sexta-feira, 27 de março de 2009

Que o horror seja meu túmulo...



"Tremes, carcaça? Tremerias muito mais se soubesse onde te levo..."



Não consigo dizer há quantos dias acordo com as estrelas ardendo no céu sobre mim. O tempo aqui, como em todo lugar terrivelmente real, não faz muito sentido. Também não sei dizer quantas vezes acordei com o mordiscar dos peixes na pele da minha mão, desmazeladamente roçando a água gélida. Preciso me lembrar de atar as mãos antes de dormir. Mas se o fizer, e minha frágil jangada naufragar, irei ao fundo com ela. Mas já sou um náufrago, o que seria para mim um outro naufrágio? O que é para um homem à deriva o girar constante do redemoinho que lhe rouba o rumo? Navego sem norte, e o atracar em uma terra qualquer já não faz mais parte de meus pensamentos ou aspirações.




A fome é tão grande que a dor que ela provoca faz sumir a dor de meus ossos quebrados. Quando foi a última refeição? Há eras eu creio. Um resto de peixe que caiu do céu pela briga de duas gaivotas. Ri da providência divina, lançada do céu com cheiro de peixe carcomido e capaz ainda de atingir-me, eu, um ponto de horror negro no meio do oceano. A sede é de desesperar. Precisei tomar água salgada. Minha urina acabou há alguns dias e por mais revoltante que seja a lembrança de tomá-la, seu gosto parece abençoado quando bebo esse pérfido licor leitoso de água e sal. A desidratação já me provoca delírios. Não foram poucas as vezes que acordei com o bafejar do Leviatã sobre meu rosto ou com o toque escamoso do maldito Netuno.




O dia é um verdadeiro inferno. O calor, a luz cegante do sol refletido nas ondas. As gaivotas que se abatem sobre mim como abutres malditos esperando seu repasto necrofágico, a consciência do isolamento soberano em que me encontro. Sim, o dia é um verdadeiro inferno. A secura das minhas carnes somada ao fustigar do astro maior abriu feridas horríveis em meu dorso. Não gosto de pensar que estou apodrecendo em vida, mas o cheiro gangrenoso que exalo me impede de esquecer tal fato. As tábuas que compõe minha maldita embarcação começam a ter o mesmo destino que minhas carnes. Estão podres, se decompondo depois de tantos dias no mar.




Uma tempestade, ondas enormes, um negro Malestrom que me fita sedutor. Institivamente ato minha perna na madeira deprimente que chamo de mastro com um pedaço da minha calça esfarrapada e espero. O funil se encontra ali, na minha frente. Irá me engolir, irá engolir o mundo todo. E nas suas mandíbulas de glutão eu descansarei. Vou morrer, sem chorar, vou morrer e tudo vai se acabar, como num abraço cálido ou um salto do despenhadeiro. O barulho dentro do redemoinho está além da audição. O choque das águas provoca relâmpagos dentro abismo. Eu rio alto e loucamente, até a garganta doer em toda sua desértica e salgada secura. Olho para a última janela que me revela o céu, e espero pela tonelada de água que me libertará, depois de me prender por tanto tempo. Tudo escurece no abismo e eu ouço um bater tranquilo. Acho que é meu coração.




Acordo...




Vejo paredes de pedra iluminadas por tochas. Estou numa espécie de túnel. Teria eu sobrevivido? Meu sofrimento irá se prolongar? Aonde me econtro? Em qual inferno agora, sátiros endemoniados me torturarão? Passo a mão sobre os olhos, me apoio no chão de madeira e me sento. Na minha frente uma figura toda em negro me encara, como o abismo havia me encarado há poucas horas. De repente percebo sua mão estendida em minha direção, num sinal de cobrança. Não entendo. O que ele quer? O que lhe devo? Então percebo tudo. É Caronte, o barqueiro. O Maelstrom fez seu serviço. Estou morto. Ele está me levando pelo Estige, para o Hades, e está cobrando seu óbolo, seu pagamento. Mas eu não fui velado, não tive meus olhos cerrados por amigos queridos que ornaram minhas órbitas com as moedas do barqueiro. Advinhando meus pensamentos ele recolhe a mão. Dá as costas para mim e diz numa voz não ouvida há eras: "sem pagamento...então acomode-se meu amigo. Temos uma eternidade inteira para navegar..."

5 comentários:

  1. O começo me lembrou o "Relato de um náufrago", do Garcia Marquez, mas depois descambou pra outra coisa... uma mistura de Garcia Marquez com Dante. Eita!

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  2. Adorei, entretanto, não sei o que comentar. O.o

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  3. O pior é que ele postou quse simultâneo ao meu, e agora aquele texto vai ficar mais uma vez sem comentários, hahaha!

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  4. Então, eu me encontro na mesma situação da Lorena. hahaha

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  5. Puts Márcio, juro que não tinha visto que vc tinha postado também...rsrsrs...

    Na verdade esse texto nasceu de uma conversa com a Lorena em que ela disse que não gostava de literatura de terror. E eu mostrei um livro do H.P. Lovecraft, que escreveu grandes clássicos do estilo, tipo o Chamado de Ktulu (que influenciou o Metallica em três músicas, uma instrumental homônima e The Thing That Should not be e All Nightmare Long)e Beyond the Wall of Sleep (que eu acho que não foi traduzido para o português mas que influenciou o Black Sabbath a compor Behind the Wall os Sleep). Daí fiquei ouvindo essas músicas a semana inteira, e ontem li um artigo sobre a Balsa da Medusa, esse quadro que ilustra o texto, e que foi baseado num naufrágio real, em que 147 pessoas ficaram navegando sob destroços do navio durante vários dias, bebendo urina diluída em água salgada e comendo a carne dos companheiros mortos. No final só quinze sobreviveram. Nenhuma ficção pode ser tão terrível.

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