quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

"...rebuliço no cortiço..."

A porta estava aberta. Assustou-se

Entrou em casa e encontrou tudo revirado. “É ele. Só pode ser ele.”

Seu filme favorito estava jogado no chão, quebrado. Era pessoal. Era um recado.

Não ignorou o silêncio. Procurou por seu cachorro. Chamou. Não houve resposta. Vasculhou os cômodos, mas não o encontrou.

Sentiu uma súbita vontade de mijar, foi ao banheiro.

O banheiro era branco com detalhes em metal. Havia uma pia, vaso, cortina, escova de dentes, touca, uma vodka, toalhas, meias, calcinhas, camisa de futebol, um livro, palavra cruzadas – ouvi dizer que seu intestino era preguiçoso -, chuveiro, secador de cabelos, tesoura, shampoo, sabonete, bucha, creme, copo, rádio, cigarros, fósforo, caneta, tapete, pinça, absorvente, e o que ela mais gostava no banheiro, a banheira: grande, com hidromassagem.

Me disseram que ela chegava em casa, brincava com o cachorro, subia ao banheiro, enchia a banheira, abria a vodka, entrava na água, afundava a cabeça, prendia a respiração, abria os olhos, soltava o ar devagarinho e levantava. Bebia da vodka, da garrafa... e fazia tudo outra vez. Saia. Sacudia o corpo. Se secava. Botava roupa seca, e ia pôr comida pro cachorro.

Na cozinha, abria uma cerveja, dava um pouco pro bicho. Comia salada. Não gostava de carne. Ligava o som, dançava... e o cachorro corria atrás dela, e mordia seus tornozelos... queria brincar, só fazia isso.

Quando entrou no banheiro, viu o cachorro... e o sangue: estava morto. Um cheiro de vodka, sangue, cerveja e cigarros impregnado no ambiente.

O cão estava morto, dentro da banheira. Seu sangue misturado com a água, a vodka, a cerveja, e o cigarro. Na banheira havia tudo o que ela mais amava.

Final 1

Ficou em pé, diante da banheira, olhando o quadro: “Lynch, seu bastardo.”

Riu.

Saiu.

Desceu à cozinha e abriu a geladeira; encontrou uma faca suja de sangue.

Havia ainda uma cerveja.

Bebeu.

Final 2

Olhou a cena, o sangue: Lynch, seu bastardo...

Olhou o banheiro... gravou a cena na memória... sentiu uma leve tonteira... desmaiou...

Acordou, tempos depois.

Se levantou, tirou a roupa. Cortou a mão, deixou que seu sangue escorresse pelo braço e caísse na banheira.

Entrou , e fez parte daquela imensidão morta, de amores: a moça, o cachorro, a banheira, o sangue, a vodka, a cerveja e o cigarro.

Restava ainda um pouco de vodka na garrafa. Bebeu. “Aquele patife miserável...”

Saiu da banheira, se lavou na ducha extra. Vestiu-se.

Telefonou.

- Eu vi o que você fez. Não estou me sentindo bem. Venha aqui?!

Ele foi. Ela o beijou a face. Ele tirou a roupa e a abraçou. Ela Enfiou uma faca em suas costas... Seus olhos ainda a olhavam... Ele sorria.

A moça postou o corpo do assassino de cervejas dentro da banheira, da grande banheira que comprara... Esperou.

O olhar do rapaz se tornou aflito... ela tapou sua boca, com uma camisa... Ele morreu.

Ela, outra vez, entrou na banheira. Adormeceu.

Acordou espantada. Gritou. Desmaiou.

Acordou. Sorria.

Se lavou e se trocou.

Pegou uma carta, leu, queimou e riu.

Ouvi dizer que eles combinaram. Eram fanáticos em Lynch e Jodorowsky. Ele fez sua parte, ela não. Ele se matou. Ela o traiu, deveria estar morta.

Ela deixou o pó da carta sobre o chão. Desceu. Abriu a geladeira.

Bebeu uma cerveja...

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Ela flutua


Ela flutua. O pensamento longe, longe. “A vida é como um jardim”, concluía em suas divagações. "Cabe a nós ir aparando os galhos, molhando as raízes, tirando as ervas daninhas, colhendo algumas flores, se sujando com a terra, se machucando com algum espinho".

Espinhos. Quisera ela que as luvas que comprara a protegessem deles. Mas não, o espinho ultrapassa a luva, machuca, sangra, deixa marca. Conviver com a marca é o desafio. Pode ser benéfico. Passar a mão naquela cicatriz, lembrar do motivo que ocasionou a ferida, constatar que a vontade era apreciar a beleza de uma rosa. Uma lágrima rolou. Mas não deixou de se encantar. A rosa continua lá, exibindo sua delicadeza, contraposta com a imponência do espinho. “Deve ser como um escudo”, pensou. “Às vezes, a delicadeza pode causar danos a nós mesmos”, continuou, enquanto enxugava as lágrimas. “A rosa não deixa de ser ela mesma por causa deste mecanismo de defesa. Já a gente não, fica mais cauteloso, tenta se prevenir, se predispõe a achar que a rosa é má. A gente fica mais agressivo sem perceber, por medo. E o medo deveria ser uma mola propulsora. Uma chance de mudar o caminho, sem desviar tanto do objetivo final”. E pensando nisso, foi cuidar das plantinhas ao redor. Um sorriso insiste em pairar no seu rosto. E com os pés no chão, ela flutua.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Fundamentalismos

