Passando por uma praça -fazia um dia agradável- ela observou os pais que brincavam com seus filhos, os filhos que brincavam com os cachorros, os policiais que caminhavam tranquilamente, e sentiu nojo. Queria gritar, queria dizer que aquilo era errado, que estavam todos cegos. Que se enganavam e enganavam aos filhos. Que escravizavam cachorros e crianças e as chamavam, sem ordem de importância, de meus amores. Sim, para ela a vida estava perdida, ainda que para nascer. Seu estômago embrulhou, ela se contraiu com toda a força de seu ser, segurou o vômito dentro da boca -o vômito era a confirmação da ruína-, e, por fim, fora, outra vez, vencida pelo mesmo algoz. Olhou para o almoço semi-digerido e resolveu que não mais comeria, que não ingeriria alimento que fosse: seria o fim do fim e a volta ao início. E continuou caminhando.
segunda-feira, 30 de março de 2009
"Te peço desculpas, me abraça meu filho."
Passando por uma praça -fazia um dia agradável- ela observou os pais que brincavam com seus filhos, os filhos que brincavam com os cachorros, os policiais que caminhavam tranquilamente, e sentiu nojo. Queria gritar, queria dizer que aquilo era errado, que estavam todos cegos. Que se enganavam e enganavam aos filhos. Que escravizavam cachorros e crianças e as chamavam, sem ordem de importância, de meus amores. Sim, para ela a vida estava perdida, ainda que para nascer. Seu estômago embrulhou, ela se contraiu com toda a força de seu ser, segurou o vômito dentro da boca -o vômito era a confirmação da ruína-, e, por fim, fora, outra vez, vencida pelo mesmo algoz. Olhou para o almoço semi-digerido e resolveu que não mais comeria, que não ingeriria alimento que fosse: seria o fim do fim e a volta ao início. E continuou caminhando.
sexta-feira, 27 de março de 2009
Que o horror seja meu túmulo...
"Tremes, carcaça? Tremerias muito mais se soubesse onde te levo..."
Os pólos invertidos*
A formiga quer ser cigarra. Cansou-se de carregar grãozinhos de um lado para o outro. Quer sumir. Cantar até explodir, o que parecia tão absurdo, é agora uma idéia aceitável. Mas ela não sabe cantar. Não tem voz. Resolve sair para passear. Escapar da fila de formiguinhas, cada uma com um grãozinho de terra acima da cabeça. E foge. O caminho é um tanto diferente do verde habitual. Bem no alto, quase no topo, a pequena formiga encontra uma grande haste, que no final chega a mais cinco pequenas hastes separadas. Vai até um ponto próximo das hastes menores. É aí que ela sente o cheiro da ameaça.
A formiga não pensa duas vezes antes de cravar as presas no inimigo gigante. No entanto, em uma fração de segundos, percebe uma grande sombra vinda do alto, se aproximando. O tapa é tão forte que a dilacera.
***
*Nota: tudo bem que não é um texto inédito. Postei anteriormente em outro blog, no ano passado, mas na época ele passou um tanto despercebido, e eu achei que seria uma boa oportunidade de "dar mais uma chance" ao texto. Espero que gostem.
quarta-feira, 25 de março de 2009
Ao mestre com carinho
terça-feira, 24 de março de 2009
O limite da negação
Um amontoado desordeiro de palavras, vez por outra, surgia em sua mente, e desviava todo o curso do dia. Ela passou horas incontáveis lutando contra si, contra aquela ‘idéia fixa’; e não queria ouvi-las, nem escrevê-las... Mas foi em um bar, sentada dentro daquele ambiente onde as verdades nunca se mantêm em segredo, que ela fraquejou. E numa mesa suja de um bar sujo, de uma vida suja Anna esperava incansável por algo, por algum momento, uma chance de mudar, de se vingar, ou de apenas conseguir seguir em frente sem precisar vencer o passado. Abriu sua bolsa velha e rasgada, tirou de dentro dela um caderno onde anotava frases soltas em sua mente e na sua vida –ela dizia que tudo o que há de sincero na vida é dito sem ordem, pois as poucas verdades que aceitamos a ouvir são aquelas que nos obrigam o acaso- e escreveu, sem muita certeza do que ouvia de si para consigo, as seguintes palavras: “Às vezes sinto os meus ossos se arderem, sinto o meu corpo todo num frenesi, numa explosão indiferente a todos os que me observam, a todos os que me ignoram, que ignoram meus sonhos. Num gole intragável de satisfação, faço deste tempo doente meu leito esterilizado de tudo o que não deveria ser; a menos que eu desejasse, com todos os sons que poderia proferir os meus anseios amedrontados pelo pavor de perdê-lo.”. E Ela dá um último gole no conhaque barato, apaga o cigarro no copo, levanta-se cambaleante e vai embora.
