sábado, 7 de março de 2009

Eis o homem...







Hipácia, pintura de Charles William, 1885.



Dedicado a Ju Almeida, que partilha do mesmo gosto ruim na boca que eu sinto quando penso nesses assuntos...








"Os homens fodem as mulheres;sujeito verbo objeto. É papel das mulheres deixar-se foder, assim como cabe aos homens o papel de foder (eles são os "fodedores"). Dessa diferença, dessa estrutura de interação do modo de atividade da sexualidade, surge uma dominação através da diferença: A diferença é a luva de veludo no punho de aço da dominação. O problema então, não é que as diferenças não sejam valorizadas; o problema é que elas são definidas pelo poder. Isso é tão verdadeiro quando a diferença é afirmada quanto o é quando ela é negada, quando sua substância é aplaudida ou desprezada, quando as mulheres são punidas ou protegidas em seu nome." (Catherine Mackinnon)





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Hipácia de Alexandria (370-415 d.C) foi a filósofa mais importante da antiguidade grega. Foi aluna de Plutarco e dedicou sua vida a ensinar e a escrever sobre filosofia e ciência. Como o ensino era reservado essencialmente ao espaço público dos mercados e das assembléias, espaço esse expressamente proibido às mulheres, Hipácia foi condenada por desobedecer às leis que organizavam a cidade e assassinada de forma brutal. Furaram seus calcanhares, passarem correias de couro pelos furos e amarraram as correias a um cavalo que a arrastou em praça pública até a morte. O pouco que sabemos sobre ela vem de correspondências e conversas registradas por seu aluno Sinesius de Cirene. Hipácia foi das primeiras de muitas mulheres violentamente silenciadas e suprimidas na história do pensamento e da construção do sentido do humano, vítima de um predomínio patriarcal na sociedade que estruturou e impôs um tipo específico de racionalidade. Um tipo que desvia propositalmente o olho do feminino, da mulher enquanto sujeito, de seu papel na formação histórica. Vemos o mundo com olhos masculinos, e as próprias mulheres, se quiserem fazer parte desse mundo, tem que se adaptar a esse olhar.




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Em 1486, James Sprenger e Heinrich Kramer publicam o Malleus Malleficarum, um dos muitos manuais inquisitoriais publicados na época, mas com uma característica bem específica. O Malleus tinha como "objeto" primordial de estudo a bruxaria, reconhecida formalmente dois anos antes pelo papa Inocêncio VIII. O Malleus inaugura um longo período que Anne Lewelly Barstow chamou de "terror misógino", e que se estendeu de 1560 a 1760, ou seja, durante a modernidade e seu fervor racionalista. A caça às bruxas, ao contrário do que nos faz crer Holywood e os jogos de RPG, não foi um fenômeno social do medievo, mas sim da modernidade. Aqui se apresenta uma coisa muito interessante: o imaginário social sempre nos dá conta de bruxas, mas tirando o Paulo Coelho e mais alguns picaretas, poucas vezes falamos em bruxos. Simplesmente porque, antes de atacar a bruxaria, a inquisição pretendia eliminar As Bruxas. Cerca de 85% dos acusados em processos de bruxaria eram mulheres, os homens geralmente eram acusados por relações de parentesco e afinidade com essas mulheres. Estima-se que duzentas mil mulheres tenham sido acusadas, das quais cem mil morreram queimadas, enforcadas, torturadas em prisões. Grande também era o número de mulheres que eram induzidas ao suicídio por tormentos físicos e psicológicos dos mais diversos. A distinção física das bruxas não apresentava nada de particular, somente a descrição de mulheres velhas e feias, muito comuns numa época em que elas eram tratadas das maneiras mais grotescas e que as condições de vida, sobretudo do campesinato, não eram nada fáceis. Entre as que mais se encaixavam no esterótipo de bruxa estavam as parteiras e as curandeiras, por seu conhecimento de segredos medicinais, mas não há como negar que as vítimas preferidas dos inquisidores eram as mulheres que não seguiam os padrões sexuais da época. Um trecho importante do manual é dedicada à descrição das mulheres que se permitiam relaçõs sexuais com demônios e de que forma se davam essas relações. Um rol exaustivo de posições e segredos sexuais entre mulheres e demônios é estampado no livro, o que demonstra um sadismo exacerbado dos inquisidores. Uma citação do livro diz: "Uma prática comum a todas as bruxas é a cópula carnal com os demônios. As bruxas têm sido vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos bosques, nuas até o umbigo; e pela disposição de seus órgãos próprios ao ato venéreo e ao orgasmo, e também pela agitação das pernas e das coxas, é óbvio que estão a cúpular com um Íncubo" Existe aqui uma conotação não só sexual, mas sensual, narrativamente construída. Em verdade os inquisidores projetam nas bruxas seus desejos sexuais castrados pela castidade que a profissão religiosa os impõem. A orgia das bruxas é a orgia que eles queriam participar. "Os inquisidores perseguem e querem anular, queimando vítimas, os próprios desejos sexuais sádicos, incestuosos e perversos, intoleráveis neles, e que por identificação projetiva colocaram nos entes malignos e nas bruxas" (Amina Maggi Piccini). Não é a toa que a marca do Diabo, a prova cabal da bruxaria só podia ser encontrada num ritual que envolvia a penetração da vagina da acusada por objetos pontiagudos como agulhas e punhais. Pois é, Freud explica...




