segunda-feira, 9 de março de 2009

A arte da irrelevância

Não perca seu tempo comigo. Sou só um cachorro morto. Já não faço movimento algum, não vou morder ninguém. O único mal que posso fazer é, caso fique aqui por muito tempo, transmitir alguma doença. Fora o mau cheiro que irei exalar. Fora isso, não existe a menor razão em se preocupar comigo. Hoje, sou menos do que um objeto. Sou resultado da imprudência de alguém. Ou do motorista que me atropelou, ou de quem me deixou solto, ou da minha própria irracionalidade. De que vale agora esse seu chute raivoso? Sou só um cachorro morto. Ah, entendi. Você queria me tirar da estrada. Eu estava atrapalhando a passagem do seu carro. Eu poderia sujar seu pára-lama com meu sangue. E você não pode perder tempo comigo. Afinal, sou só um cachorro morto. Estranhamente, não sei a minha origem. Eu era um cão de raça? Se for, provavelmente pode haver um processo contra o meu agressor. Pelos danos causados, morais e financeiros. Talvez haja uma criança doente, sentida pela minha perda. Do outro lado, a defesa alegará que o motorista não pôde evitar o acidente. Se desviasse de mim, poderia atingir crianças que atravessavam a rua. Era área escolar. Havia mesmo crianças atravessando a rua? Não sei, não tenho como saber. Mas seria um álibi. E se eu não for um cão de raça? Se eu for apenas um vira-lata, um cão sem dono? O motorista processaria a prefeitura, pela falta de controle dos animais? A imprensa faria reportagem, tentaria entrevistar o secretário do setor de zoonoses, talvez o prefeito? Pra que tudo isso? Sou só um cachorro morto. A oposição provavelmente usaria os casos, tanto da falta de controle dos animais quanto da falha de segurança no trânsito próximo à escola, como pano de fundo numa campanha contra o prefeito, visando a próxima eleição. Transformariam uma coisa tão pequena, como foi a minha vida, em algo gigantesco, em nome de uma vaidade. E eu sou só um cachorro. Morto, ainda por cima.
E você, aí parado, olhando para mim, imaginando toda essa minha divagação, fica aí. Poderia estar fazendo algo mais útil da sua vida. Mas algo te atrai. Uma obsessão pela tragédia, talvez. Não deveria ser assim. Volte para o seu carro, não foi você quem me matou. Você já me chutou, isso já não tem volta. Agora, me deixe em paz. Afinal, sou só um cachorro morto.

7 comentários:

  1. O cachorro morto não quer relevância, não quer "barulho" da imprensa a respeito das causas de sua morte. O cachorro quer paz, quer que o esqueçam, quer realmente a insignificância que insistem em dizer que lhe faz parte, mas estão sempre relembrando da existência dele. O cachorro morto não se interessa mais em revirar histórias mal contadas, quer dignidade à sua morte, e sabe exatamente quem deve respeitar. O cachorro morto está tranquilo quanto sua consciência e acha melhor deixar seus assassinos contarem vitórias com o veredito do julgamento que absolveram os culpados. O cachorro morto quer se entregar à divindade de sua morbidez e continuar seu jeito especial com os amigos e compartilhar só com eles as piadas e ironias necessárias. O cachorro morto, quer realmente morrer da memória dos infelizes que dedicam a vida a disputar quem é mais hipócrita. O cachorro morto agora vive na tranquilidade de sua consciência e divide esta leveza com aqueles que lhe quer bem. O cachorro morto só quer sussurrar, porque só quem tem sensibilidade escuta. O cachorro morto quer ser esquecido, esquecido, esquecido. E talvez um mantra, uma mentira repetida, colabore para realização de sua vontade. Esquecido, esquecido, esquecido.

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  2. Um cachorro morto quer apenas um lugar tranquilo e calmo para descansar. Descansar do mundo falso se sem graça do qual ele foi retirado sem sequer expressar suas vontades.
    Hoje, morto, ele está sendo feliz. Está com outros tantos cães mortos ou esquecidos por aí. Morreu trágicamente, mas morreu sorridente, que lhe era uma marca.

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  3. Parece que a mentira tem uma força maior, um grito mais alto. Isto também mata a verdade, mata o cachorro: cachorro morto.

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  4. Poderia ter sido um humano... um mendigo... é triste, mas para muitos seria só um mendigo.

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  5. Em tempos tão indecentes, até aos cães mortos se nega a paz....

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  6. O contrário do amor é a indiferença. Bem que o mundo poderia não ser tão contrário assim...

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  7. Pode ser só um cão morto. pra mim ele é gigante, imenso, talvez morrendo de verdade, de uma vez, seja mais digno, pra ele, e pra nós também

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