Ao cruzar a porta do bar, dá de cara com o mundo, com a rua: a indiferença. Ouve, do som de um carro que passava, “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho.”, mas não prestou atenção ao resto da música, apenas riu de si para consigo um riso debochado, descrente e auto-irônico; arruma a gola amarrotada de sua blusa e segue, acompanhada da solidão. Ambas seguem o mesmo caminho, têm o mesmo destino: um apartamento calmamente escuro. E lá não há ninguém à espera. Apenas livros e bebidas. O amor era, à época, uma tatuagem que ela encobrira, que ela tampara, escondera de si mesma. E a noite seguiu quase que de costume, pois ela percebeu que muitas vezes vencer a si mesmo é se machucar, é dobrar o óbvio necessário e enxergar que muito além da crença da vitória, existe a necessidade de enterrar vivos passado e medo, e decidiu jamais tatuar no seu corpo amor que fosse. E aquilo que pudesse prender ela libertaria: nunca, outra vez, se daria ao que desejasse grades e cadeados.
terça-feira, 17 de março de 2009
À sombra das influências
quarta-feira, 11 de março de 2009
Prolegômenos sobre o amor que não sentimos mais
Pensar o amor, hoje, é como escovar a contrapelo o cavalo da história[1]. É contar ao revés o tempo de um mundo que há muito se demitiu de suas promessas de paz e segurança e abriu, sorridente, as portas para a dominação da mais cruel e dura barbárie. Falar do amor hoje é como falar de uma boa cama depois de dormir anos no chão frio. Como um espectro, um fantasma, o que nos atinge é somente sua aura, seu resquício, meio ectoplasma, provocando aquele sentimento de estraneidade e desconforto, como se tivéssemos pisado, inadvertidamente, numa poça de lama.
Em verdade, pensar o amor não é uma atitude filosófica muito comum, apesar de grandes pensadores, de Aristóteles a Lima Vaz terem dedicado parte de sua genialidade a isso. Mas em tempos de tecnicismo exacerbado e frio narcisismo pensar o amor, por mais necessário que seja, não é algo muito visto. O amor romântico, o amor fraternal, o amor cósmico, o amor divino, o amor infantil, o amor. Em suas diversas concepções e variáveis, ele se alimenta e alimenta contextos históricos e sociais muito específicos, ele constrói realidades e pode muito bem desfazê-las.
O amor romântico é, em verdade, um sentimento relativamente novo para o homem ocidental. Surge como uma desculpa para as relações sexuais fora do matrimônio na Idade Média, toleradas devido à necessidade de repovoamento da Europa depois da peste negra. Sem a peste não teríamos o amor romântico, o que, por infame que soe a anedota, não nos permite inferir que o amor é uma peste, nem que o amor é uma doença. Apesar de ter sido considerado assim durante o ultra-romantismo, em que o spleen desolador dos que amavam demais levava à loucura, à embriaguez delirante do absinto, às noites devotadas à lua, a febre do desejo pelo roçar do rosto da amada e a poemas doídos, muitas vezes, artificialmente doídos. Questão de estilo. A tuberculose era o signo, o anátema dos fatalmente apaixonados, que sonhavam com messalinas, donzelas e tabernas que, qual como a ilha barataria em que Sancho é rei, nunca existiram. O amor convertido no sugar terapêutico do pneumotórax, no jejum profano, vez que impenitente, na sacralização da amada.
