Há algum tempo atrás escrevi um texto sobre amor. Nele eu iniciava uma pequena investigação sobre a história desse sentimento. Não é um texto acadêmico por isso mesmo não pretende explicar nem demonstrar tudo o que é dito nele. Na verdade era um texto que seria publicado num jornal de Belo Horizonte. Por algum motivo que nunca me foi explicado o jornal preferiu publicar um outro texto meu sobre uma lei estadual que prevê a castração de cães da raça Pit Bull (o texto só não era pior que a lei). Mas, aproveitando que redescobri esse escrito, abandonado, como diria Marx, à crítica roedora dos ratos (no caso, dos vírus de computador), vou publicá-lo aqui. Como ele é um pouco grande peço ao leitor paciência: todo amor tem seu tempo.
Prolegômenos sobre o amor que não sentimos mais
Pensar o amor, hoje, é como escovar a contrapelo o cavalo da história[1]. É contar ao revés o tempo de um mundo que há muito se demitiu de suas promessas de paz e segurança e abriu, sorridente, as portas para a dominação da mais cruel e dura barbárie. Falar do amor hoje é como falar de uma boa cama depois de dormir anos no chão frio. Como um espectro, um fantasma, o que nos atinge é somente sua aura, seu resquício, meio ectoplasma, provocando aquele sentimento de estraneidade e desconforto, como se tivéssemos pisado, inadvertidamente, numa poça de lama.
Em verdade, pensar o amor não é uma atitude filosófica muito comum, apesar de grandes pensadores, de Aristóteles a Lima Vaz terem dedicado parte de sua genialidade a isso. Mas em tempos de tecnicismo exacerbado e frio narcisismo pensar o amor, por mais necessário que seja, não é algo muito visto. O amor romântico, o amor fraternal, o amor cósmico, o amor divino, o amor infantil, o amor. Em suas diversas concepções e variáveis, ele se alimenta e alimenta contextos históricos e sociais muito específicos, ele constrói realidades e pode muito bem desfazê-las.
O amor romântico é, em verdade, um sentimento relativamente novo para o homem ocidental. Surge como uma desculpa para as relações sexuais fora do matrimônio na Idade Média, toleradas devido à necessidade de repovoamento da Europa depois da peste negra. Sem a peste não teríamos o amor romântico, o que, por infame que soe a anedota, não nos permite inferir que o amor é uma peste, nem que o amor é uma doença. Apesar de ter sido considerado assim durante o ultra-romantismo, em que o spleen desolador dos que amavam demais levava à loucura, à embriaguez delirante do absinto, às noites devotadas à lua, a febre do desejo pelo roçar do rosto da amada e a poemas doídos, muitas vezes, artificialmente doídos. Questão de estilo. A tuberculose era o signo, o anátema dos fatalmente apaixonados, que sonhavam com messalinas, donzelas e tabernas que, qual como a ilha barataria em que Sancho é rei, nunca existiram. O amor convertido no sugar terapêutico do pneumotórax, no jejum profano, vez que impenitente, na sacralização da amada.
Werther, o personagem de Goethe, suicida-se devido a um amor impossível. Tal foi o sucesso do livro que centenas (alguns números se referem a milhares) de jovens imitaram o exemplo. Lembro que uma vez, acompanhando uma amiga a um culto espírita (eu me meto em cada uma) li um texto de uma carta supostamente psicografada em que o espírito de Goethe pedia perdão por ter incitado, ainda que sem intenção, a morte de tantos jovens. Bom, mas é próprio fantasiar quando o amor é o assunto.
Numa tarde fria em Ouro Preto eu li Do amor, de Stendhal. Na época me dedicava a ler os autores que influenciaram o estilo de escrever de Nietzsche, e o francês era um dos mais notáveis. Do amor presenteou-me (a função de todo bom livro) com uma das mais belas alegorias sobre o sentimento do amor romântico. Numa passagem o autor descreve o amor como um galho de árvore lançado em uma mina de sal. Com o tempo os pequenos cristais de sal iriam se grudando à madeira, formando uma escultura de cristal, clara, caótica, bela. Com Stendhal aprendi que o amor acrescenta, mas também transforma. Se depois de amar você ainda persiste incólume, em verdade, você não amou. Amor é, e Stendhal sabia, cristalização.[2]
Na Grécia Antiga o amor romântico ainda não existia, e, portanto, um homem amar uma mulher não era algo tão comum quanto hoje. Não que não ocorresse, mas a relação do homem com a mulher era mais uma relação de propriedade do que uma relação de afeto. Alguns filósofos diziam inclusive que o amor verdadeiro só existiria entre homens, uma vez que seriam iguais e dedicados a contemplar as coisas verdadeiras e eternas da existência, enquanto a mulher teria a função de cuidar somente dos negócios[3] familiares e dar filhos ao homem.
