quinta-feira, 5 de março de 2009

Estilhaços da inocência

Pedrinho. Poderia ter qualquer outro nome, afinal, era só estatística. Escolheu morar em uma esquina por fazer crescer sua esperança de que um dia, como as esquinas, ele teria o outro lado, a mudança. Aquele lado menos ingênuo, menos sofrido, menos desumano. Pedrinho era um diminutivo. Quando perguntado sobre seu emprego, porque era óbvio que apesar da pouca idade ele precisava trabalhar, fazia uma expressão confusa e quase vulgar. Um tanto de indiferença no olhar, quase ofensivo. Entendia-se que aquela criança não sabia o sentido, o verdadeiro significado de trabalhar. Estava tão precocemente acostumado com esta rotina que muito provavelmente nunca havia se dividido daquilo. Era como qualquer atitude vital que exercitava sem saber. E era irônico que o único meio que ele tinha de comprar comida um dia sim e outro não, fosse maravilhar-se todos os dias ao tocar nos automóveis importados que as mil faces de pessoas "caridosas" o entregavam pra lavar, em troca de algumas moedas. Não se sentia muito digno das fantasias e esperanças daquela esquina, dos carros com tom doce de riqueza e conforto e do sabão que utilizava como brinquedo fazendo desenhos no retrovisor. Quis ser mais bondosa e além do meu carro pra lavar, ofereci um sorvete assim que terminasse sua função divertida de ter meu carro por alguns minutos. Enquanto ele levava, para amenizar o calor insuportável desta cidade, fui tomar meu sorvete observando a hipocrisia daquele ambiente cheio de pessoas aparentemente honestas. E quando o menino terminou e me esperava lá fora, deixei seu sorvete pago que fora preparado e deixado em cima da mesa. Parada no centro do mundo peguei a chave que balançava em suas mãos fazendo barulho de música e apontei para a mesa com seu sorvete cheio de cores, parecia um arco-íris. Entrei no carro e permaneci parada no semáforo, observando a felicidade do garoto ao ver um pedaço do seu sonho a alguns metros. O menino correu e neste instante a garçonete passava ao lado de sua mesa, esbarram-se estupidamente fazendo com que a moça encostasse na mesa e a taça, até então saborosa e completa, caiu no chão. Apesar do movimento, das buzinas, das pessoas gritando, dos vendedores bradando suas mais fantásticas promoções; o único barulho que se ouvia naquele segundo era o som do sorvete se quebrando e derretendo. Como se chorasse, como se lamentasse a perda do garoto iludido. Me choquei, o sinal abriu, o menino chorou e fui embora sem olhar pra trás. Senti que aquela era a pior fustração de sua vida, acelerei e nunca mais tive coragem de voltar àquele lugar. Percebi o óbvio que era difícil encarar: a covardia dos que não fazem parte é hipocritamente disfarçada de bondade, e quando temos a oportunidade de mudar, fugimos. Um sorvete não era esmola, não era a sustentabilidade daquele ciclo vicioso de exploração do trabalho infantil. O sorvete, especialmente aquele, era um sonho adquirido, era uma poesia, era uma música, uma motivação. O sorvete era a coragem, e talvez ele jamais saberá o sabor desta coragem. Porque ela caiu, derreteu, se quebrou. Mas de que isso importa, mesmo? Pedrinho é só um diminutivo...

4 comentários:

  1. "Quis ser mais bondosa e além do meu carro pra lavar, ofereci um sorvete assim que terminasse sua função divertida de ter meu carro por alguns minutos."

    Acho que isso foi a coisa mais perversa escrita neste 'blog', neste 'mundo' que estamos 'dividindo'. Um fato é que nós somos assim: perversos.

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  2. Eu...simplesmente não consigo dizer nada...



    deus do céu...

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  3. Ramon experimentando a sensação do "quem anotou a placa?". Mais dia, menos dia, todos que leem os textos da Maísa passam por isso.

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  4. Acho que fui atropelado. Dessa vez por um caminhão... um não, vários!

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