Os Estados Nacionais se formaram para evitar que as guerras confessionais consumissem a Europa. Reclamando o monopólio do político e da jurisdição, impuseram ordem a conflitos religiosos que ecoam até os dias de hoje. Contudo, o Estado não nasce laico. Todo o pensamento hobbesiano sobre a soberania, por exemplo, só tem sentido se considerarmos sua afirmação essencial e diversas vezes repetida: Jesus is the Christ! Hobbes defendia uma separação política entre fé e confissão. Fé é na religião oficial do Estado (que Hobbes via como indispensável), confissão é minha fé particular. Com o advento do individualismo liberal o segundo conceito acabou por se impor ao primeiro, e a confissão religiosa privada ganhou sua dimensão intocável e sagrada, mas,ainda, privada. Assim como as regras de piedade grega começaram a abarcar estrangeiros para facilitar o comércio, o respeito à confissão do outro se tornou necessário para possibilitar a expansão econômica dos Estados modernos, crentes confessos do binômio trabalho/riqueza. Sua laicização acompanhou sua transformação em garante supremo do mercado. Marx já dizia que tudo o que era sagrado e nobre acabou sendo substituído pelo pagamento à vista, e religiões oficiais impediam isso.

Em verdade, somente nessa dimensão podemos enxergar uma secularização real dos Estados.Herdeiros da racionalidade jurídica católica, todos seus ritos e procedimentos estão imersos na necessidade de reafirmação (re-ligare) própria das religiões. E é isso que atraiu as massas nos Estados. Baudrillard já dizia que nunca as massas foram realmente religiosas, elas gostam mesmo é do espetáculo religioso, do ritual, maravilhoso e incompreensível que se desfralda em sua frente. De certa forma, permaneceram pagãs, substituindo sua miríade de deuses e deusas por santos, heróis da fé, penitentes. A religião? Essa continuou sendo uma dimensão teórica, distante, abstrata.

O crescimento desvairado do número de igrejas evangélicas no Brasil nada mais é que fruto dessa realidade mais antiga. A apropriação por seus membros de boa parte do nosso legislativo é consequência dos próprios mecanismos "democráticos" que privilegiam a soma de vontades privadas em detrimento da construção de uma vontade pública, e da incapacidade do Estado laico em responder aos anseios de boa parcela do população, que busca essas respostas nas palavras do pastor. A igreja diz que vou ficar rico, o Estado me oferece salário mínimo, pense bem...

A questão é: estabelecer a religião como inimiga do Estado de Direito é um tremendo equívoco. Defender a laicidade com o mesmo empenho que os religiosos defendem sua fé, também. Há sempre uma parcela indelével de insanidade que nos marca quando apontamos a irracionalidade de alguém. Escrevo essa linhas apressadas após ler esse texto que praticamente sugere uma Jihad pelo Estado laico, com a oposição de uma bancada secular à bancada teocrática (péssimo uso do termo teocrático) e cria uma impossibilidade entre monoteísmo e democracia (???). Seguindo esse último raciocínio democrática era a Índia dos milhões de deuses e das mil castas.

Eu entendo a posição do autor. Acho ofensivo ver crucifixos em repartições públicas, sentenças baseadas em cartas psicografadas, dinheiro público custeando todo tipo de obra e propaganda religiosa. Mas, aonde fica minha laicidade, se eu a transformo em minha religião, querendo imputá-la como credo, baseado no "sagrado" texto constitucional como se fosse tirada da Bíblia. Meu arrepio diante do que me ofende, me autoriza a agir como quem me ofende? Seria isso cristão? Budista? Islâmico? Seria isso, em última instância, constitucional?

Não deveríamos pensar em fortalecer os mecanismos e formas obsoletas do Estado Nacional, mas superá-los, transcendê-los. Mais do que uma bancada teocrática, o que impede a realização do Estado Democrático de Direito é sua conversão em um dogma vazio, formal, natimorto, eivado pela obsolescência da própria forma democrática dentro de um sistema econômico e social excludente, que só autoriza a democracia formal. E então chegamos à essa condição, em que o Estado laico é defendido através das estratégias de seu "inimigo", lançando mão de suas formas autoritárias e dogmáticas. Fundamentalismo trasvestido de democracia. Palavra da salvação (Constituição da República Federativa do Brasil, atigo 5, VIII), nós, representantes do povo brasileiro...sob a proteção de Deus...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Rádio Bogotá

Estou em Bogotá participando de um Congresso. Já é minha segunda vez aqui e recomendo fortemente. Tudo na cidade impressiona, até mesmo aqueles que não curtem muito dar uma de turista. Apesar de ser meu retorno à cidade, não tinha ouvido as rádios com atenção. Mas há dois dias atrás fiquei surpreso com a descoberta das rádios daqui. São ótimas. O que me deixou mais impressionado foi o fato de que todas as músicas são apresentadas com sua ficha completa, nomeando não somente os músicos que a interpretam, mas os compositores, o disco e o ano em que foram lançadas, em que país, etc. Num programa dedicado à música brasileira, com um respeito quase devoto, falaram de cada um dos artistas que tocaram, de Jorge Ben à Tulipa Ruiz, contextualizando suas músicas em relação à época e à região do país. Cometeram algumas impropriedades ao tentar relacionar toda a música do nordeste com disputas entre trabalhadores rurais e proprietários de engenhos de açúcar, (rsrsr) mas tudo bem, pra compensar fizeram um ótimo retrato da região, falando sobre seu litoral, sua economia, sua arte. Tentam falar o máximo possível sobre as músicas, mas sem cansar e te tentar a mudar a sintonia.