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Ciudad Juarez é um dos pólos industrias do México e uma importante cidade turística desse país. Um fenômeno interessante acontece no país pelo menos desde o início da década de noventa do século passado. Mulheres, em sua maioria jovens, solteiras e de estatura mediana, são estupradas e mortas, geralmente encontradas com o rosto deformado e as mãos decepadas. Estima-se que 340 mulheres tenham sido mortas até hoje. Mas elas não são mortas "simplesmente". Há toda uma ritualística e uma mensagem inscrita nos corpos das moças de Ciudad Juarez. Como placas de carne morta há um recado cravado ali, no oco de suas feridas. Os crimes não são meros crimes contra o costume, cujo objetivo principal é possuir e violentar a vítima. São crimes de segundo Estado, cometidos pela camarilha formada por grandes industriais e os cartéis de droga da cidade. Rita Laura Segato, estudiosa brasileira que foi ao México estudar os crimes de Ciudad Juarez, e quase foi morta por isso, diz que os crimes se iniciaram como uma forma de reprimir as revoltas sindicais dos trabalhadores de Juarez, mas depois se tornaram parte de uma linguagem social local, parte da própria estrutura de poder da cidade, e mesmo com o fim das manifestações sindicais os crimes continuam. Ciudad Juarez é o perfeito exemplo de uma estrutura patriarcal construída sobre a violência e que se almaga à estrutura misógina própria das sociedades ocidentais.