Werther, o personagem de Goethe, suicida-se devido a um amor impossível. Tal foi o sucesso do livro que centenas (alguns números se referem a milhares) de jovens imitaram o exemplo. Lembro que uma vez, acompanhando uma amiga a um culto espírita (eu me meto em cada uma) li um texto de uma carta supostamente psicografada em que o espírito de Goethe pedia perdão por ter incitado, ainda que sem intenção, a morte de tantos jovens. Bom, mas é próprio fantasiar quando o amor é o assunto.
Numa tarde fria em Ouro Preto eu li Do amor, de Stendhal. Na época me dedicava a ler os autores que influenciaram o estilo de escrever de Nietzsche, e o francês era um dos mais notáveis. Do amor presenteou-me (a função de todo bom livro) com uma das mais belas alegorias sobre o sentimento do amor romântico. Numa passagem o autor descreve o amor como um galho de árvore lançado em uma mina de sal. Com o tempo os pequenos cristais de sal iriam se grudando à madeira, formando uma escultura de cristal, clara, caótica, bela. Com Stendhal aprendi que o amor acrescenta, mas também transforma. Se depois de amar você ainda persiste incólume, em verdade, você não amou. Amor é, e Stendhal sabia, cristalização.[2]
Mas ainda assim a cultura grega é recheada de belas histórias de amor. Afrodite, a mais que notória deusa do amor, apesar de ser casada com Ares (Marte para os romanos), teve casos amorosos com diversos outros deuses e homens (o que nos faz pensar, levantando a ficha da moça, se o amor do qual ela era deusa não seria somente o amor carnal, o sexo), entre esses figurava um belo jovem de nome Adônis. Irritado pela traição de sua esposa, Ares resolve se vingar. Transforma-se em um imenso Javali e mata Adônis golpeando-o nos quadris. Afrodite ouve o grito do amado e corre para ajudá-lo, ferindo seus pés na corrida. O sangue da deusa caiu sobre rosas, que até aquele momento eram brancas (não existia até então rosas vermelhas) e se tornaram vermelhas com seu sangue. O sangue vertido por Adônis foi transmutado por Afrodite na anêmona, para que ela não se esquecesse dele. Levado ao Hades, o reino dos mortos, Adônis se torna objeto da paixão de outra deusa, Perséfone, o que provoca a ira de Afrodite, que queria a todo custo o amante de volta. A princípio Perséfone prometeu deixar Adônis seis meses com Afrodite, mas descumpre logo o trato. A quizília ( maldito curso de direito que me viciou em termos assim) só se resolve com a intervenção de Zeus, que determinou que Adônis ficaria quatro meses com uma, quatro meses com a outra e os restantes quatro meses livre. No culto a Adônis era comum as sacerdotisas fazerem desabrochar botões de rosa derramando sobre eles água morna. A água provocava a abertura da flor, mas também fazia com que ela murchasse rapidamente, numa referência à bela mas curta vida de Adônis.
Com o cristianismo o amor se universaliza e se torna o centro do problema humano. Com São Paulo se torna a razão de ser e com Santo Agostinho o único caminho para a salvação. Para Agostinho é o amor dei, o amor a Deus que garante a salvação, enquanto o amor sui, o amor a si, afasta a alma da luz divina. A cidade perfeita seria pautada pelo amor a Deus, a cidade sem esse amor tornar-se-ia, nas palavras de Agostinho, magna latrocina (algo como o maior dos crimes, e um ótimo nome pra um banda de Heavy Metal). O problema é que o pensamento cristão se distancia, muito cedo com Paulo, de uma práxis efetiva do amor, se focando mais no inquirir abstrato sobre o amor do que no agir a partir dele. Passa o cristianismo a ser um pensar sobre o ser e não mais sobre o fazer, como dizia Levinas. E não existe amor sem ação.O que me lembra de um belo texto da Lygia Fagundes Telles, chamado A Disciplina do Amor. Em que um cão passa todos os dias no mesmo lugar esperando a chegada do seu dono que foi lutar na guerra. O dono não volta, nunca, mas o cão espera, sempre. Espera até o fim. O amor enquanto dedicação suprema, o amor gratuito e inexplicável. O texto da Lygia é sintomático de nossa época: não se pode falar de um amor assim e citar o exemplo de um ser humano. É preciso o amor de um cão, porque nós desaprendemos a amar assim. No mundo atual o outro não passa de uma ação a ser trocada no mercado assim que começar a nos dar prejuízo. Não há amor que resista a esses tempos indecentes. Ao contrário do cão, nós nos cansamos.