E essa regra não se aplica somente à músicas estrangeiras, que geralmente são de países latinos, não ouvi nada em inglês desde que cheguei. Todas as músicas recebem o mesmo tratamento, até mesmo a quase onipresente salsa, que toca o dia inteiro nos ônibus, elevadores, lojas, táxis, tem suas canções, que já são de uma familiaridade muito grande de todo o povo, apresentadas com grande entusiasmo.

As rádios brasileiras desaprenderam a fazer isso há muito tempo, assim como desaprenderam a tocar música brasileira que não seja da pior qualidade, como mostra o monopólio irritante do sertanejo universitário nas rádios. Quando não estão tocando essa b*st* estão tocando porcarias estrangeiras, como Justin Bieber. Os compositores não existem para as rádios, músicas que não sejam comerciais o suficiente também não, e esse é um conceito muito restrito. E isso, mesmo que hoje as rádios não tenham a penetração de outrora, é muito grave. Estamos nos acostumando a esse tratamento pobre em relação à música, e as rádios brasileiras contribuem muito pra isso.



segunda-feira, 25 de julho de 2011

O teatro e seu verdadeiro duplo...


Minha esposa é uma fã incondicional do Teatro Mágico. Eu não. Respeito a vontade e a dedicação deles,mas não vejo nada de especial no que eles fazem. Até já elogiei o resgate da estética do clown e tal, mas ainda assim, não vejo nada demais. Mas casado com uma fã é normal que nas discussões sobre música apareça a trupe de Osasco no assunto. O mais recente ponto de discussão foi o título do próximo álbum, "A Sociedade do Espetáculo". Na hora me veio à cabeça "O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel" e veio o facepalm imediato. Mas depois veio a explicação: o título é retirado da obra "A Sociedade do Espetáculo" de Guy Debord. O facepalm demorou a vir aí,mas veio bem mais forte. O livro de Debord foi escrito na década de 60, e inaugura, em conjunto com Lyotard e outros pensadores europeus a crítica da pós-modernidade. O que une os autores que estudam esse período histórico é uma visão um tanto desolada e pessimista da pós-modernidade. Uma época fluida, impossível de ser caracterizada totalmente, mas que gera a forte convicção de que o projeto da modernidade racionalista falhou e estamos à deriva num mundo sem razão, sem deus ou qualquer outra metanarrativa que marque nossa época. Debord, apoiado em autores como Marx, Bakunin e Lukács, enxerga nessa perda de 'sentido' da pós-modernidade uma abertura para a tal "Sociedade do Espetáculo", em que tudo e todos perdem em interioridade, em sentido, mas ganham e cultuam a exterioridade, o espetacular. De forma macro, Debord mostra como o capitalismo de mercado ocidental se transformou num gigantesco espetáculo, onde a liberdade de comerciar é encenada como a liberdade tout court, onde o único valor do homem é aquele que pode ser medido através de sua contribuição para o espetáculo da produção e do consumo. Do outro lado, a tragédia soviética mostra a espetacularização do Estado. Estruturalmente falido, mas exteriormente assustador e impressionante. O homem, reduzido a peão do Estado. O espetáculo, como substituto do sentido, atrai tudo e todos, numa entropia que mata o religioso, o pensar, e a própria arte. Canetti e Baudrillard mostram como isso atrai as massas, cada vez mais avessas à qualquer mensagem ou sentido. Enquanto a religião se reduz a um espaço de teólogos, padres e especialistas, cada vez mais os rituais religiosos atraem as massas. O significado do ritual pouco importa, importa seu espetáculo. Na sociedade do espetáculo procissões e micaretas tem o mesmo sentido, a mesma função de papéis de pegar-mosca voltados para a massa. O corpo também é tratado de forma espetacular. Do esvaziamento pessoal que leva à hipertrofia do corporal surgem monstruosidades como a obesidade desnutrida dos países capitalistas, epidemia irmã da anorexia que vitima boa parte dos que buscam um corpo nos padrões de beleza. A "Sociedade do Espetáculo" exige modelos magérrimas, mas exige que se coma no Mcdonald's. A medida da arte se torna o próprio espetáculo. De Michael Jackson à Lady Gaga, passando pelo Cirque du Soleil, o que importa é o quão colorido, o quão barulhento e impressionante seja a coisa. Não sei se o Teatro Mágico usou o título do livro para se identificar como uma sociedade do espetáculo ou vão trazer no álbum uma crítica a ela. Mas isso pouco importa, realmente. Inconscientemente entregaram ali o que a mistura de "poesia", circo e música que eles pretendem fazer é em verdade: um espetáculo em que se embala de forma colorida e "poética" a ausência de sentido real. Por isso o que eles fazem funciona bem no palco, ou mesmo em um DVD, mas é sofrível num CD. É monótono, liricamente pretensioso, pobre, incapaz de se sustentar como música. Mas funciona como espetáculo. O ato falho da escolha do título vai passar desapercebido aos fãs, é claro. Tem luzinhas demais, maquiagens demais, cores demais para que eles vejam qualquer coisa. Deviam ter dito que o título se relaciona ao livro do Tolkien mesmo. Soaria pretensioso e engraçado, uma espécie de dinastia parangoleira, mas não entregaria o ouro tão facilmente.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Mucama de ninguém