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Há algumas semanas Sebastião se inquietava na presença dela. A percepção de que ela havia mudado já lhe era bem clara àquela altura. Tinha crescido, incorpado, ganhado seios e coxas. Desfilava pela casa vestida com roupas largas que eram de sua mãe, já que suas roupas de menina não cabiam mais. De vez em quando um movimento mais largo fazia despontar um ombro, ou criava um vão no decote que permitia ver de relance os pequenos mamilos rosados. A mãe insitia em ensinar-lhe a se portar, a como andar e sentar para não se revelar tão despudoradamente. Mas era tudo uma brincadeira pra ela. Mas Sebastião se preocupava, se preocupava muito. Ao chegar do trabalho um dia, a flagrou de conversa com o vizinho, o Roque, filho da Dona Cláudia. Ficou mais preocupado, Roque já tinha idade pra reconhecer e se aproveitar de uma menina formosa como sua filha. Proibiu-a de falar com ele, e nas poucas vezes que soube de desobediência a espancou violentamente. As brincadeiras e a proximidade com o irmão o preocupavam também. O jeito que se roçavam e rolavam no chão não poderia terminar em boa coisa. Economizou dois meses e comprou material pra construir um quarto pra ela sozinha. Fez o pequeno cômodo e a menina adorou. Sentiu um pouco de medo em dormir sozinha pela primeira vez. A mãe lhe fez companhia nos primeiros dias. Um dia o pai se ofereceu pra fazê-la dormir. "Vamos, minha filha?" Deitou-se com ela e acompanhou com os olhos o leve movimento que seu peito fazia ao respirar. Sentia-se nervoso, suado, pesado. No meio da noite saiu em silêncio, pegou uma dose de cachaça e virou. Não dormiu bem desde então. As noites se amontoavam e os receios que tinham se transformaram em medo. Ela não era mais um menina, cedo ou tarde algum aproveitador a enganaria e abusaria dela. Homem nenhum presta e ele tinha que protegê-la deles. Ela não poderia se entregar pra qualquer um. A cachaça o ajudava a relaxar. A ver as coisas com clareza. "Tenho que proteger minha filha, ela é minha, só minha". Naquela noite não voltou do trabalho na hora, foi beber, andar, pensar. Chegou de madrugada, bêbado, com as têmporas em brasa. Bateu na porta do quartinho e disse: "abre, é o pai". Ela abriu, sonolenta e ajeitando a camisola. Não estava entendendo nada. Ele a segurou pelos ombros e deitou na cama: "vou te proteger, você é minha filha, minha, ninguém vai fazer nada com você, eu não vou deixar". Seu rosto estava muito próximo do rosto dela, o suficiente para que as lágrimas dela o molhassem. Ela não gritou, não pediu ajuda. Ficou ali parada, chorando em silêncio, enquanto ele sussurava que fazia aquilo para o bem dela, para protegê-la. Ela era dele, foi o que ele dissera. Era o que todos diziam. Era propriedade, posse dele. Utendi e abutendi, usar e abusar, os direitos do proprietário que protege o que é seu. Com o peito molhado das lágrimas dela, ele se dizia isso...




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O Arcebispo de Olinda excomungou a mãe e os médicos envolvidos no aborto da menina de nove anos grávida devido aos abusos sexuais que sofria do padrasto. Como se já não houvesse dor e maldade suficiente no caso. É a religião do amor e do perdão, que protege o fraco e o caído. Pois é...






Amanhã é o dia internacional da mulher...amanhã, sempre amanhã.





4 comentários:

  1. Eu estou chocada...

    Com uma sensação de que não vejo ou não quero ver certas coisas. Sensação de que apesar de algumas mudanças (em nome de muitas mulheres que morreram pra que certas mudanças acontecessem), parece que tais mudanças só aconteceram na "teoria". Muito ainda se acontece na vida subliminar, nas entrelinhas.

    E pra não fazer um texto maior que o seu aqui, vou resumir em: não acredito em ser humano, principalmente homens, não-machistas.

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  2. É, jamais acreditarei no discurso politicamente correto século XXI de qualquer cara que se considere 'não machista'. Isto não existe. As coisas mudam de roupa, de cor, de nome... mas continuam as mesmas. Os mesmos preconceitos. Nunca olham muito além do que a idade física revela.

    E os 'incentivos' masculinos às mulheres? Apenas outra forma de nos tornar, ou deixar-nos, mais submissas.

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  3. Além de excomungar, o tal religioso ainda alegou que o aborto é pior do que o estupro, como se houvesse parâmetro de comparação. "Estupra mas não mata" remasterizado. Era o que faltava.

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  4. (Juliana Almeida)

    Quando é que veremos o fim do patriarcado?"Tu serás pai se eu quiser,quando eu quiser."Mais um texto brilhante de um cara brilhante...Quando é que 100 por cento dos homens pensarão assim?..que 100 por cento das mulheres pensarão assim?

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