[1] Expressão que, se não muito me engano, roubei de Walter Benjamin.
[2] Na verdade a alegoria de Stendhal é baseada numa prática dos namorados na Áustria, que vão às minas de sal em Salzburgo, lançar um galho no interior das minas, para, depois de cristalizado, presentear as namoradas.
Como amavam dois sonhadores
Ela o abraçou, passou seus braços pelo pescoço dele, chegou perto de seu ouvido e sussurrou algumas palavras: ‘enquanto você ouvir meu peito pulsar assim, toda e qualquer vez que chegar perto de mim, ainda seremos o que estamos sendo hoje: um sonho de liberdade. Eu o amo, Baby.’. Os olhos dele encheram de lágrimas, ele a pegou em seus braços e se deitaram na grama. Por um momento, a Terra girou por eles, pela força deles.
O homem que tocava violão, e estava singularmente bêbado, chegou perto dos dois e lhes entregou duas fitas, duas fitas vermelhas. Depois saiu. Eles se entreolharam, e riram-se... gargalharam. Ela então reparou no que carregavam em suas mãos, as alianças. Ela a tirou de seu dedo e disse: ‘se este for o símbolo de um casamento que fracassa, eu não as quero conosco. O quero livre, quero que me ame como quiser, e quando puder. Não carregaremos isto conosco. Sejamos como estas fitas vermelhas: leves e ardentes. ’. E assim eles colocaram as duas alianças numa caixinha, e a entregaram ao homem que lhes deram as fitas. E estas eles lançaram sobre um rio, que corria sob uma ponte. E ali, naquele instante, a comunhão se fizera. Eles conheceram o peso de amar, o peso do amor: apenas uma fita que voa. E enquanto se manterem fiéis às diferenças, a vida será uma dança sentimental, onde todo o som possível é o grito de desejo de um corpo que ama livre da prisão e amante do desconhecido.
segunda-feira, 9 de março de 2009
A arte da irrelevância
E você, aí parado, olhando para mim, imaginando toda essa minha divagação, fica aí. Poderia estar fazendo algo mais útil da sua vida. Mas algo te atrai. Uma obsessão pela tragédia, talvez. Não deveria ser assim. Volte para o seu carro, não foi você quem me matou. Você já me chutou, isso já não tem volta. Agora, me deixe em paz. Afinal, sou só um cachorro morto.
sábado, 7 de março de 2009
Eis o homem...
Hipácia, pintura de Charles William, 1885.
Dedicado a Ju Almeida, que partilha do mesmo gosto ruim na boca que eu sinto quando penso nesses assuntos...
"Os homens fodem as mulheres;sujeito verbo objeto. É papel das mulheres deixar-se foder, assim como cabe aos homens o papel de foder (eles são os "fodedores"). Dessa diferença, dessa estrutura de interação do modo de atividade da sexualidade, surge uma dominação através da diferença: A diferença é a luva de veludo no punho de aço da dominação. O problema então, não é que as diferenças não sejam valorizadas; o problema é que elas são definidas pelo poder. Isso é tão verdadeiro quando a diferença é afirmada quanto o é quando ela é negada, quando sua substância é aplaudida ou desprezada, quando as mulheres são punidas ou protegidas em seu nome." (Catherine Mackinnon)
quinta-feira, 5 de março de 2009
Estilhaços da inocência
segunda-feira, 2 de março de 2009
A chave do enigma
Como já é de praxe, nossa série sobre um tema específico se encerra com a participação de um convidado. A escolhida desta vez foi nossa companheira da comunidade oficial do blog (sim, temos uma comunidade oficial!), a Lorena, ativa leitora e participante nos comentários. Fiz o convite a ela anteontem, e aí está este texto surpreendente. Acho sinceramente que é uma boa forma de encerrar, mostrando a descoberta do que é o medo e a sua necessidade em determinados momentos. Como ela não deu o título, tomei a liberdade de nomeá-lo, como uma síntese da minha interpretação. Com vocês, "A Chave do Enigma", por Lorena Cicari.