No parco lençol branco com cheiro de laranja, definhava deitada na cama que simbolizava ao mesmo tempo tanta vida, tanta morte, tanta vida-morte. 

Recordava o tempo, o seu tempo, ainda que negasse esta filosofia do próprio crepúsculo e tentava não vivê-lo com a alma. Boca humildemente seca, dedos desgastados pela labuta de tantos tanques de roupas desbotadas ganhando vida com sua força: o sacrifício do próprio corpo exercendo a sua função no mundo. A doença parecia um destino já aguardado, quase que pressentido, desejado. A doença era, como todas as outras coisas em sua vida, o conformismo em relação às suas ações perante a idade. 

Refletia sobre a sogra que cuidou até os últimos segundos do câncer, naquela mesma cama. Refletia sobre o marido que enterrou limpando o sangue com aqueles mesmos lençóis. Refletia sobre os filhos, metade responsáveis por sua desgraça, agentes deste universo de coisas vazias; outra metade perdida durante o parto. Os filhos que criou e que já não via há algum tempo - não os culpava, pois também não amava, embora jamais conseguisse verbalizar esta ausência de sentimento - e os filhos que nasceram mortos, estes amava mais. Refletia também sobre a ironia contida nestes filhos que não nasceram, nem morreram, porém existiram. Quão estúpida é a natureza em subverter-se. Quão insignificante é o que chamam milagre do nascimento, posto que a vida pode passar-se ao contrário, esquecer sua lógica e surpreender com um último suspiro antes do primeiro ser dado. 

Refletia sobre a irmã parteira que morreu segurando sua mão e lhe dera um livro. Livro este que ela, velha e analfabeta, segurava agora, com pouca indulgência nas mãos, mas que gostava de folhear. Sua página preferida esboçava um desenho de mulher parecida com ela: surrada, de olhos sofridos, rosto marcado e que, assim como ela, parecia esperar a morte chegar. Mal sabia que, naquela mesma página, a frase de letras mais escuras, talvez fosse uma premonição que sua alma experiente com certeza leu: "pelo menos não serei mais a mucama de ninguém". 

sexta-feira, 17 de junho de 2011

E ela se jogou...

Infeliz. Sempre infeliz. Olhar fixo para tudo e nunca entender nada do que viam: era ela.

Sempre lhe questionavam incredulamente "você nunca consegue enxergar o que está na sua cara?", e ela nunca via, nunca fitava a vida daquele jeito, do jeito deles, ou como queriam.

Um dia ela abriu um vinho, tomou. Ela adorava mitologia grega. No primeiro gole ela gargalhou, queria se chamar Ares, mas não entendeu o porquê.

Ligou o som. Dançou. A garrafa esvaziou, ela estava bêbada. Pegou um caderno, sentou no chão e escreveu. Escreveu muito, tanto, a noite toda. Achou tudo aquilo que estava no papel lindo e inteligente, mas de uma forma que apenas ela entenderia, ela, aquele ela. Somente ela poderia decifrar. Dormiu.

Acordou tarde, às dez da manhã. A cabeça doía, mas pela primeira vez se sentiu viva, sentiu alguma coisa, era uma sensação de medo de um futuro desgastado. Ela podia tocar suas veias, seu sangue correndo, sua divindade.

Abriu o caderno, mas não entendeu absolutamente nada, a não ser uma frase imperativa "mude seu nome, nosso nome", e ela compreendeu: abriu outra garrafa de vinho e decidiu chamar-se Julia.

Julia nasceu enquanto outra morria. Era nascimento alimentando-se de morte, abandono. Se matou, se criou...


... e agora Julia compreende tudo. Sim, Julia compreende absolutamente tudo, mas o vazio continua vazio, pois há muito tempo o vazio está tão cheio...

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O que é exatamente se jogar?

Pequena reflexão sobre um dos clichês inevitáveis da vida: as embalagens do achocolatado, o rótulo na garrafa de cerveja e o slogan do carro popular e suas frases imperativas. Às ordens, senhores de nossas vidas! 

Nos ordenam ir à caça, ao mergulho, a sermos nós mesmos, a nos jogarmos, a nos intensificarmos. Que covardes seríamos esperar pacientemente que o mundo mude, ou ainda, deixar com que uma marca nos diga quem devemos ser, não é mesmo?

Por outro lado, os dogmas, ou os mesmos rótulos, mas desta vez do telemarketing da funerária, do vendedor de carro tentando nos convencer a comprar o do airbag ou a empresa de segurança. Nos mandam não fazer nada que possamos nos arrepender depois. Dizem que toda ação tem uma reação - Newton discordaria disso, obviamente. Repetem que aqui se faz, aqui se paga.

