em boa coisa. Economizou dois meses e comprou material pra construir um quarto pra ela sozinha. Fez o pequeno cômodo e a menina adorou. Sentiu um pouco de medo em dormir sozinha pela primeira vez. A mãe lhe fez companhia nos primeiros dias. Um dia o pai se ofereceu pra fazê-la dormir. "Vamos, minha filha?" Deitou-se com ela e acompanhou com os olhos o leve movimento que seu peito fazia ao respirar. Sentia-se nervoso, suado, pesado. No meio da noite saiu em silêncio, pegou uma dose de cachaça e virou. Não dormiu bem desde então. As noites se amontoavam e os receios que tinham se transformaram em medo. Ela não era mais um menina, cedo ou tarde algum aproveitador a enganaria e abusaria dela. Homem nenhum presta e ele tinha que protegê-la deles. Ela não poderia se entregar pra qualquer um. A cachaça o ajudava a relaxar. A ver as coisas com clareza. "Tenho que proteger minha filha, ela é minha, só minha". Naquela noite não voltou do trabalho na hora, foi beber, andar, pensar. Chegou de madrugada, bêbado, com as têmporas em brasa. Bateu na porta do quartinho e disse: "abre, é o pai". Ela abriu, sonolenta e ajeitando a camisola. Não estava entendendo nada. Ele a segurou pelos ombros e deitou na cama: "vou te proteger, você é minha filha, minha, ninguém vai fazer nada com você, eu não vou deixar". Seu rosto estava muito próximo do rosto dela, o suficiente para que as lágrimas dela o molhassem. Ela não gritou, não pediu ajuda. Ficou ali parada, chorando em silêncio, enquanto ele sussurava que fazia aquilo para o bem dela, para protegê-la. Ela era dele, foi o que ele dissera. Era o que todos diziam. Era propriedade, posse dele. Utendi e abutendi, usar e abusar, os direitos do proprietário que protege o que é seu. Com o peito molhado das lágrimas dela, ele se dizia isso...




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O Arcebispo de Olinda excomungou a mãe e os médicos envolvidos no aborto da menina de nove anos grávida devido aos abusos sexuais que sofria do padrasto. Como se já não houvesse dor e maldade suficiente no caso. É a religião do amor e do perdão, que protege o fraco e o caído. Pois é...






Amanhã é o dia internacional da mulher...amanhã, sempre amanhã.





quinta-feira, 5 de março de 2009

Estilhaços da inocência

Pedrinho. Poderia ter qualquer outro nome, afinal, era só estatística. Escolheu morar em uma esquina por fazer crescer sua esperança de que um dia, como as esquinas, ele teria o outro lado, a mudança. Aquele lado menos ingênuo, menos sofrido, menos desumano. Pedrinho era um diminutivo. Quando perguntado sobre seu emprego, porque era óbvio que apesar da pouca idade ele precisava trabalhar, fazia uma expressão confusa e quase vulgar. Um tanto de indiferença no olhar, quase ofensivo. Entendia-se que aquela criança não sabia o sentido, o verdadeiro significado de trabalhar. Estava tão precocemente acostumado com esta rotina que muito provavelmente nunca havia se dividido daquilo. Era como qualquer atitude vital que exercitava sem saber. E era irônico que o único meio que ele tinha de comprar comida um dia sim e outro não, fosse maravilhar-se todos os dias ao tocar nos automóveis importados que as mil faces de pessoas "caridosas" o entregavam pra lavar, em troca de algumas moedas. Não se sentia muito digno das fantasias e esperanças daquela esquina, dos carros com tom doce de riqueza e conforto e do sabão que utilizava como brinquedo fazendo desenhos no retrovisor. Quis ser mais bondosa e além do meu carro pra lavar, ofereci um sorvete assim que terminasse sua função divertida de ter meu carro por alguns minutos. Enquanto ele levava, para amenizar o calor insuportável desta cidade, fui tomar meu sorvete observando a hipocrisia daquele ambiente cheio de pessoas aparentemente honestas. E quando o menino terminou e me esperava lá fora, deixei seu sorvete pago que fora preparado e deixado em cima da mesa. Parada no centro do mundo peguei a chave que balançava em suas mãos fazendo barulho de música e apontei para a mesa com seu sorvete cheio de cores, parecia um arco-íris. Entrei no carro e permaneci parada no semáforo, observando a felicidade do garoto ao ver um pedaço do seu sonho a alguns metros. O menino correu e neste instante a garçonete passava ao lado de sua mesa, esbarram-se estupidamente fazendo com que a moça encostasse na mesa e a taça, até então saborosa e completa, caiu no chão. Apesar do movimento, das buzinas, das pessoas gritando, dos vendedores bradando suas mais fantásticas promoções; o único barulho que se ouvia naquele segundo era o som do sorvete se quebrando e derretendo. Como se chorasse, como se lamentasse a perda do garoto iludido. Me choquei, o sinal abriu, o menino chorou e fui embora sem olhar pra trás. Senti que aquela era a pior fustração de sua vida, acelerei e nunca mais tive coragem de voltar àquele lugar. Percebi o óbvio que era difícil encarar: a covardia dos que não fazem parte é hipocritamente disfarçada de bondade, e quando temos a oportunidade de mudar, fugimos. Um sorvete não era esmola, não era a sustentabilidade daquele ciclo vicioso de exploração do trabalho infantil. O sorvete, especialmente aquele, era um sonho adquirido, era uma poesia, era uma música, uma motivação. O sorvete era a coragem, e talvez ele jamais saberá o sabor desta coragem. Porque ela caiu, derreteu, se quebrou. Mas de que isso importa, mesmo? Pedrinho é só um diminutivo...