Mas ainda assim a cultura grega é recheada de belas histórias de amor. Afrodite, a mais que notória deusa do amor, apesar de ser casada com Ares (Marte para os romanos), teve casos amorosos com diversos outros deuses e homens (o que nos faz pensar, levantando a ficha da moça, se o amor do qual ela era deusa não seria somente o amor carnal, o sexo), entre esses figurava um belo jovem de nome Adônis. Irritado pela traição de sua esposa, Ares resolve se vingar. Transforma-se em um imenso Javali e mata Adônis golpeando-o nos quadris. Afrodite ouve o grito do amado e corre para ajudá-lo, ferindo seus pés na corrida. O sangue da deusa caiu sobre rosas, que até aquele momento eram brancas (não existia até então rosas vermelhas) e se tornaram vermelhas com seu sangue. O sangue vertido por Adônis foi transmutado por Afrodite na anêmona, para que ela não se esquecesse dele. Levado ao Hades, o reino dos mortos, Adônis se torna objeto da paixão de outra deusa, Perséfone, o que provoca a ira de Afrodite, que queria a todo custo o amante de volta. A princípio Perséfone prometeu deixar Adônis seis meses com Afrodite, mas descumpre logo o trato. A quizília ( maldito curso de direito que me viciou em termos assim) só se resolve com a intervenção de Zeus, que determinou que Adônis ficaria quatro meses com uma, quatro meses com a outra e os restantes quatro meses livre. No culto a Adônis era comum as sacerdotisas fazerem desabrochar botões de rosa derramando sobre eles água morna. A água provocava a abertura da flor, mas também fazia com que ela murchasse rapidamente, numa referência à bela mas curta vida de Adônis.
Com o cristianismo o amor se universaliza e se torna o centro do problema humano. Com São Paulo se torna a razão de ser e com Santo Agostinho o único caminho para a salvação. Para Agostinho é o amor dei, o amor a Deus que garante a salvação, enquanto o amor sui, o amor a si, afasta a alma da luz divina. A cidade perfeita seria pautada pelo amor a Deus, a cidade sem esse amor tornar-se-ia, nas palavras de Agostinho, magna latrocina (algo como o maior dos crimes, e um ótimo nome pra um banda de Heavy Metal). O problema é que o pensamento cristão se distancia, muito cedo com Paulo, de uma práxis efetiva do amor, se focando mais no inquirir abstrato sobre o amor do que no agir a partir dele. Passa o cristianismo a ser um pensar sobre o ser e não mais sobre o fazer, como dizia Levinas. E não existe amor sem ação.O que me lembra de um belo texto da Lygia Fagundes Telles, chamado A Disciplina do Amor. Em que um cão passa todos os dias no mesmo lugar esperando a chegada do seu dono que foi lutar na guerra. O dono não volta, nunca, mas o cão espera, sempre. Espera até o fim. O amor enquanto dedicação suprema, o amor gratuito e inexplicável. O texto da Lygia é sintomático de nossa época: não se pode falar de um amor assim e citar o exemplo de um ser humano. É preciso o amor de um cão, porque nós desaprendemos a amar assim. No mundo atual o outro não passa de uma ação a ser trocada no mercado assim que começar a nos dar prejuízo. Não há amor que resista a esses tempos indecentes. Ao contrário do cão, nós nos cansamos.
[1] Expressão que, se não muito me engano, roubei de Walter Benjamin.
[2] Na verdade a alegoria de Stendhal é baseada numa prática dos namorados na Áustria, que vão às minas de sal em Salzburgo, lançar um galho no interior das minas, para, depois de cristalizado, presentear as namoradas.
[3] O termo “negócio” vem de negar o “ócio”, estado esse considerado essencial para a contemplação filosófica para os gregos. Como a mulher cuidada das coisas do lar (óikosnomia=economia) ela se dedicava ao efêmero, aos negócios, o que não era considerado digno para um homem.
O amor devia ser algo íntimo, único... Cada um sentindo como se faz arder dentro do corpo. Sempre nos preocupamos demais com o material, com o que é possível ao toque; deixamos de amar apenas por ser bom, apenas por nos fazer bem, ou por ser fantasia. Como se, lado a lado com o amor, devesse existir alguma compensação. Algum ganho além do próprio amor, além de aprender a desejar, a se malear por si mesmo; porque não mudamos por quem amamos, mudamos para estar junto a quem amamos, logo, a mudança é por nós mesmo. Não há o que cobrar, não existem contas a serem feitas, ou ‘reembolsos’. Mas nem sempre é fácil individualizar numa relação formas diferentes de amar, ainda que ‘objeto e observador’ –e vice e versa- sejam os mesmos. Creio que o amor precise sempre de uma balança, e que os amantes saibam dar e guardar o que é preciso para equilibrar medos e desejos. No mais, creio que Amor seja amar, simples assim. Saber guardar os segredos do ‘si para consigo’, e respeitar o que não se pôde ser dito, ou dividido.
ResponderExcluirCafé-da-manhã em Plutão
ResponderExcluirQuero um amor “plutônico”
Ver o Sol nascer em Mercúrio,
Fazer amor em Vênus,
Nadar nos mares perdidos de Marte
Explorar as luas de Júpiter
Passear pelos anéis de Saturno
Vislumbrar o azul-esverdeado de Urano
Voar aos ventos de Netuno
Saborear com meu amor
um café-da-manhã em Plutão
Diferente daquele amor platônico unilateral, mas um amor sincero, sonhador e sensível.