Uma campanha limitada cheia de proibições e permissões desconexas tentando definir o que é ser livre. Temos a opção da margem e a do mergulho, mas o risco do afogamento é eminente. Além da absurda vontade de encontrar o oceano que esperamos, se jogar neste mar gigante é imoral, ilegal e engorda. O prazer é inegável, suportar julgamentos ignorantes dos que não suportam um ritmo diferente, é o desafio. Demanda coragem, já que as consequências provenientes do enfrentamento não são poucas. 

Descobrir quem somos é um eterno exercício de desconstrução e até saber minimamente sobre isso, nunca conhecemos o que queremos da vida. Se jogar é a tentativa de entender tudo de um jeito mais adequado a nós mesmos. O quanto pretendemos perder, ganhar, nosso conceito de valores, o contexto em que decidimos, o nível de importância de cada fator fragmentado de nossas vidas. Prazer e tortura fatídicos.

Mas penso que, a maior tragédia é viver com a dor de não ter tido a curiosidade de se aprofundar em si mesmo: a única coisa que realmente importava no fim de tudo. Afinal, todo o resto, o que fazemos pra deixar pro mundo, mesmo que nada, é uma extensão do que começamos - ou não começamos - em nós. 

Enjoy.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

No Requiem

Heidegger dizia que um dos caminhos para uma vida inautêntica é o falatório sem razão. Talvez por acreditar nisso minha participação nesse blog e no twitter tenha diminuído consideravelmente. O mais provável é que meu falatório tenha se dirigido para outras paragens, como minha dissertação de mestrado que finalmente terminei. O fato é que estou afastado daqui há um bom tempo. Mas todo esse falatório sobre a morte de Osama Bin Laden me fez retornar a esse espaço propício para falatórios. Um texto de André Forastieri, que pode ser lido aqui me motivou a isso. Forastieri escreve bem, sempre escreveu, seu uso das palavras é inteligente, concatena ideias que a princípio parecem não combinar com uma facilidade impressionante, mas muitas vezes ele escreve sobre coisas que desconhece totalmente. Política internacional parece ser uma delas. Dizer que o texto sobre o caso Osama é ingênuo é pouco. Essa coletânea de clichês liberais disfarçados de defesa dos direitos humanos beira aquela má-consciência própria dos colonizados, que vivem como os colonizadores, querem as mesmas coisas que eles, mas ainda assim os condenam. Por partes: não era possível julgar Osama Bin Laden. Um tribunal americano que o julgasse teria que seguir regras penais muito restritas, que não abarcam seus atos terroristas. Ademais, às ameaças e chantagens terroristas que pipocariam pelo mundo enquanto o processo se desenrolasse se somaria a pressão internacional de países que teriam razões para julgá-lo também e de países que chamariam a prisão de ilegal, por violar a soberania do Paquistão e não se adequar aos procedimentos internacionalmente reconhecidos. Chamar Bin Laden de criminoso é uma simplificação irresponsável da questão. Como ele transcendia a posição de criminoso, um julgamento seria inútil. Se condenado à morte, o ínterim entre sua prisão e execução só faria crescer a mística ao redor de seu nome, e uma vez executado, sua posição de mártir estaria garantida, muito mais do que a ação fatal dos americanos no último domingo poderia garantir.
O caso aqui não é de escolha, o trágico aqui é que Bin Laden não poderia ter um outro destino. Como um refém dos próprios atos ele era um morto em vida e sabia disso. Um tribunal internacional, como queria Forastieri, não teria competência jurisdicional para julgá-lo, ele não era um criminoso de guerra. Não havia guerra, não havia o confronto entre unidades políticas reconhecidas internacionalmente. Havia a tentativa de extinção de um modus de vida por um lado, e uma reação igualmente violenta do outro. O Partisan, o guerrilheiro, o terrorista, não é um soldado, não responde a nenhuma pátria, não age sob nenhum pálio de legitimidade a não ser a própria crença de que faz o melhor para seu povo, o que impede que seja julgado por um tribunal fundado para lidar com crimes de guerra. O fim das guerras de conquista tradicionais abriu espaço para esse tipo de massacre que Osama impetrou, e a pseudo religião da humanidade cria a ilusão de que um processo, um julgamento e procedimentos públicos seriam a forma ocidental de lidar com isso e resolver o problema ao mesmo tempo que se mostraria superioridade. Falácia purinha, dos que acham que política é mera administração de finanças públicas, que todos merecem o mesmo tratamento, mesmo os que lançam aviões contra civis, que tudo se resolve pela lei e pela constituição. Bom, no mundo real não. Com a vitória do conceito de humanidade, os inimigos que existem se tornam inimigos da humanidade, desumanos, e a eles somente o trato desumano pode ferir. O lado fundamentalista do islã pensa assim, ao tentar desmoralizar o ocidente como "o grande Satã", o lado fundamentalista ocidental também pensa assim, ao identificar esse fundamentalismo como "o Mal", nas palavras do incompetente George W. Bush. O terrorista é "o Mal", não é só um inimigo, e por isso qualquer método contra ele se justificaria, o americano é o "grande Satã", também não é só um inimigo, e a vitória sobre ele passa necessariamente pela humilhação e o massacre. Aqui não cabem processos, direitos e garantias, não é um caso jurídico, é político, e político em seu sentido mais existencial, na sua inevitabilidade. Mais do que necessária, a ação americana contra Osama Bin Laden foi inevitável. Ele pairava sobre as jurisdições e poderes constituídos como um espectro, a lei e a ordem não chegavam até ele. As invasões americanas ao Iraque e ao Afeganistão merecem todo tipo de reprovação, ali, unidades políticas legitimadas (seja da forma que for) por seus povos foram desrespeitadas, mas o caso de Bin Laden não cabe nesse discurso humanista, não cabe na inércia liberal do vamos discutir e criar uma lei para resolver o caso. Como se uma prisão, advogados e um processo pudessem resgatar o resto de inocência que o mundo perdeu entre os escombros das torres gêmeas. Bin Laden tornou o mundo pior, Obama não é um herói com o poder de desfazer isso. Ter ordenado a morte do terrorista é admitir isso, heróis conseguem fazer mais do que é possível, Obama fez o que era possível fazer, nada mais. O trágico é que não havia escolha, não havia caminho, para nenhum dos lados. Beira a irresponsabilidade tentar lidar com esse caso como se fosse um crime de guerra, ou um crime na compreensão geral do termo. Tudo o que ocorreu transcende o direito, somente uma necessidade muito grande de se condenar a ação americana impede que se admita isso. Mas isso é próprio de falatórios, algo que mais pessoas além de mim deveriam tentar evitar.