segunda-feira, 2 de março de 2009

A chave do enigma

Como já é de praxe, nossa série sobre um tema específico se encerra com a participação de um convidado. A escolhida desta vez foi nossa companheira da comunidade oficial do blog (sim, temos uma comunidade oficial!), a Lorena, ativa leitora e participante nos comentários. Fiz o convite a ela anteontem, e aí está este texto surpreendente. Acho sinceramente que é uma boa forma de encerrar, mostrando a descoberta do que é o medo e a sua necessidade em determinados momentos. Como ela não deu o título, tomei a liberdade de nomeá-lo, como uma síntese da minha interpretação. Com vocês, "A Chave do Enigma", por Lorena Cicari.

"Hoje eu senti uma sensação estranha, senti que eu queria não conseguir nada. Eu preferi só aceitar o que viesse, e não me esforçar por nada. Minha pouca crença abalada pela voz dela, pelos medos dela. Senti um gosto estranho escorrendo pelo meu rosto, olhei para mim mesma e não me reconheci, não me senti: sim, eu era outra pessoa.
Um tempo atrás eu desejava muito, e por muito tempo. Planejava vôos secretos a lugares públicos, poéticos e infames. Eu sei que li o que não haviam escrito, que eu ouvi aquela música que ninguém tocou: eu era mais uma atriz do que uma filha do Deus. E foi então que eu percebi que a gente faz escolhas que, sabe-se lá, se serão o melhor para nós. Mas por amor ao que nos mantém, supostamente, vivos, continuamos a acariciá-lo noite após noite. Nos deitamos ao seu lado, e nos entregamos. Sentimos seu cheiro suave e sua pele macia. Um sopro terno nos ouvidos... Aquele gemido do prazer que só o medo pode nos oferecer.
Como uma boa intérprete, não pude deixar de criar, e escolhi um novo caminho, uma nova história: outra mentira; foi então que eu consegui compreender o que é o medo, o que ele nos oferece, o quanto excitante é fazer tudo quando se tem medo, e sei que o medo, às vezes, nos permite sondar novos caminhos, novas descobertas. Se não fosse este sentimento, talvez este sentido, nunca faríamos nada. Por amor a ele, ou pelo sentimento inverso, o ódio, é que vivemos. Ou faço por temê-lo, ou por acreditar não trazê-lo sangrado no peito. Mas, aqui, forte como jamais será o amor pelo Homem é que eu faço as descobertas. Tão silencioso e oportuno é sua ajuda. Tão correto, franco e necessário. Oferece-me suas mãos sempre que eu preciso desistir. Meu Demônio, meu Deus: minha misericórdia.
Me senti heróica, dona dos meus fracassos. A culpa da minha culpa, o motivo de ser a Derrota. Ela bradou, então, outra vez a pior das minhas escuridões: ela me exilou, ela me quis fora. Pediu que eu saísse, que eu partisse. Sei que naquele momento ela desejou com toda a força de tudo o que a faz perversa que eu jamais estivesse ali. Que ela, apenas, se lembrasse de mim quando olhasse para uma fotografia. Foi naquele instante que eu me fiz órfã, que eu me abandonei do que eu não puder conquistar. Eu senti o pior do meu medo: medo de ser como ela".