terça-feira, 24 de março de 2009

O limite da negação

Há muito tempo Anna não conseguia se entregar a nada, não conseguia seguir os seus projetos, ou gostar do que já criara. As poucas coisas que ainda a agradava estavam expostas nas prateleiras de um bar e nas bibliotecas. E por mais que tentasse ‘tirar’ do pensamento certas idéias, ela não conseguia.

Um amontoado desordeiro de palavras, vez por outra, surgia em sua mente, e desviava todo o curso do dia. Ela passou horas incontáveis lutando contra si, contra aquela ‘idéia fixa’; e não queria ouvi-las, nem escrevê-las... Mas foi em um bar, sentada dentro daquele ambiente onde as verdades nunca se mantêm em segredo, que ela fraquejou. E numa mesa suja de um bar sujo, de uma vida suja Anna esperava incansável por algo, por algum momento, uma chance de mudar, de se vingar, ou de apenas conseguir seguir em frente sem precisar vencer o passado. Abriu sua bolsa velha e rasgada, tirou de dentro dela um caderno onde anotava frases soltas em sua mente e na sua vida –ela dizia que tudo o que há de sincero na vida é dito sem ordem, pois as poucas verdades que aceitamos a ouvir são aquelas que nos obrigam o acaso- e escreveu, sem muita certeza do que ouvia de si para consigo, as seguintes palavras: “Às vezes sinto os meus ossos se arderem, sinto o meu corpo todo num frenesi, numa explosão indiferente a todos os que me observam, a todos os que me ignoram, que ignoram meus sonhos. Num gole intragável de satisfação, faço deste tempo doente meu leito esterilizado de tudo o que não deveria ser; a menos que eu desejasse, com todos os sons que poderia proferir os meus anseios amedrontados pelo pavor de perdê-lo.”. E Ela dá um último gole no conhaque barato, apaga o cigarro no copo, levanta-se cambaleante e vai embora.

Ao cruzar a porta do bar, dá de cara com o mundo, com a rua: a indiferença. Ouve, do som de um carro que passava, “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho.”, mas não prestou atenção ao resto da música, apenas riu de si para consigo um riso debochado, descrente e auto-irônico; arruma a gola amarrotada de sua blusa e segue, acompanhada da solidão. Ambas seguem o mesmo caminho, têm o mesmo destino: um apartamento calmamente escuro. E lá não há ninguém à espera. Apenas livros e bebidas. O amor era, à época, uma tatuagem que ela encobrira, que ela tampara, escondera de si mesma. E a noite seguiu quase que de costume, pois ela percebeu que muitas vezes vencer a si mesmo é se machucar, é dobrar o óbvio necessário e enxergar que muito além da crença da vitória, existe a necessidade de enterrar vivos passado e medo, e decidiu jamais tatuar no seu corpo amor que fosse. E aquilo que pudesse prender ela libertaria: nunca, outra vez, se daria ao que desejasse grades e cadeados.

6 comentários:

  1. Cada dia que passa, tenho mais certeza de ter feito as escolhas certas! Genial o texto! E termina meio em sincronia com o que postei no meu blog pessoal, a questão das grades! Parabéns!

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  2. Cara...a Lô e a Maísa dão umas sacudidas emocionais na gente que, puts...fico sem palavras...sem palavras...

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  3. Putz Lo, a cada dia tu escreve melhor, parabéns, muito bom o texto, como sou chato tu sabe que não irei dizer que foi genial rs

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  4. Nós entendemos porque estas coisas nos deixam presos. Fugimos dos cadeados, das algemas, mas estamos sempre dispostos a nos prender, quando algo não habitual nos surge. É como se o trauma fosse seguido de uma calmaria. E então, quando percebemos que o "campo é seguro", lá estamos presos de novo. Talvez seja esta idealização de aprisionamento que devessemos condenar de nossas vidas, não os relacionamentos humanos em si. Acontece que, por culpa do passado ou da história, está tudo tão diretamente interligado que não sabemos a maneira certa...

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