sábado, 23 de abril de 2011

De todo o ardor à vista em linhas.

Eu sinto os efeitos de alguma substância que eu nunca usei, ou evitava usar (sim, um brinde a eles).

Nem náuseas, nem dores de cabeça, nem cansaço, no entanto, sim, um pouco disso tudo, mas de outra forma.

Cheiros que me deixam louca, me apavoram. Sinto que tudo está fechado. Acabado. Trilhado. Não há por aonde ir, só o que não fazer.

Ouço tudo o que não me dizem. Percebo cada toque, cada olhar. A boca que silencia, e os olhos que me insultam. Obrigada pela compreensão.

Já, há muito tempo, não me atormento com reação alguma. Me calo. Quieta. Imóvel. Quase inaudível presença.

Francamente, já não existe o que se procurar. Escondemos-nos por brincadeira, e nos esqueceram por interesse. Não nos procurarão, jamais.

Me escondi em um baú, velho. De que serviria um baú novo? Olho seus olhos. Desespero. Queremos sair ou queremos que nos tirem? Um ruído aparece no horizonte, e a gente sempre se esconde. Há tanto medo aqui dentro.

Tudo escuro e sintético, com o passar do tempo, mergulhado no esquecimento. Um feixe de tudo o que existe, e se mistura com tudo o que criaram, as algemas.

Da inconstância das palavras que não ouso, das idéias que não combinam. Sugando qualquer coisa que faça sentido, dentro de um muro que apenas quem jamais esteve lá fora pôde ver, tento apenas seguir.

Frases sem nexo e capítulos que jamais se encontram, te tomo assim, um som que não se traduz.

terça-feira, 29 de março de 2011

Velho perdido juvenil

Tantos livros didáticos e tanta teoria contida pra aprender o que alguém em outro canto do mundo ou da história já descobriu. Nosso tempo é curto e grande parte do que poderia ser nosso, passar por nossas mãos, fazer parte de nossas vidas; nunca iremos encontrar. Razão que nos leva a agradecer aos historiadores, organizadores de dados importantes que registraram o que poderia ser interessante saber. Razão que nos leva a agradecer toda comodidade, tecnologia e informações filtradas que temos hoje em dia.

Gratidão que vai sendo removida pela realidade que confronta os possíveis sonhos da modernidade. Há uma necessidade vital de que algo mude. Uma prece em silêncio para que alguém, em algum lugar da terra, saiba não só as respostas, mas que também saiba ensinar ao mundo coisas tão óbvias e ao mesmo tempo tão paralisantes.

Quem sabe uma cartilha universal esteja sendo preparada por quem conseguirá nos fazer entender todo seu desespero e angústia; e não só mais um indesejado livro de auto-ajuda. Uma cartilha revolucionária que diga, e consiga convencer todos os jovens a aproveitarem bem o tempo em que toda esta energia sai pelos poros e quer desbravar o mundo. Que fique bem claro que sim, ela acaba. Mas não é tão desesperador perdê-la. Desesperador é saber que poderiam ter aproveitado toda esta vitalidade pra quando a perdessem e não o fizeram. Uma cartilha que diga pra aproveitar que são capazes de fazer todas as coisas do mundo agora. Mesmo surtando, mesmo enlouquecendo; eles conseguem! No auge de suas incertezas, suas dúvidas mais mesquinhas; pedem sabedoria e não têm toda, e terão só quando já não tiver mais a tal energia da qual estamos falando. Quando esta energia for difícil, quando for preciso batalhar e muito pra encontrá-la em algum canto. A vida será injusta e o tempo é traiçoeiro assim, não há atalhos. Ensinem que aproveitem esta coisa devastadora que é a juventude e façam o máximo de coisas que conseguirem nesta explosão de emoções e desejos assustadores. Que não cometam o engano fatal de desistir de tudo por não saber o que fazer, ou por acreditarem que a inconsequência da juventude se resume a experimentar algumas drogas. Que aprendam a engolir o mundo, comer o mundo, e quando as suas energias acabarem, eles terão toda a sabedoria pra aproveitar o que esta energia deixou.
 
Por enquanto, um mito.
 

segunda-feira, 14 de março de 2011

Os refúgios da arte

Não era nas gravuras e retratos que se notava, e sim na disposição que ela escolhia para pendurar os quadros. Não estava nas notas emitidas a cada toque nas teclas de seu piano, e sim na forma como conduzia as mãos, no sorriso estampado no rosto conforme a melodia ia sendo executada. Não estava no andamento da canção que ela ouvia no rádio enquanto escrevia, estava na forma como acompanhava o ritmo, batendo com o lápis na mesa. Não tinha a ver com a combinação das cores que escolhia para os desenhos, estava no modo como ela misturava a tinta com a água, fazendo o pincel dançar na paleta. Não estava relacionado com a lista de compras, nem com a letra bem delineada, e sim com a forma que as palavras ficavam dispostas, transformando-se quase em um poema, mesmo se tratando de uma relação tão estática e imutável. Também não tinha nada a ver com os teóricos que estavam presentes em seus artigos, estava na forma com a qual ela combinava suas teses, fazendo com que se transformassem quase em compositores de uma canção pop.
Era uma vida dedicada à arte, mesmo que não houvesse esta denominação, mesmo que não tenha sido oficializada, nem determinada por uma carreira. Era a arte na sua forma mais simples, e ao mesmo tempo mais complexa: permeando todos os movimentos, todos os sentimentos, todas as sensações. E era assim mesmo que ela queria que fosse.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Pulso

Sempre que eu puder, vou trazer convidados para este espaço. É um modo muito saudável de manter a chama acesa. Dessa vez, quem fez a gentileza de escrever um texto especialmente para nós é a jovem Thaís de Caux. Ela se apresenta ao final do texto. Comentem!

"Pulso"

por Thaís de Caux


Os cães latiam ao fundo. A parede, que um dia fora azul, já estava desbotada. O menino não mais dormia, só fazia chorar e chorar com todo aquele barulho. Em verdade, eu não sabia que horas eram - dia ou noite? - Há três dias não saía de meu quarto. Até que ouvi um chamado.Uma voz ao longe parecia gritar meu nome, e eu só ouvia aquele eco repetido periodicamente.

Minutos depois, a voz se tornaria mais próxima, mas eu não podia reconhecer aquele som. Parecia-me familiar, mas estranho. Neste momento, já não havia mais latido de cão ou choro de criança. Tudo se havia apagado lentamente. As luzes foram-se embora junto aos sons. E, de repente, senti-me vazio, invadido por uma paz momentânea.

*silêncio*

Também senti medo, porém a voz voltou docemente a me dizer coisas, acalmando-me. Não podia entender o que estava acontecendo, mas não queria mais voltar do estado em que encontrava-me. Sentia-me leve como nunca. Fechei meus olhos... imagens de toda a minha vida retornaram à minha memória como se estivessem, de fato, acontecendo novamente. Aquela música invadia-me como se tocasse minhas vísceras. Meu coração palpitava lentamente, seguindo fielmente seu ritmo. 
Então abri meus olhos.
Os cães latiam novamente.
O menino batia à minha porta.

Thaís de Caux, 18 anos. Já quis ser escritora, jornalista, publicitária.
Por mais estranho que pareça, estuda Farmácia.
Quando quer cuspir algo de dentro dela, é pra lá que vai:
www.decauxthaisr.blogspot.com

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Trago escondido

Livros empoeirados na estante pedindo pra serem lidos, causam a tosse, a garganta seca e um princípio de morte que se aproxima dela, toda desajeitada, encostada na parede, se perguntando como foi parar naquele emprego estúpido de faxineira contrariando toda sua ideologia. Um trago escondido, o avental jogado na cadeira perto da escada e uma ideia. Subiu os degraus cantando qualquer coisa quase bela que aprendera nas aulas de piano aos sete anos de idade. Tão patrocinada por sua madrinha que acreditava ter batizado a sobrinha que nascera para a arte. Ao topo, vislumbrando livros novos encapados e coloridos, decidiu optar pelas possibilidades. Pulou. Como um suicídio. Como um grito de liberdade. Como um tombo que quebrasse sua perna e lhe daria uma licença médica e atestados. Precisava de férias. Pulou como um grito, um mergulho. Pulou de braços abertos e sentiu-se a faxineira pretensa a pianista mais desnecessária do mundo no instante em que um gato cutucava as garras no rosto dela. Acordada do salto, preparou um chá, ficou nua na biblioteca e fez um ritual comemorando o grito que ninguém ouviu. Tornou-se livre e se demitiu. Não era mais uma faxineira, nem pianista, não era ninguém.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cafeteria

Continuando a série de textos de convidados, nosso chapa Michel Gomes escreveu, a meu convite, um texto especial para nossa Marmita Filosófica. Como de praxe, ele se apresenta no final. Curta aí esta "Cafeteria" que não é café pequeno!
Cafeteria 


“Um cappuccino, por favor,” pedi no balcão, e enquanto eu esperava fui me sentar em uma mesa no canto, próxima à grande janela de vidro que tinha sido cuidadosamente limpa pela moça da limpeza. Toda vez que venho aqui, neste estimado café no centro de Maringá, me sinto como o observador dos poemas de Gonçalo Tavares e reparo em cada mesa, em cada pessoa. De frente comigo, por exemplo, o senhor que lê o jornal vem aqui duas vezes por semana, mas na verdade o jornal não lhe interessa, seu real foco é a garçonete de pernas grossas e seios fartos.  Ele manuseia o jornal como se fosse uma bíblia, não consegue se conter nas calças. Ou então a jovem, bela jovem, que espera o namorado todos os dias pela manhã para irem à escola. Ela não sabe, mas ela tem em si todos os sonhos do mundo, como uma vez Fernando Pessoa explicou. E tem também toda a capacidade para realizá-los, mas quando descobrir isso será tarde demais, os sonhos terão acabado.


Olho para a próxima mesa, para uma próxima reflexão enquanto o café não vem. Sentada, de costas, uma moça. Cabelos caídos sobre os ombros. “Porra, ela parece a Janaína”, eu penso. Uma antiga namorada, do tempo em que os sonhos ainda estavam por aqui. Mas ela havia ido embora pra São Paulo e terminei com ela porque não queria namorar à distância. Será que ela havia voltado? Será que era ela?

Entro em um devaneio e me imagino caminhando até lá. Sentando na sua frente. Imagino que ela irá se surpreender ao me ver. “Nossa, você não mudou nada” ela vai dizer e eu vou sorrir e dizer que ela está ótima também. Vou falar dos anos que não nos vemos, das coisas que me aconteceram e que agora eu tenho uma coluna no jornal local sobre literatura e música. Vou dizer que sinto muito pelo que fiz e que sei que a magoei. Ela vai dizer que está tudo bem, que já faz tempo. Que agora ela está casada e tem um Atelier na Av. Riachuelo. Que conheceu o cara em São Paulo e por sorte ele foi transferido para Maringá, para gerenciar a agência do BB no centro. Vou perguntar se ela acha que teríamos dado certo, ela vai dizer que talvez, quem sabe, que era outra época e que éramos outras pessoas. Vou dizer que eu não mudei, que sou o mesmo, e ela vai dizer que todas as pessoas mudam, e eu vou saber, ali, naquele momento, que eu sempre estive fadado ao fracasso pessoal. E eu vou chorar por dentro, e vou querer dizer que estou sozinho e infeliz, mas vou me segurar e acabar não dizendo.


Ao sair dos meus pensamentos, me levanto e vou embora sem o meu café e sem saber se era ela, sentada, ali tão perto, lendo “O Amor Nos Tempos do Cólera” do García Marques.

Michel Gomes, de profissão, trabalha desenvolvendo projetos de interiores e móveis. De coração, quer mesmo é escrever enquanto o mundo desaba ao seu redor. Traduzir em palavras o que certas pessoas nem conseguem imaginar.
Links do autor:
A ferrugem está na moda
Projeto Polaroid

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Prateleira de clichês


Após um bom tempo, estamos novamente publicando um texto de um convidado. Desta vez, convidei o Ðani_el Silva, que após muita insistência de minha parte, finalmente aceitou preparar um prato especial para nossa Marmita. No final do texto ele se apresenta.

"Prateleira de clichês"


por Ðani_el Silva



Rótulos. Modelos. Estereótipos.


Vire à direita, quem sabe à esquerda.


Pare. Siga.


Corra. Morra.


A pessoa perfeita.


O casamento perfeito.


O sexo perfeito.


O emprego perfeito.


Uma única vez.


É para isso que vives?


Beco sem saída.


Tira a máscara.


Quem perde menos tempo com o lamento, vive mais.


Por que não ter várias vezes perfeitas?


O que é a perfeição?


O que era bom ontem e não é mais hoje deixou de existir?


E os próximos cinquenta anos? Suicídio?


Não. Repetições.


Fraqueza demais pra tentar do teu jeito?


O que o ‘mundo’ pensa? Importa-te?


E o que tu pensa? Importa ao ‘mundo’?


Tens medo de gritar?


Algo te satisfaz ou és incapaz de te satisfazeres com algo?


E a parcela da tevê? Pagaste?


Ah! A tevê! Acho que agora direcionou tua atenção!


E se ela quebrar?


Se tudo queimar?


Tens o sol, a lua, o mar, os pássaros? Ou tanto faz?


E as horas? Tu as tem ou as gasta com o passado?


Ou será que o teu futuro é que toma conta delas?


E agora? Estás prostrado?


Nada a tua espera? Quem sabe tudo?


Não mata-te nesta noite.


Larga tudo. Pega tudo.


Bebe a vida.


Ou será que nem sede tu sentes mais?


Ðani_el Silva por ele mesmo:

"Não passo de um pseudo qualquer coisa... incompleto. Um pouco de tudo e nada de muito. Inteiros só minha sinceridade, minha simpatia e meu amor.


Ainda: formando em Arquivologia pela UFRGS e futuro acadêmico de Jornalismo".